Como Vidro

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 Duas coisas eram tidas como certas para Nan Gong Xi Yan: apenas os fortes sobrevivem e para sua atual situação não havia esperança, afinal, ela era fraca. Sempre foi e por isso nunca pensava duas vezes antes de jogar alguém para de baixo do ônibus para se beneficiar. Nem mesmo se essa pessoa fosse sua própria irmã.

 Um nó se formou em sua garganta ao pensar em Yue Jian. Era impossível não sentir um milhão de emoções diferentes quando lembrava de sua querida irmã mais nova, num mix de ódio, amor, ciúmes, compaixão, mas, sobretudo, culpa.

 Sentada, agora,no chão de um dos muitos quartos da mansão de Fan Le Lao, do clã Lasombra, ainda encoberta de sangue da última punição de Yi Sai, a garota só podia sentir que isso era karma ou apenas o que um ser inútil como ela merecia. Sim, merecia cada tapa, cada magia lançada em sua direção e cada depreciação.

 E, exatamente por merecer, ela já não chorava mais, mesmo com os cortes sangrentos pelo corpo e ardência no rosto, nenhuma lágrima caia. Apenas boas pessoas merecem chorar por calamidades e sofrimento, Xi Yan não era uma delas. Sempre sentindo inveja de suas irmãs; de Zhao Yan por ser mais velha, mais forte, mais sábia, por ser a preferida do líder do Sabbat e, por isso, sempre estar bem vestida, e de Yue Jin, a garota mais doce, madura e querida por todos. Enquanto que ela... era um fardo, traidora dos caçadores, bicho traiçoeiro que quase matou sua irmã mais nova por estar entre algo que ela queria e seus benefícios como dinheiro, roupas e poder. Tão superficial e mesquinha...

 Deveria ter se matado há muito tempo, porém não poderia mais, já que Yi Sai sempre a impedia, além do maldito morcego infernal implantado em sua perna que impedia suicídio, traísse seu clã ou que se aproximasse de qualquer um além de Yi Sai, sem que uma dor lhe afligisse o corpo de maneira constante. Esse inferno não tinha fim, e todas as vezes que ela acreditou que poderia ser diferente o destino riu e cuspiu em sua cara, apenas a colocando em uma situação pior que a anterior. A pior parte disso tudo? Ela havia trazido isso para si com suas escolhas egoístas e gananciosas.

 No momento, suas pupilas vermelhas encaravam um ponto fixo qualquer na parede, com desinteresse e nenhum foco. Estava escuro e o único som audível era o da chuva contra o vidro e os relâmpagos, que vez ou outra iluminavam o quarto por alguns segundos. Tentava bloquear os pensamentos negativos, mas eles se amontoavam sozinhos, e a garota já estava cansada de mais. Para que lutar? Para que tentar pensar diferente? Para que tentar se enganar?

— Xi Yan? Você está aí?

 Não era preciso levantar a cabeça para saber de quem era a voz que lhe chamava. "Ah não, não quero que ele me veja assim..." era o que pensava, antes de enterrar a cabeça entre os joelhos e se encolher ainda mais em seu canto escuro. O ardor nos ferimentos, por causa do movimento, se alastrou, porém, como esta dor já lhe era costumeira, não se importou. Queria a todo custo evitar o rapaz que agora caminhava em sua direção.

— Não chegue mais perto! - comandou de maneira ríspida, e o som dos passos parou.

 Por alguns instantes, a vampira acreditou que suas palavras haviam chegado até ele e, finalmente, estava a obedecendo. Contudo, isso foi provado estar errado quando sentiu uma leve pressão sobre o machucado do ombro direito e percebeu que um lenço estava estancando o corte.

 Levantou a cabeça subitamente para gritar com o rapaz, mas as palavras ficaram presas em sua garganta quando se deparou com o sorriso gentil. Ela sempre perdia pra esse sorriso.

— Xi Yan... eu já te falei, se você está chateada ou machucada é só me dizer que eu vou te proteger - seu tom era doce, enquanto pousava sua outra mão gelada sobre a marca vermelha no rosto dela.

 Como da vez em que o conheceu, Sorace sempre lhe estendia a mão, mesmo que ela não merecesse. Dizendo palavras doces, alimentando o fogo pequeno de orgulho e esperança em seu coração, tentando mostrar que ainda valia de alguma coisa, o jovem do clã Tzimisce estava ao seu lado a todo momento, a abraçando mesmo quando ela tentava afastá-lo. E então, Xi Yan se lembrou do preço que ele havia pagado por estar ao seu lado.

— Você deve ir, Sorace. Se Yi Sai souber que você está aqui, pode fazer algo pior do que colocar um morcego.

 A imagem de quando seu mestre colocou um desses bichos malditos em Sorace, para que uma dor excruciante (pior que a dela) se alastrasse por seu corpo sempre que a visse, abraçasse ou mesmo lhe dirigisse uma palavra, continua vívida em sua memória. Como ele podia ainda procurá-la? Ficar ao seu lado só trazia desgraça, dores desnecessárias, seria melhor deixá-la de lado, até porque nenhum dos dois era forte o bastante para suportar todas as consequências. Ela, pelo menos, não tinha dúvidas de sua incapacidade.

— Não quero te deixar assim.

 Trocaram olhares e foi como se uma descarga elétrica tivesse passado pelo corpo feminino. Dessa vez, os olhos da garota estavam azuis límpido (sua cor natural, diferente do vermelho de seu lado vampiro) e encaravam as pupilas lilases claro a sua frente. Raramente, utilizava as cores naturais, pois temia que suas emoções fossem lidas pelos outros, sobretudo seu mestre sádico, e sempre foi levada a duvidar de todos, mas não deste rapaz a sua frente.

— Não está doendo? - questionou a morena, que desviou seus olhos tentando, em vão, esconder o tom carmesim que começava a tingir suas bochechas.

 O vampiro removeu a mão de sua face e sentou ao seu lado, pegou o braço da garota e gentilmente começou a limpar o sangue, que já começava a endurecer. Era uma tarefa infrutífera, porém o gesto aqueceu o coração de Xi Yan.

— Estaria mentindo se dissesse que não, mas se esse é preço para ficar ao seu lado eu não me importo.

— Você tem problemas... - comentou baixo, passando a encarar a janela enquanto sentia o calor subir por sua face. Ele não a respondeu e apenas sorriu.

 Antes que a tensão entre eles aumentasse e acabassem tomando atitudes comprometedoras abertamente (não que a ideia não a agradasse, porém, não era inteligente fazê-las na mansão), Sorace a pegou nos braços, subitamente, e a fez se sentir uma princesa por sua delicadeza.

— Vou te levar até o seu quarto, parece que você precisa descansar.

— Eu posso andar - cortou rapidamente, ruborizada, enquanto pousava uma das mãos em seu ombro para segurar-se.

— Eu sei, mas você está ferida, então eu vou te levar - seu tom foi incisivo, como se não aceitasse mais nenhuma palavra da garota.

 Todavia, mesmo que já tivesse certeza, Xi Yan não admitiria. Não admitiria o quão apaixonada estava por Sorace, que tornava sua vida tormentosa melhor de todas as maneiras possíveis, a fazendo rir, sentir-se importante e, principalmente, amada.

 Ainda lembrava do dia em que ele bateu em sua porta, preocupado, e acabou comentando que seu tio havia recomendado que procurasse uma esposa, e que ele a cogitava como uma candidata. É claro que, na época, a morena havia  gritado com o vampiro, batido o pé e declarado nojo por tal pensamento que, agora, não lhe causava repulsa.

 Contudo, quando Sorace, por acidente enquanto a carregava, deixou um pequeno vaso de obsidiana se espatifar no chão, e tirou a garota de seus pensamento.

 Ao passo que o rapaz ainda a levava para seu quarto, choramingando alto e questionando-se como desculpar-se ao seu líder pela quebra do artefato, os olhos da vampira permaneciam fixos nos pedaços de diversos tamanhos no chão. Bem quando ela imaginava uma vida feliz ao lado de seu amado, isto acontece. Só podia ser um sinal.

 Xi Yan foi tola por alguns segundos, mas o vaso estilhaçado havia trazido sua lucidez de volta. Sua felicidade, seus sonhos, seu corpo, eram como esse vidro. Muito fáceis de quebrar.

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