O Funeral escrita por Ralph Longbottom


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem da oneshot!



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O dia estava frio e uma fina chuva caía do lado de fora das casas da pacata cidade de Presidente Kubistchek, no interior de São Paulo (a 198km de distância da capital). Era julho, o famigerado mês das férias escolares, e crianças e jovens aproveitavam o tempo propício para se enroscarem em seus cobertores quentinhos e dormirem deliciosamente. 

Para a residência de número 102 do luxuoso condomínio "Residencial Liberty Village", o dia cinzento combinava com o momento. A casa, por si só, já tinha ar de casarão fantasmagórico, o clima e a situação apenas colaboravam com o sentimento lúgubre que pairava na maior sala de visitas do lugar. 

No aposento principal, Fernanda estava sentada em uma banqueta reclaimer nos pés da cama, com as mãos no rosto, enquanto pesadas lágrimas escorriam por suas palmas. Era uma senhora no auge de seus setenta anos, mas preservava sua beleza desde sua juventude. Mesmo para o momento em questão, estava vestida elegantemente, com um vestido preto suntuoso até os joelhos, enquanto os sapatos, de pequenos saltos, estavam jogados ao lado do banco, e os pés descalços pisavam no chão gelado.  

Ela não entendia o porquê ele quisera voltar para aquela casa. Depois de tanta infelicidade, depois do que ocorreu, que, embora, não fosse de responsabilidade do lugar, deixara uma triste marca, Fernanda não entendia o motivo de ter voltado a morar naquele local. Sabia que não seria por muito tempo até o fatídico dia da partida dele, mas tivera três meses miseráveis vivendo na residência em que o amor de sua vida passou a infância. Ou pelo menos o início dela. 

Ah! Seu marido. Mesmo diante de seu sofrimento, do seu estado terminal, doía pensar nele, em lembrar que ele estava gélido e deitado em um caixão posto em uma mesa na sala de visitas. Depois de tudo que ele passou, de toda ajuda, de seu recomeço, uma doença maldita ceifara a vida. Ela não conseguia imaginar sua vida sem ele, sem o seu pequeno brownie.   

Um pequeno sorriso estampava sua face ao se lembrar do apelido carinhoso, quando Laura, sua filha mais velha, deu três batidinhas na porta e colocou a cabeça para dentro: 

— Mãe, posso entrar?! 

A senhora acenou positivamente e correu a enxugar suas lágrimas em um lenço. Laura era uma mulher bonita, tinha trinta anos e era uma veterinária famosa na cidade. Seguindo a mulher, vinha uma linda garotinha. 

Ao ver a netinha, o coração de Fernanda deu um gigantesco nó. Era a primeira neta e o grande xodó de Pedro. A menina, com cinco anos, vinha abraçada a um ursinho de pelúcia e, ao ver os braços esticados da avó, se sentou em seu colo. Por estar em tenra idade, Lorena não entendia ainda a magnitude do que estava acontecendo, mas sabia que algo muito ruim tinha acontecido com seu amado avô. 

— Oi, princesa! Você não dormiu ainda? — Fernanda perguntou docemente à criança, que meneou a cabeça negativamente e se enroscou nos braços da mulher. 

— Mamãe, a tia Clara quer falar com você. Está te procurando desesperadamente, mas não te encontrava. Não falei onde estava por acreditar que finalmente estava descansando. — Laura informara sua mãe, sem esconder a curiosidade em sua voz. Clara era a irmã mais velha e advogada de Pedro. 

— Descansar em um momento como esse, Laura? Não me diga que acha que uma recém viúva consegue dormir no velório de seu marido? — Fernanda estava visivelmente irritada. Não conseguia acreditar na quantidade de pessoas inconvenientes que a cercava, mandando ela dormir a toda hora. 

— Você está acordada há quase trinta horas, tirando o tempo seguido que vinha acompanhando o papai no hospital. 

— Me poupe desses comentários politicamente corretos que as pessoas querem dar. Por que não levou sua filha para dormir ainda? Se preocupe com ela, não comigo. Quanto a Clara, mande-a vir até aqui que conversarei com ela. Ela também está velando um ente querido. 

Laura concordou amargamente, não gostara da resposta ríspida da mãe. O que ela queria que fizesse? Que não indicasse um pequeno cochilo? Já estava sofrendo por perder o pai, não queria ver sua mãe adoecer ou ter um mal súbito. Pegou uma Lorena semi adormecida no colo e foi buscar sua tia. 

Fernanda sabia que a cunhada vinha falar algo jurídico para ela. Pedro confiava todos assuntos a Clara e, se pediu para conversar a sós com a irmã em diversas oportunidades durante sua estadia no hospital, com certeza instruiu ela conforme suas vontades.  

Clara estava indo até o quarto de Fernanda para conversar. Tentava segurar o choro, a emoção e a tristeza. Estava zangada pelo irmão dar uma tarefa bem em seu velório, porém acreditava ser importante. Ela também tinha pressentimento de que Pedro sabia que ela seria forte por tudo que eles passaram com ele na infância. Seu nascimento, os primeiros anos de vida, a manifestação de uma doença genética grave, que ocasionou severa sequela e o confinou em uma cadeira de rodas, o falho tratamento na Europa, o recomeço amargo. E veja só, Pedro tinha chegado à velhice, com qualidade de vida considerada como excelente pelos seus médicos, superando todas as expectativas. 

Bateu à porta e após ouvir um "Pode abrir!", entrou no quarto em que Fernanda estava. Abraçou calorosamente sua cunhada, ficando assim por longo período, chorando em silêncio. Recuperada, enxugou as lágrimas com as costas das mãos e falou: 

— Sinto muito por sua perda. Você era muito importante para meu irmão. Na verdade, se tornou importante para todos nós. Sem você, Pedro não saberia o que é viver verdadeiramente. Você recuperou meu irmão, recuperou a vontade dele viver. Eu agradeço a você, sabe disso. Muito obrigada! — os olhos da mulher estavam cheios de lágrimas. 

— Fiz por amor, Clara! Você sabe disso. Do mesmo jeito que você e seus pais o amaram, sempre cuidaram dele e o ajudaram. Eu que agradeço por vocês me aceitarem e nunca duvidarem de mim. Amo Pedro desde o dia em que o vi solitário, sentado em sua cadeira de rodas, no canto do pátio durante o intervalo. 

— Eu sei do seu amor por ele e isso sempre me emocionou. Mas a sua devoção para com ele sempre foi admirável. Enfim, ele me deixou uma tarefa e pediu pra usar toda minha frieza de advogada. Mesmo no leito de morte, Pedro fazia piada da minha profissão. Jurei que faria isso e antes de chorar, vou cumprir minha promessa. Quero velar meu irmão em paz. 

Clara puxou sua bolsa, abriu o zíper e puxou um embrulho em papel de presente rosa choque. 

— Toma! Não sei o que é, muito menos o motivo de te entregar. Ele apenas pediu para entregar e sair antes de você abrir. Portanto, vou te deixar sozinha agora.  

Clara virou as costas e saiu apressadamente antes que Fernanda falasse algo. Esta, por sua vez, fechou e trancou a porta. Estava muito curiosa para descobrir o que o embrulho escondia, mas iria ceder a vontade de seu marido e se isolar antes de o fazer. 

Rasgou o papel rapidamente e encontrou um livro rosa e um pequeno papel escrito na caligrafia tremida de Pedro: "nossa história". Ela sabia o que era aquele livro, mas achou que ele estava perdido. Abraçou-o com todas as forças, deitou-se na cama e deixou as lágrimas saírem, até que enfim cedeu a opinião popular e adormeceu. 


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Notas finais do capítulo

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