O Bosque escrita por Julia MKL


Capítulo 1
1




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A risada de Anna soou alta e musical. Quando a garota ria, seus olhos se fechavam e covinhas surgiram em suas bochechas. Observei por um momento. Os raios de sol que passavam por entre as poucas folhas das árvores tocavam a pele e os cabelos loiros de Anna, iluminando toda sua silhueta, deixando-a com um aspecto dourado angelical.

Sorri.

“Mal posso acreditar que consegui outra vez” ela disse. “Você é muito distraída, Emilie”.

Mas é claro que acreditava, Annastasia sempre conseguia. Enquanto eu não estava prestando atenção, ela se movia silenciosa como um felino, e então surgia com um “Bu” sonoro que me fazia pular de susto.

“Eu não sou tão distraída” defendi, “suas habilidades de caça é que são demais pra mim”.

“Ah, eu sei” ela disse ainda com um grande sorriso.

Era assim que a vida seguia. Sempre que encontrávamos algum tempo livre (ou fugíamos de nossas responsabilidades), eu e Anna íamos para o bosque, tentando encontrar algo com o que nos ocuparmos. Às vezes procurávamos frutas, às vezes encontrávamos animais como lebres, esquilos ou gambás, mas sempre conversávamos muito. Sobre tudo. As coisas eram assim desde que eu conseguia me lembrar.

Vivíamos na encosta de um conjunto de montanhas que formavam uma meia lua, nos isolando. Nosso vilarejo era pequeno e pacato, e todo o sustento vinha do plantio e caça dos animais que viviam na floresta que nos cercava. Às vezes, durante a estação mais quente, alguns dos mais corajosos se aventuravam a pescar num rio que ficava a alguns quilômetros de distância, então a viagem poderia durar mais de um dia e nem sempre era garantido que a pesca seria proveitosa. Anna dizia que algum dia iria com eles, para ver o tal rio com os próprios olhos. “Eu iria também, então. Talvez fosse divertido” eu lhe disse certa vez. Eu não tinha tanta certeza sobre isso na verdade, mas estaria tudo bem se fosse com ela. Não poderia deixá-la se aventurar sozinha e jamais conseguiria ir sem Anna.

“O que você acha que vamos encontrar hoje?” Perguntei. Tirei uma mecha de cabelo da frente do rosto e coloquei atrás da orelha. Meu cabelo era na altura do ombro, de uma cor estranha. Não era loiro, mas não chegava a ser castanho. Às vezes era meio avermelhado, dependendo da luz, mas não chegava a ser ruivo. Anna dizia que meu cabelo era da cor das folhas secando, mas quando eu argumentei que folhas secas podiam ter os mais diversos tons, ela apenas riu e disse “é, algo assim”.

“Uma lebre” Anna respondeu. Sempre que eu perguntava, a garota dava uma resposta objetiva. Ela errava na maioria das vezes, mas isso também fazia parte da brincadeira.

Galhos secos estalavam sob nossas botas conforme caminhávamos e folhas úmidas grudavam no tecido dos vestidos. Estava esfriando rápido, o clima estava mais úmido e provavelmente logo começaria a nevar. Apesar de tudo, eu gostava do começo, quando os primeiros flocos de neve caíam. Uma camada branca e delicada cobria as árvores, e as coisas brilhavam quando a luz batia. O restante do inverno não era agradável. Caía neve demais, tudo ficava congelado e escorregadio, a neve no chão ficava suja e com freqüência nos víamos confinados às nossas casas por dias. Quando isso acontecia, às vezes eu e Anna passávamos dias sem nos ver e eu só podia imaginar o que ela estaria fazendo.

“Se encontrássemos uma lebre, sua mãe poderia nos preparar um caldo”, disse Anna, pensativa. Ela pegou um galho de mais ou menos um metro de comprimento do chão e começou a cutucar o solo e amontoados de folhas.

Eu não gostava muito da ideia, e Annastasia sabia disso. Os ensopados de minha mãe eram realmente deliciosos, mas lebres eram animais tão bonitinhos que meu coração se partia sempre que um deles se tornava nosso jantar.

“Se ela fizer, eu levo um pouco para você, em segredo”, falei.

Anna sorriu. Tudo o que a mãe dela cozinhava era horrível, por isso vez ou outra eu lhe dava um pouco de comida que minha mãe preparava. Apesar de eu lhe dizer que levaria em segredo, não era segredo para minha mãe o destino da segunda tigela de ensopado. Na verdade, Marta, minha mãe, parecia bem satisfeita que Anna gostasse tanto de seus preparos, e com freqüência colocava um pouco a mais na porção que sabia que seria destinada a ela.

“Sua mãe deveria me ensinar a preparar algumas coisas. Minha mãe se propôs a me ensinar a cozinhar, mas tenho medo do que isso pode resultar”. A garota colocou uma mecha de cabelo para trás distraidamente.

“Vou perguntar a ela. Eu já a ajudei na cozinha, mas não sei se posso realmente chamar isso de aula”, falei.

“Acho que a prática é a melhor forma de aprender!” Anna sorriu. “O que vocês fizeram quando ela te pediu ajuda?”

“Hum... Ensopado de pato, eu acho. Não tem nenhum mistério. Nós deixamos a carne em água fervente para amolecer...”

“O que?” A loira abaixou o pedaço de árvore que carregava e me olhou surpresa.

“Deixamos a carne por um tempo em água fervente, para amolecer, e só depois é acrescentado o resto.”

Annastasia olhava para mim com os grandes olhos azuis brilhando e a boca aberta. “Minha mãe sempre coloca tudo junto”. Nos encaramos por um momento. Pisquei uma vez, duas. A loira suspirou. “É por isso que fica ruim, então.”

Sorri. “Vou contar sua história trágica para a mamãe. Com certeza ela terá piedade do seu estômago.”

Nós rimos. Annastasia balançou seu galho e cutucou um amontoado de galhos e folhas próximos às raízes grossas de uma árvore. “Gostaria de encontrar um besouro”, Anna disse. “Gosto de besouros. Eles são engraçados.”

“Gosto de libélulas”, falei.

Anna balançou a cabeça. “Eles são bonitos, combinam com você.”

Sorri. Peguei um graveto do chão, não tão grande quanto o de minha amiga, e comecei a brincar com ele. Dei mais alguns passos, me distanciando um pouco de Anna. Então, parei. O galho caiu de minha mão e um arrepio frio subiu por minhas costas enquanto eu tentava entender tudo o que via.

“A-Anna”, chamei mas minha voz não saiu mais do que um sussurro. Engoli em seco e tentei novamente, dessa vez conseguindo que a voz saísse mais alta. “Anna!”

Num segundo minha amiga estava ao meu lado. “Mas o que...”

Ficamos as duas paradas, observando horrorizadas, até que Annastasia passou os braços em torno de mim.

“Emilie”, ela disse, me puxando, “vamos embora. Agora”. Quando não me movi, a garota tentou novamente, se colocando a minha frente. Minha visão foi nublada por uma cortina de cabelos louros e ela encostou seu nariz em minha testa. “Emilie”, chamou mais uma vez. Uma lágrima morna escorreu em meu rosto. Seu hálito quente contra minha pele me trouxe de volta do choque.

À nossa frente estava um cavalo da vizinhança, mas ele não parecia mais o mesmo. Seu pêlo marrom estava sujo, o pescoço destroçado e suas entranhas estavam expostas.  Uma das patas traseiras tinha sido virada em um ângulo estranho e os olhos, ainda abertos, mostravam o horror que sentira antes de morrer. O sangue espalhado pelo cadáver, no chão e nas folhas a sua volta não tinham mais o brilho vivo e escarlate de uma morte recente, mas ainda assim era possível dizer que aquele animal havia sido assassinado há pouco tempo. O que quer que o tenha atacado, não parecia faminto, parecia com raiva. Me perguntei se caso tivéssemos chegado um pouco mais cedo, poderia ter sido eu ou Anna a morrer, ao invés do cavalo.

Ainda se mantendo a minha frente para bloquear a visão, Anna pegou minha mão e me puxou consigo, correndo de volta ao vilarejo. Olhei para trás novamente, para aquele amontoado de carne e sangue. Pisquei, mas meus olhos estavam secos. Ao olhar para Annastasia, pude ver que lágrimas escorriam de seus olhos azuis.


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Notas finais do capítulo

Particularmente eu acho que esse capítulo tem muito haver com o tom da história: Emilie e Anna estão sob o sol, rindo e se divertindo, unidas pelo maravilhoso poder da amizade, e então acontece algo obscuro.
É um contraste comum nos próximos capítulos.
Espero que essa introdução sirva para deixar um gostinho de curiosidade em você.



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