A Quarta Colônia - Vera Cruz escrita por Plug


Capítulo 1
Capítulo 1 - Gordo salafrário traficante corrupto


Notas iniciais do capítulo

Este é o inicio de uma história que se desenvolve como em uma metamorfose. Começa como uma lagarta, feia e desconfortante. Então se torna um casulo sólido e confortável para desabrochar em uma borboleta que alça voo para lugares nunca esperados e aventuras cheias de emoção.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/763852/chapter/1

Queria pelo menos uma vez poder olhar para cima e ver um céu diferente do meu. Muitas vezes ouvi as histórias dos mais velhos sobre como era o mundo no seu tempo e sobre como era belo o azul anil que se estendia sobre nossas cabeças. Infelizmente isso foi perdido anos atrás e agora o que me resta é contemplar um céu de vidro.

O que quero dizer com isso? Bom, após um grande desastre envolvendo um meteoro, mísseis e explosões tudo que existe no alto é uma enorme nuvem cinza que bloqueia e reflete completamente a luz do sol e fez com que tudo se tornasse mais frio e morto.

Em pleno ano de 2116 os jovens como eu crescem sem conhecer as belezas que existiam na terra. A vasta vegetação que cobria a superfície, as inúmeras espécies dos mais belos e encantadores animais. Paisagens capazes de deixar qualquer um extasiado com apenas um vislumbre. Tudo isso não existe mais e apenas os arquivos de imagens salvos na rede podem apresentar para as novas gerações tudo o que elas perderam.

Atualmente vivemos no que chamamos de colônias, dentro de domos de vidro que nos separam do que está lá fora e garantem a sobrevivência com a produção dos gases essenciais para nossa sobrevivência e que estão cada vez mais em falta na atmosfera. Também servem para refletir e espalhar a luminosidade do farol colossal que existe no centro da colônia com uma fonte de luz incandescente que substitui o sol, além de controlar a temperatura interna e evitar que sintamos muito frio.

Atualmente existem quinze colônias espalhadas pelo mundo e divididas entre os continentes. Eu vivo na colônia Vera Cruz, que se encontra no território que antes compreendia ao Brasil. Vera Cruz é como uma cidade grande. Abriga um pouco mais que cem mil habitantes e é uma das maiores que existe, embora, mesmo assim, esteja ficando superlotada e sem possibilidades de crescer para os lados devido à grande muralha que nos protege e serve de sustentação para o domo.

Ninguém pode sair das colônias, não habitantes comuns como eu, apenas os militares conseguem esse tipo de permissão. Pelo que estudamos nas escolas, cada colônia é especializada na produção de algum tipo de necessidade para a sobrevivência. Vera Cruz é a maior produtora agrícola, o nosso subsolo é uma grande lavoura onde legumes, verduras, cereais e grãos modificados geneticamente são cultivados em grande escala mantidas por painéis de luz que simulam o brilho do sol e permite a fotossíntese. Nós importamos gêneros alimentícios e em troca recebemos outros produtos.

Também temos a vantagem de possuir muita água subterrânea, em lençóis freáticos. Infelizmente, por causa do domo, não conheço a chuva, mesmo que quando caia seja extremamente tóxica e ácida. Por sorte muitos lençóis se mantiveram puros e são bem explorados, o que permite o abastecimento da colônia. Devido a isso somos uma das mais prósperas do planeta também.

Depois de tantos fatos você deve imaginar que viver em Vera Cruz deve ser algo confortável se considerado o estado pós-apocalíptico do planeta, e de fato é. O problema é que isso só é verdade para a porção mais afortunada daqui, aqueles que vivem no centro, ao redor do farol e possuem belas casas e segurança garantida. Para quem vive nas extremidades, como eu, isso não é tão verdade. Os recursos são desviados e muito pouco chega aqui, vivemos com o mínimo para a sobrevivência, mesmo que nos acabemos de trabalhar para tentar garantir isso.

Não existe mais dinheiro ou qualquer tipo de moeda nacional. Tudo é comprado e conseguido em troca de horas de trabalho, todos que possuem carteira de trabalho possuem contas bancárias que computam suas horas de trabalho e as armazenam para o uso. Assim podem ser usadas para comprar o que for necessário. Todas as profissões e funções seriam iguais desta maneira, médicos, professores, eletricistas, políticos, faxineiros, todos teriam como pagamento o quanto trabalhassem, sendo assim, a única vantagem é o quanto você pode se dedicar ao trabalho. Porém, depois de um tempo, foram criadas regalias para alguns poucos, principalmente os políticos, que recebem horas extras mesmo que trabalhem o tempo normal. Além de conseguirem desviar os melhores recursos e fazê-los circular pelo centro e deixando os piores para as periferias.

Eu me chamo Alex Anori, tenho quinze anos apenas. Atualmente, sou um órfão morador de rua. Teoricamente deveria estar em um abrigo para pessoas como eu, que não possuem idade suficiente para poder se virar sozinho e precisam do apoio do governo. Porém, eu fugi do orfanato em que estava e passei a morar nas ruas, pelo simples fato de que estar aqui fora é mais seguro do que lá dentro. Muita coisa errada acontece nos orfanatos para meninos, o que faz com que estejamos optando por viver sozinhos do que lá. As meninas dão sorte porque são abrigadas por orfanatos religiosos, só para mulheres, onde apenas freiras e religiosas cuidam delas, mesmo que as religiões sejam cada vez menos expressivas.

Vera Cruz foi erguida dos destroços de uma antiga capital do Brasil. Quase nada é como era antigamente, mas algumas coisas se mantiveram, como o viaduto onde moro. Eu e mais um grupo de garotos de diferentes idades que vivem de doações de pessoas de bons corações e pequenos roubos.

Desta forma eu pergunto: O que você costuma fazer quando sente fome? Imagino que seja se dirigir até a cozinha abrir a geladeira ou o armário e pegar algo saboroso e interessante para comer. Agora eu lhe pergunto... O que você acha que eu costumo fazer quando sinto fome?

— Vai logo, Pingo!

— Calma! Tem gente lá.

— Vocês querem parar com isso? – Eu disse.

Lá estávamos nós. A quem me refiro? Aos meninos de rua que vivem debaixo do viaduto. Quando se vive nas ruas você precisa ser astuto, se quiser ter algo para comer todos os dias, ágil, para conseguir furtar sem ser pego e forte para não apanhar dos garotos mais perversos.

Nosso grupo, que vive sob o viaduto, é um dos mais organizados. Conseguimos nos dividir em subgrupos com tarefas específicas e tem funcionado. Eu fiquei encaixado em um dos “grupos de caça”. Chamamos assim os grupos que durante o dia vão em busca de alimentos. Ao total são três, somos livres para conseguir da forma como acharmos melhor. Os outros dois grupos costumam pedir ou recolher sobras de hospedarias e restaurantes. Já o meu grupo decidiu por uma abordagem mais efetiva, invadimos cozinhas e levamos o que conseguimos.

— Vamos precisar de uma distração. – Falei

Naquele momento meu grupo estava reunido em uma missão. Pingo, Joleno e eu formamos a equipe. O alvo era a casa de um político. Essa era uma das nossas normas, só roubar daqueles que roubam. A maioria dos políticos usa sua influência para conseguir privilégios, teoricamente não há diferença entre os tipos de trabalho, sejam eles de cunho intelectual ou manual, todos recebem igualmente. Porém, alguns conseguem burlar a igualdade e se beneficiar com isso.

— É com você pingo. – Joleno disse. – Dá a volta e bate na porta, quando ele for atender a gente age.

Estávamos nos fundos da casa, observando por cima do muro. Ali tínhamos a visão da cozinha da casa, que dava para uma área externa através de uma porta de vidro.

— Porque tem que ser eu? – Pingo protestou.

— Porque você só faz merda! – Joleno disse.

— Se vocês estragarem mais uma vez uma missão eu vou pedir para mudar de equipe. – Eu disse. Claro que era da boca para fora, mas precisava ser incisivo para poder pôr ordem na coisa. – Pingo, você é o melhor falando, aliás, você fala demais, se você conseguir conversar com o cara metade do que conversa quando está com a gente, dá tempo de limpar a geladeira dele.

— Babacas. – Pingo falou. – To nem ai para vocês dois... Só vou porque eu não to afim de ficar perto de dois traíras.

— Tá... – Joleno falou. – Agora vai logo.

— Quando ele cansar e fechar a porta na sua cara toca a campainha da casa mais uma vez, será o sinal para a gente sair. – Instrui.

— Certo. – Ele disse e pulou de cima da lata de lixo que estava usando de degrau.

Pingo era um dos mais novos que vivia conosco, tinha apenas oito anos. Recebera aquele apelido por ser baixinho e careca, lembrava um pingo de chuva. Ele vivia com os pais, sua mãe morreu vítima de Flagelo, uma das doenças que mais mata atualmente. Porém, seu pai logo apareceu com uma madrasta. Ela não gostava dele e manipulava o pai de Pingo para fazê-lo pensar que o filho era um delinquente e pegava muito no pé dele. Cansado de apanhar pelo que não fazia decidiu fugir de casa e passou a viver nas ruas, foi quando o encontramos e demos abrigo.

— Olha só o tamanho desse cara. – Joleno falava observando o político gordo com a bunda para cima remexendo a geladeira. – Deve ter tanta comida estocada naquela pança que daria para alimentar o pessoal por um mês.

O Joleno não era dos mais velhos, mas um dos que tinham mais tempo nas ruas. Seu nome exótico surgiu da vontade de seus pais de homenagear o membro de uma antiga banda que fez muito sucesso no seculo passado, ele conta que foi um grande fenômeno mundial. Ficou órfão aos seis anos de idade, quando seus pais morreram afetados pelo Flagelo. Por sorte foi recolhido pelo SAC – Sistema de Assistência ao Colono - e levado para o orfanato do governo. Ficou por lá durante um ano e então fugiu. Ele sempre muda de assunto quando perguntamos o motivo de ter fugido de lá, mas seja o que for, mexeu muito com ele, a ponto de não confiar em mais ninguém, a não ser o pessoal do viaduto, aqueles que eram iguais a ele.

Não demorou e ouvimos um som de sinos tocando. Era o Pingo com a distração. O político se pôs em posição ereta mais uma vez, fechou a porta da geladeira e se dirigiu em direção à porta. No instante seguinte, Joleno e eu saltamos o muro. Nas mãos trazíamos sacos de pano. Eu fui direto à geladeira e ele aos armários. Peguei o que achava na frente, muitos potes de legumes em conserva, muito raros. Também havia algumas frutas já cortadas, fui pegando. Joleno ficou com os alimentos transgênicos, estes por serem modificados geneticamente resistem mais tempo em temperatura ambiente. Quando meu saco já estava cheio me afastei da geladeira e me voltei para ver o Joleno, ou melhor, para não vê-lo.

— Droga! – Protestei pensando em voz alta.

Ele não estava mais na cozinha. Segui na ponta dos pés em direção ao próximo cômodo, havia um corredor com algumas portas, todas fechadas, exceto uma, por onde um filete de luz se projetava no chão. Fui até lá e espiei pela brecha.

— Tá maluco?! – Sussurrei da porta.

Aquele deveria ser o quarto do político. Joleno se encontrava agachado próximo à câmara de sono de última geração que ele tinha, de costas para mim.

— Cara, olha só isso... – Ele se virou para mostrar o que tinha em mãos.

— Puta merda... – Deixei escapar quando notei do que se tratava.

Havia uma maleta cheia de cápsulas com narcotes, pílulas que contêm substâncias alucinógenas ilegais. Aquele tipo de droga era cara, do tipo que não se compra com tempo de trabalho, era preciso dar algo em troca para conseguir, já que não existia mais uma moeda oficial. Pela quantidade que havia ali, aquele político não era apenas corrupto, também era traficante.

— Deixa essa merda ai e vamos dar o fora daqui, rápido. – Meu coração estava acelerado, batia no ritmo das batidas dos bailes de funk. – Não devíamos ter entrado aqui, estamos lidando com um peixe grande.

Joleno fechou a maleta e empurrou para debaixo da cama. Voltamos pelo corredor em direção à cozinha e ele foi pegar mais um pouco do que encontrasse pelos armários.

— O que é isso?! – Alguém gritou atrás de nós. Me virei apressado e me deparei com o gordo salafrário traficante corrupto. – O que estão fazendo em minha casa?

— Só fazendo uma visitinha mesmo... – Eu falei andando lentamente em direção à porta dos fundos, seguido por Joleno. – Mas já estávamos de saída.

Pus a mão sobre o balcão que estava atrás de mim, peguei a primeira coisa que achei e joguei. Era uma peça de cerâmica, voou em direção a ele e se espatifou contra a parede logo ao lado da cabeça do político. Gerou alguns segundos de distração que nos permitiu correr em direção ao muro para uma fuga.

Eu sempre fui bom nessa parte, conseguia correr rápido, saltava feito um alto e tinha um bom equilíbrio. Quando menos esperei já estava do outro lado do muro. Me voltei para ver o Joleno e ele não estava comigo. O saco de alimentos estava no chão, mas não havia sinal dele.

— E ai, como foi? – Era Pingo, se aproximando correndo.

Deu um cascudo forte na cabeça dele.

— Ai! – Protestou alisando a parte da careca que levaa o golpe. – Porque me bateu?

— Seu idiota! Não disse que era para tocar a campainha quando o político fechasse a porta na sua cara?

— Ué, eu achei que tinha dado tempo de vocês terem pegado tudo e saído. – Ele disse. – O coroa ainda deu moral para o meu papo, disse que eu poderia ser um político se quisesse.

— Tivemos um contratempo... – Senti vontade de dar outro cascudo nele, mas seria muito mais por raiva da situação em que estávamos do que pelo vacilo. – Pega isso aqui...

Entreguei os sacos de alimento para ele e parei um tempo para pensar.

— O que tá pegando? – Ele percebeu a minha aflição.

— O Joleno ficou. – Falei.

— O que?!

— Não vi o que aconteceu, mas preciso voltar lá para pegar ele.

— E o que você pretende fazer?

— Não sei... – Na verdade tinha algumas ideias, mas não queria perder tempo tentando explicar. – Pega os alimentos e leva até o viaduto, avisa aos outros sobre o que aconteceu, pede reforços.

— Pode deixar. – O garoto se virou para correr em direção ao seu destino.

— E Pingo! – Gritei. Ele parou e se virou para ouvir. – Avisa que é um tubarão baleia.

Ele engoliu um seco e continuou correndo. Em nossa experiência nas ruas temos que lidar com todo o tipo de gente que vive e se aproveita desse submundo onde vivemos. Desta forma, começamos a classificar os peixes desse mar de acordo com o seu grau de encrenca. Os garotos encrenqueiros de outros grupos nós chamamos de piabas, nem preciso explicar o motivo, são como nós, sem importância alguma. Os que acabam se envolvendo com o tráfico e auxiliam nos “negócios” chamamos de tilápias, porque se reproduzem facilmente, direto aparecem novos por ai e são problemas para os peixes pequenos. Também tem as piranhas, que são os aliciadores, aqueles que ficam rondando os grupos em busca de alvos fáceis e papam tudo que aparece, não fazem distinção. Os grandões nós chamamos de tubarões, são os que mandam na porra toda e as baleias são os políticos corruptos, que por vezes estão envolvidos em negócios sujos, como é o caso do sujeito em questão, que além de ser uma baleia é um tubarão.

O mais engraçado de tudo isso é que embora usemos todas essas denominações baseadas em animais, nenhum de nós chegou a ver qualquer um deles pessoalmente e nem poderá ver.

Mas, naquele momento, eu tinha coisas mais importantes com as quais me preocupar. Voltei a subir nas latas de lixo para poder olhar por cima do muro. Não havia mais ninguém naquela área, nem na cozinha. Se o tubarão-baleia pegou o Joleno, deve tê-lo levado para algum tipo de cativeiro onde espanca os seus inimigos para conseguir informações. Sacudi a cabeça para afastar aquelas ideias, no que eu estava pensando? Estava em um filme policial agora?

Saltei o muro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

ps: Pingo mereceu o cascudo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Quarta Colônia - Vera Cruz" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.