9 Zonas escrita por Cas Hunt


Capítulo 10
O Poço e a Traição




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De início tentei não entrar em pânico. O lugar é úmido de um modo nojento, musgo crescendo nas paredes lodosas e escorregadias assim como o chão de pedras sinuosas que facilmente poderiam me ocasionar uma lesão. O lugar é todo fechado sem nenhum sinal de ventilação além de um mínimo buraco circular no teto do tamanho da palma da minha mão por onde a luz do dia se infiltra mostrando o passar das horas.

12 horas aqui dentro. Por que diabos eu propositalmente errei ao chamar a tenente? Ah. Jugen. Ele faz tudo ficar mais complicado com seu jeito doce e compreensivo, não rebate nenhum dos meus xingamentos ou provocações, apenas dá uma risada macia e dolorosa de tão gostosa ou sorri com o canto dos olhos puxados.

Pensar desse jeito sobre ele está acabando com toda minha sanidade. Sei que estou traindo sentimentalmente Lion, meus pais, amigos e até a própria rebelião. Peço silenciosamente todos os dias para que Jugen não seja realmente o filho do ditador. Que eu não tenha de mata-lo, agora sei que a ideia de ter a morte dele nas minhas costas pesaria quase tanto quanto a de Danny.

Solto um palavrão. Ando de um lado para o outro encarando a parede oposta com um quadrado com quatro números em neon que se movimentam conforme os minutos se passam. Um cronômetro para as portas se abrirem e eu me retirar pelas escadas velhas até a superfície de um dos diversos túneis do complexo.

Tenho que falar alguma coisa importante para a garota de cabelos azuis contar á general para que pensem que faço progresso enquanto o que na verdade estou fazendo é ficar maluca e desenvolver compaixão pelo inimigo.

Escurece. Tento me convencer a ficar limpa de sentimentos, vazia. Uma casca oca. Faltam apenas alguns minutos e o cheiro do poço já se infiltrou por todo o meu cérebro, quase consigo sentir como é denso e lodoso.

—Finalmente — solto um grunhido para o escuro quando os números se zeram e a tranca da porta/parede soa alta no silencio.

Empenho-me em empurrar a parede para o lado com a ajuda da tecnologia e fecho-a atrás de mim. Começo a subir as escadas devagar sem animo nenhum para voltar ao treinamento.

Paro. Sons abafados de conversar. Um grunhido. Um risinho baixo.

Minhas sobrancelhas se juntam. Aproximo-me pisando macio nos degraus largos de pedra, os olhos semicerrados no escuro tentando enxergar qualquer coisa. Encontro uma figura masculina, alta e levemente magricela de frente para a silhueta reconhecível dos cabelos curtos da garota azul.

—Nenhum progresso — a voz dela soa cheia de desdém. — Avisei que ela estava envolvida demais na missão.

—Como assim envolvida, Gesabel? — meu coração para.

Lion! Reconheceria sua voz preguiçosa em qualquer lugar, ainda mais agora que parece autoritária perante a garota. Subo mais alguns degraus pretendendo ficar a vista mas paro ao ver o movimento repentino de Gesabel. Ela se inclina sobre ele e o beija.

Escondo-me na curva da parede esperando que Lion a afaste, que tenha alguma reação negativa.

—Envolvida ao nosso estilo. Tenho certeza que ela gosta do tal Jugen.

Outro grunhido. Reconheço que é de Lion, contudo repito as palavras na minha cabeça... “ao nosso estilo”.

—Não. Não acredito em você.

—Divertido vocês dois.

—O quê?

—Você não gosta de dividir ela. Interessante.

—Ela é minha noiva.

—E eu?

Silencio. Minha cabeça está fervendo e continuo subindo os degraus com passos mansos e silenciosos deixando que assim que entre na luz ambos me enxerguem. Fico limpa de expressão embora meu coração esteja retumbando no peito e as mãos estejam em punho. Não quero escutar o que ele vai falar.

—Sargento Calem — chamo já retirando o colar que ele me dera.

Lion arregala os olhos. Gesabel não parece nem um pouco surpresa. Ela me cumprimenta com um aceno e aponta para suas costas prosseguindo um caminho qualquer. Não presto atenção.

Merda, eu deveria ter deixado ela morrer no primeiro dia. Por que eu a salvei? O que diabos estava pensando? Talvez seja melhor assim. Descobrir uma hora ou outra que Lion me traiu. Não saberia se não estivesse presa no maldito poço ou se ela estivesse morta.

—Meu amor — Lion estende as mãos em minha direção.

Apenas o encaro com o maior ódio que consigo desenvolver na expressão que logo se mistura com nojo sendo substituída por uma leve pontada de dor.

—Um mês? Jura?

Passo a mão na lateral do rosto antes de deixa-la bater nos meus quadris. Sinto uma porção de várias frases impróprias se formulando em minha mente implorando para sair, só que sei me controlar.

—Ally, eu posso explicar.

—O inferno que você vai!

Enfio as unhas na palma tão forte que suspeito estar saindo sangue. Ando de um lado para o outro no maldito corredor fino do túnel decidindo se o mato ou grito em seus ouvidos. Gritar chamaria atenção.

—Olha Ally, a general me mandou ficar de olho na Gesabel já que ela é da Zona 3 e está nos ajudando...

—De olho? De olho? — cuspo na parede para não acertar o corpo dele. Pelo menos respeitar eu sei. — Isso é que é ficar de olho pra você?

—Diga-me você! Tenho metade do acampamento nas minhas costas especulando sobre suas atitudes com o filho do ditador.

—Atitudes? Claro! Como deslocar o ombro dele ou xinga-lo todos os dias? Evitei de todas as formas me aproximar fisicamente dele e você fica beijando a primeira... Primeira... Trottel que vê pela frente?

—Está xingando ela em alemão?

Posso ver o leve sorriso dele achando que o entendi. Pego o colar dele e bato em seu peito com o pingente.

—Cuide bem de Gesabel, sargento — faço minha melhor expressão de escarnio — E se acha que ainda tem uma noiva, melhor pensar duas vezes antes de beijar alguém!

—Não, espera. Ally — o tom dele fica mortalmente sério ao puxar meu braço para ficar de frente pra ele outra vez. —Gesabel não é nada, eu juro.

—Não parecia ser nada.

Lion fica parado segurando meu braço. Não acredito que passei tantas noites imaginando em reencontra-lo outra vez barrando toda compaixão em meu peito e mascarando a saudade só para encontra-lo nos braços de outra pessoa. Admito que a dor em meu peito faz meus olhos lacrimejarem — agradeço por estar escuro, assim ele não vê o quanto me machuca.

Solto um suspiro tentando me controlar.

—Dá pra ver que nós dois estamos envolvidos demais com nossas missões, Lion.

Ele fica em silencio.

—Não é o melhor momento para estarmos juntos.

Solto o cordão na mão dele. Não vejo se ele tem bolsos ou não, apenas deixo ali em sua palma.

—Quando isso acabar talvez possamos... — minha voz se perde.

Lion solta meu braço e prossigo meu caminho dando as costas para ele. Vou na direção do banheiro sabendo que o dormitório vai estar amarrotado de pessoas dormindo e que ela vai estar lá.

***

Nua debaixo do chuveiro, deixo as lágrimas rolarem. Não são pela dor, de modo algum. Já enfrentei piores. É mais pela raiva de ter acreditado que nós dois poderíamos ter um relacionamento ao mesmo tempo que missões absurdas são embutidas a ambos.

Não dá. Só... Não dá.

Era por isso que ele estava tão confiante no dia que fora falar com minha mãe? Esse foi o motivo de não insistir ou não desobedece-la? E como fui idiota.

Ao menos não paguei papel de trouxa na frente dele. Não perdi o controle. Só que agora perco. Dou apenas um soco na parede, desajeitado. A dor física parece minimizar minha raiva. Aproveito e sigo mais um. E outro. E outro. Alguns minutos e o azulejo está rachado e minhas mãos sangrando.

***

Visto um uniforme da minha cor limpo e começo a prosseguir para a enfermaria. Não consigo pensar em muita coisa. Sei que se dormir vou acabar sonhando com os dois e tal ideia me é repugnante.

Deve estar perto da meia noite, o horário de recolher é as dez. Atravesso a porta em arco e entro no ambiente iluminado com uma única alma viva, o doutor baixinho que encontrei na primeira vez que vim á enfermaria.

—Senhorita Alay. — ele me cumprimenta com um sorriso até ver como minhas mãos estão.

Seu pequenos olhos se arregalam e ele se apressa em aplicar uma injeção de morfina. Fico em silencio na maior parte do tempo que ele quebra meus dedos para coloca-los no lugar de novo. As lagrimas rolam. Só tenho minhas dúvidas se são pela dor física ou do meu coração.


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