This Side of Paradise escrita por May


Capítulo 1
I've never been in love, i've been alone...




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Era consenso que as Diamantes eram os seres mais perfeitos a terem desabrochado das entranhas da terra. Líderes natas, elas já surgiam no universo com o propósito de criarem gems que as servissem, expandirem seu império e imortalizarem seus nomes nas estrelas.

As três Diamantes originais duvidavam que sua “irmã” mais jovem fosse capaz de tais feitos.

Fora difícil esconder a decepção quando Diamante Rosa surgiu se mostrando muito aquém das expectativas. Pequena demais para os padrões, desastrada e impertinente, curiosa demais a respeito de formas de vida inferiores e incapaz de exercer comando. Uma Diamante desbotada era uma desgraça, uma mancha no seleto grupo que só admitia a mais absoluta perfeição.

O destino de gems desbotadas era indiscutível: destruição. Mas as outras Diamantes se viram incapazes de dar cabo da existência da mais jovem. Usaram desculpas típicas como “isso dará um mau exemplo” e “não podemos deixar que o boato de uma possível imperfeição em cada uma de nós se espalhe”. Mas a verdade era uma só: amavam Rosa, com todas as imperfeições que vieram no pacote. Nesse caso, o mais sábio era designar uma função mais decorativa a ela, colocando-a como um dos rostos da ordem, mas sem poder para exercer. Isso não agradou a mimada Rosa, que exigia as mesmas regalias das irmãs, dando chiliques de proporções estelares caso não tivesse suas vontades atendidas.

Depois de muito choramingar e implorar, Amarelo e Azul cederam e lhe deram o que ela tanto queria: uma colônia só dela, um planetinha insignificante na Via Láctea chamado Terra. Pequeno, com terreno muito propício à produção de soldados quartzo e nos confins do cosmos. Até uma rubi seria capaz de dar conta do recado.

Construíram uma base no satélite que orbitava o planeta, deram as instruções básicas e despacharam Rosa para cuidar de suas responsabilidades, ordenando que ela só as contatasse em caso de problemas. Aquilo seria tanto uma oportunidade para Rosa amadurecer quanto para que as outras três ficassem livres das cretinices da “irmã” por alguns milênios. A união do útil ao agradável.

Rosa agora tinha uma base lunar inteira para monitorar a progressão de sua colônia. Sua única companhia? Uma pérola, dada de presente pelas outras três numa tentativa de aplacar seus chiliques. A pérola ficava parada ao seu lado como uma estátua, fitando o vazio com aqueles olhos azuis estranhamente robóticos, falando apenas quando solicitada e se portando mais como uma peça de decoração do que como uma gem propriamente dita.

Rosa suspirou, os dedos tamborilando no painel de controle. Ela queria alguém para conversar, alguém que a entendesse, desse-lhe conselhos e a guiasse sem soar condescendente, não uma boneca bonitinha sem um pingo de vontade própria. Se aquela era a única companhia que teria pelas próximas centenas de anos enquanto esperava os soldados quartzo emergirem, acabaria se auto-corrompendo de tanto tédio.

 

* * *

 

Pérolas eram tidas como as serviçais perfeitas. Criadas para serem subservientes e agradáveis aos olhos, elas poderiam ser usadas tanto para a manutenção dos afazeres de suas donas quanto como bibelôs bonitos para serem exibidos em confraternizações. Não questionavam, não desobedeciam, não moviam sequer um dedo sem o consentimento de sua senhora. Nem sequer pensavam se não lhes fosse permitido.

Pérola sabia que deveria ser assim, e o fato de não conseguir corresponder àquelas exigências a matava por dentro.

Oriunda de uma linha feita especialmente para servir Diamante Branca, ela fora escolhida sem muita ponderação pelas três Diamantes originais para presentear a mais jovem da ordem. Fora enfeitada com as cores da ordem, o que deveria simbolizar a união entre as Diamantes e o afeto das três originais para com Diamante Rosa, mas que acabara soando como um advertência cruel: você está presa a nós, você pertence a nós e você está abaixo de nós. Só conseguiu chegar até aqui porque assim permitimos, e aqui está um pequeno lembrete disso.

Era em momentos como aquele que Pérola era obrigada a encarar toda a sua imperfeição: ela não devia ser capaz de pensar aquelas coisas. Ela sequer devia ser capaz de pensar sem permissão. Mas ela se pegava questionando certas atitudes na privacidade de sua cabeça, especialmente as de sua nova dona, que não eram nada do que se esperava de uma Diamante. Que tipo de matriarca de um império tão glorioso quanto os das gems perguntava a opinião de uma criada sem autonomia com tanta casualidade, como se elas fossem velhas amigas discutindo as novidades daquele ciclo de rotações?

Pérola temia por sua existência. E depois de alguns quartos de translações, passou a temer pela existência de sua senhora também. Mesmo na privacidade da base lunar, a anos-luz da galáxia de Homeworld, ela ainda se sentia vigiada. Se alguma das gems monitorando a colônia contatasse a base e as visse papeando casualmente, ou pior, se alguma das outras Diamantes fizessem isso, ser substituída seria a menor de suas preocupações. E sua senhora seria punida também, e ela não desejava isso. Não sabia bem o porque, mas estava começando a criar uma certa afeição pela Diamante que tão pouco se portava como uma, tagarela, excitável e que parecia não ter noção da própria posição. Não queria que algo de mal acontecesse a ela. Por isso desempenhava seu papel o melhor que podia, falando só quando ordenada, limitando-se a concordar com tudo o que ela dizia e a elogiá-la por qualquer mínimo progresso. O esperado de qualquer pérola. Mas aquilo não parecia agradar Diamante Rosa, cuja expressão mudava de esperançosa para desapontada toda vez que Pérola educadamente cortava suas tentativas de estender as conversas.

Aquilo era errado. Era sua obrigação como pérola fazer sua dona feliz. Mas Diamante Rosa não estava feliz. Uma gem imperial, a líder grandiosa e perfeita que tinha um planeta inteiro na palma da mão agora olhava para as imagens que surgiam em flashes na tela do painel com uma expressão que beirava o desgosto.

O que Pérola poderia fazer para deixá-la feliz sem que isso comprometesse sua posição? O quê?

 

***

 

A resposta surgiu quando as primeiras ametistas quebraram a crosta da Terra.

Diamante Rosa não cabia em si de empolgação. Pérola viu ali a chance de agir, fazendo uso da Esfera de Observação para projetar os acontecimentos no Jardim de Infância Prime nas paredes da base. O deleite de Diamante Rosa com as conveniências tecnológicas ao seu dispor durou pouco: a Esfera permitia que imagens fossem exibidas, mas não permitia interação direta com elas. A pobre Diamante cabisbaixa se viu observando as ametistas brotando da terra uma a uma sem poder dar as boas vindas a nenhuma delas.

Mais tarde, ela se perguntaria onde ela estava com a cabeça para ter uma ideia daquelas. Era loucura, uma violação de todos os códigos de etiqueta impostos, e ainda assim era o que faria sua Diamante feliz.

Se disfarçar de soldado quartzo foi uma ideia que Diamante Rosa acatou com enorme empolgação. Ela inclusive imitou com perfeição a ametista que Pérola imaginou como sendo seu avatar, o que a surpreendeu. As cores estavam erradas, mas ametistas não eram exatamente os seres mais inteligentes do universo, então poderiam passar despercebidas. Ela se pegou pensando em como sua Diamante ficava bem como uma soldada de ombros largos, cabelos volumosos e encaracolados, aquelas mãos grandes que poderiam facilmente circular sua cintura fina... depois precisou virar o rosto para esconder o rubor, escandalizada com a própria saliência. Sua Diamante merecia mesmo coisa melhor do que uma pérola imperfeita.

Chegaram ao seu destino na hora certa: os resultados das injeções de minerais ao longo dos séculos brotavam bem diante de seus olhos, enchendo o Jardim de Infância de vida. Sua Diamante, empolgadíssima com o fervo, imediatamente correu para se misturar às ametistas. Era impressionante como ela tinha mais facilidade para se encaixar ali do que em seu próprio círculo social, sua personalidade extrovertida e espalhafatosa fazendo-a ser rapidamente aceita entre as soldadas amistosas. Completamente inapropriado para uma Diamante, e ainda assim Pérola não conseguiu impedir que um sorriso terno tomasse suas feições.

Teve que impedi-la de seguir com o restante da infantaria, porém. Era riscos demais para se tomar em um único dia. Mas Diamante Rosa parecia estar se divertindo tanto, rindo e brincando como Pérola nunca a vira fazer... seria uma pena estragar aquela felicidade toda. Bem, uma voltinha pelas proximidades não faria mal algum, não é? Elas estariam de volta à base lunar em um estalar de dedos. Sim, só uma voltinha então! Qualquer coisa para ver aquele sorriso no rosto de sua Diamante permanecer.

Levaria algum tempo para Pérola perceber que tomara aquela decisão por conta própria e que não se sentira culpada por isso.

 

***

 

Tudo na Terra tinha tanta... cor. Seus olhos não estavam habituados àquele tipo de saturação. Em Homeworld tudo era muito frio e sóbrio. Era tanto uma representação da ordem que era prezada acima de tudo quanto da incapacidade do planeta de continuar a gerar vida, tendo sido sugados seus últimos recursos no início do império. Mas a Terra era uma explosão de tons sem a menor harmonia, como se uma entidade cósmica colossal tivesse virado um balde cósmico colossal cheio de tintas cósmicas em cima do planeta. O resultado era caótico, uma desorganização que suas irmãs desprezariam sem pensar duas vezes.

Mas ela, Rosa, estava amando cada segundo daquilo.

Ali, explorando os diferentes cenários e a vida neles contida, sentindo entre os dedos os grãos de terra, a água, a areia, a maciez de uma pétala de flor ou a aspereza de uma vinha espinhosa, vendo os animais que corriam, rastejavam, voavam, nadavam, saltavam e faziam sons que se misturavam numa cacofonia, vendo os raios da sol fazendo feixes brilhantes em seus novos cachos e tendo ao seu lado a Pérola que se mostrava mais falante e animada do que ela jamais vira, ela se sentia mais em casa do que em seu próprio planeta natal.

Como ela nunca pensara em descer ali antes? Estivera perdendo aquela maravilha por séculos e nem fazia ideia! Precisava agradecer a Pérola milhares de vezes mais; se não fosse por ela, ainda estaria na base lunar quase pirando de tédio. De quando em quando virava-se para ela, tencionando fazer justamente isso, mas acabava se deparando com os olhos azuis pregados  em seu rosto, o que fazia com que a outra enrubescesse, murmurasse um pedido de desculpas por estar encarando e desviasse o olhar. Mas Diamante Rosa não se incomodava com isso; sendo quem era, já estava acostumada a ser encarada. O que chamou a atenção foi a mudança nos olhos de Pérola. Aquela estranha fixação robótica havia diluído e dado lugar a um interessante brilho. Uma faísca de curiosidade, uma pontadinha de apreensão e um tiquinho de nada de travessura. Se Rosa tivesse um estômago, ela provavelmente estaria sentindo algumas borboletas batendo asas dentro dele.

Quer dizer que sua companheira não era só um adorno ambulante? Também era capaz de pensar, de sentir? A curiosidade tornou a tarefa de se manter calada impossível.

— Ei, Pérola.

— Sim, Minha Diamante? – Ela imediatamente fez uma mesura, e Rosa precisou se segurar para não revirar os olhos.

— O que é que você está achando de tudo isso?

— Eu, hã... Perdão?

— Perguntei o que você acha disso. – Ela indicou a paisagem diante delas com um gesto amplo dos braços – Quero dizer, olhe só esta vista! Você já viu algo assim em algum outro lugar?

— Hã... Temo que não, Minha Diamante.

— Não é fascinante? Essas cores, esse brilho, essas formas de vida! Em que outro planeta poderíamos ver algo assim?

— Não sei dizer, Minha Diamante. Eu nunca havia deixado Homeworld antes de ir com vossa senhoria para a base lunar.

Rosa se voltou para ela, surpresa. Pérola corou e baixou os olhos, parecendo espantada consigo mesma. Não era do feitio de uma pérola falar sobre si mesma.

— P-Perdão, Minha Diamante, eu não pretendia-

— Por que não? Você não fazia parte da corte da Branca?

Ela não respondeu de imediato, mordendo o lábio inferior em incerteza. Por um segundo, Diamante Rosa pensou que ela não responderia e se perguntou com um certo pesar se teria que ordená-la a fazê-lo, mas logo Pérola suspirou delicadamente e se pôs a falar.

— Eu não era muito... quista entre as pérolas que serviam Diamante Branca. Não sou de boa qualidade, me diziam. Eu... tinha dificuldade de me por em meu lugar.

— Como assim?

— Às vezes, eu falava quando não solicitada. Fazia perguntas às minhas colegas quando deveria ficar calada. Já me peguei até cantarolando enquanto trabalhava, coisa que Diamante Branca detestava. Eu tive muita sorte em não ser substituída. Eu devia ter sido substituída. Eu sou uma pérola desbotada, defeituosa. Eu... eu sinto muito que você esteja presa a mim, Minha Diamante. Você merecia uma pérola de melhor qualidade.

Diamante Rosa não disse nada. Ela nunca tinha ouvido Pérola falar tanto, ainda mais sobre si mesma. E olhando sua expressão envergonhada e cabisbaixa, como se tivesse se resignado a uma possível punição, ela se perguntou se não estaria vendo uma contraparte de si mesma. Uma pérola defeituosa para a diamante defeituosa.

Pérola ergueu a cabeça de um salto quando a mão grande da soldado quartzo que era sua senhora pousou sobre seu ombro. Seus olhos se encontraram, e num sussurrou quase inaudível, Rosa disse:

— Eu não escolheria nenhuma outra.

E virando-se para frente antes que pudesse ver a reação da outra, Rosa tomou a pequena mão na sua e prosseguiu com a caminhada.

 

***

 

A pequena família de humanos foi uma surpresa.

Era a primeira vez que viam a espécie dominante do planeta em carne e osso. Assemelhavam-se a primatas sem pêlos e sem cauda, usando vestimentas feitas de couro animal. Primitivos como descritos nos arquivos coletados pelas batedoras, mas ao contrário da descrição, não pareciam rudes e sem inteligência.

Pérola observou como os dois maiores eram protetores com os pequenos. Ela viu quando um dos maiores deu uma palmadinha encorajadora no ombro de um dos menores. Viu como sorriam um para o outro, conversando numa língua que nenhuma das duas entendia. Mas ela podia ouvir distintamente o tom caloroso e amigável. E criaturas sem inteligência não seriam capazes de se comunicar e transmitir sentimentos reconhecíveis daquela maneira, seriam?

Voltou-se para Diamante Rosa, surpreendendo de relance um olhar contemplativo. Os lábios grossos se cerraram numa linha de desagrado, e Pérola se perguntou se a visão dos humanos a incomodara. Era uma espécie que precisaria ser expurgada para a manutenção da colônia, afinal. Aquele pensamento, estranhamente, não lhe trazia nenhuma satisfação.

No caminho de volta, ela não suportou mais o silêncio pesado e desconfortável que havia se instalado entre as duas. Voltou-se para sua Diamante deprimida e perguntou o que a incomodava. E a resposta que ela lhe deu a chocou mais do que qualquer coisa que já ouvira nos últimos séculos.

— Toda essa vida que tem crescido aqui na Terra... nada disso sobreviverá à minha invasão. Nós não estamos criando vida a partir de nada. – Ela levantou os olhos, e sua expressão era atormentada – Nós estamos acabando com a vida... e não deixando nada para trás.

Vendo a expressão de pura tristeza no rosto de sua Diamante, Pérola só podia concluir que havia sido um erro tê-la trazido até ali. Mas então ela afirmou que precisava ver aquilo, e Pérola viu sua expressão mudar drasticamente. Com a chuva caindo pesadamente a sua volta, elas fizeram seu caminho de volta ao Jardim de Infância em silêncio. E Pérola nunca de esqueceria, por todos os milhares de anos que viveria dali para frente, do semblante de pura determinação que estaria sempre presente no rosto de sua Diamante dali em diante.

 

***

 

— Isso não é certo. Essa colônia tem que acabar.

Rosa não se surpreendeu ao ver a expressão atônita de Pérola.

— Acabar? Mas- Mas como, Minha Diamante?! Por que quer abandonar sua colônia assim, sem mais nem menos?!

Depois de seu pequeno passeio, a relação das duas melhorara consideravelmente. Pérola já não se portava mais como um robô adornado. Respondia perguntas com um sorriso, estava sempre disposta a uma conversa casual e até se permitia algumas risadas de vez em quando. E como mostrado, já não mais hesitava em questionar suas decisões.

— Essa colônia não deveria sequer ter começado. Não viu o que só o Jardim de Infância Prime foi capaz de fazer, Pérola? Todo aquele terreno fértil e verdejante foi sugado e secado até não sobrar nada. Imagine quando isso começar a ser feito em larga escala. – Rosa juntou as mãos sobre o peito, os olhos transbordando agonia – Este planeta vai se tornar uma casca vazia, sem vida nenhuma. Só mais um planeta na conta do império das Diamantes. Tantas formas de vida fascinantes, todas sendo mortas só para estabelecer mais uma conquista... formas de vida que, ao contrário de nós, crescem e se desenvolvem... o que vamos tirar delas, Pérola? Todo o potencial, toda uma infinidade de possibilidades a serem exploradas! Este planeta não merece isso. E eu sei que você concorda comigo.

Pérola engoliu em seco. Rosa havia visto como ela parecera pouco satisfeita com a perspectiva de transformar aquele planeta em uma concha seca e vazia. E isso sem precisar de sua influência. Ela estava gostando cada vez mais da autonomia que sua pérola aos poucos exibia. Não era só uma criada sem vontade própria, afinal. Era alguém que, assim como ela, vira a beleza e o valor naquele estranho planetinha azul.

— Eu... Eu concordo, Minha Diamante. Sabe que tem o meu apoio, mas... como fará para convencer as outras Diamantes?

Aquela é que era a parte mais difícil. Rosa apertou a ponte do nariz com o polegar e o indicador. Ela tinha uma árdua batalha pela frente.

— Eu ainda não sei, Pérola. Mas eu vou conseguir, ah se vou.

É claro, falar era mais fácil do que fazer. Não era de hoje que seus apelos caiam surdos nos ouvidos de Amarelo e Azul, mas a gravidade da situação a deixava ainda mais frustrada e irritadiça que o de costume. Amaldiçoou sua habilidade em fazer birra, pedindo por uma colônia até conseguir, porque agora suas irmãs não permitiam que desse cabo dela.

— Você queria uma colônia, não queria? Agora você a tem. Então seja responsável, aja como uma Diamante e termine-a! – Amarelo comandou.

— É com essas formas de vida inferiores que está preocupada? Não seja absurda, Rosa. Se quer tanto brincar com humanos, seu problema pode ser facilmente resolvido. – Azul balançou a mão num gesto desinteressado.

A construção do zoológico de humanos fora a gota d’água. Como elas se atreviam, atirando aquelas pobres criaturas em jaulas quando elas mereciam ser livres no planeta que era delas por direito?!

— Não foi sua culpa, Minha Diamante. Não poderíamos imaginar que elas fariam algo assim. – Pérola tentou confortá-la.

— É minha culpa sim. Eu deveria ter sido mais específica, deveria ter tido coragem de dizer o que este planeta significa para mim. – Ela balbuciou – Mas eu tive medo.

— Medo?

— Se eu disser para elas como realmente me sinto sobre a Terra, elas chegarão à conclusão de que não tenho maturidade para comandar uma colônia. Elas a tomarão de mim e... terminarão elas mesmas o que eu comecei. – Seus olhos encontraram os de Pérola, levemente marejados em terror e infelicidade. E Pérola, quase que automaticamente, agarrou sua mão direita e deu palmadinhas gentis nela.

— Vamos tentar uma abordagem mais direita, Minha Diamante. Por que não contata as duas ao mesmo tempo? Tente expor seu ponto de vista mais claramente, sem fazer rodeios. Q-Quer dizer, eu não estou dizendo que seu método até então foi ruim, mas pode ser sábio tentar outra-

— Isso, Pérola! Isso pode dar certo! – Ela comemorou empolgada, puxando Pérola para um apertado abraço que a fez ofegar.

Mas esse plano também não surtiu efeito. Pelo contrário: Amarelo e Azul já estavam cansadas dos constantes chamados e das suas desculpas esfarrapadas, e a conversa via comunicador rapidamente se transformou numa senhora reprimenda.

— Nós confiamos que você seria capaz de levar essa colonização adiante, Rosa. Confiamos na sua capacidade de coordenar e liderar. Mas tudo o que você quer é ter os seus caprichos atendidos. – Diamante Azul soava desapontada – Já lhe demos um zoológico cheio de humanos. O que mais você quer pedir agora?

— Eu só quero poupar este planeta! Se vocês me deixarem explicar, se virem todos os dados que eu coletei, tenho certeza de que entenderão-

— Não estamos interessadas em dados que não tem relação com o progresso da colônia. - Diamante Amarelo a cortou - Pare de perder tempo com essas tolices sem importância, Rosa. Não jogue fora nosso voto de confiança, não costumamos dá-lo duas vezes. Se continuar a nos importunar com essa estupidez, não atenderemos mais nenhuma de suas ligações e você ficará totalmente por conta própria. Isso ficou claro?

Não deram a ela a chance de responder, encerrando elas mesmas as chamadas. O silêncio ressoou como um gongo na base lunar. Diamante Rosa continuou a encarar o ponto onde as projeções do comunicador estiveram segundos antes, sentindo uma estranha sensação de formigamento subindo por seu corpo. Uma fúria colossal, maior e mais séria do que qualquer um de seus chiliques habituais tomou conta dela.

Então elas a achavam estúpida e imatura demais para lhe dar atenção? Não a ouviriam por bem? Pois bem. Ela conhecia alguém que elas iriam ouvir, gostando disso ou não.

Pérola deu um passo para trás quando sua forma física perdeu a solidez e se retorceu numa massa de luz. E então lá estava ela, outra vez a soldada quartzo, uma expressão de tempestuosa ira tomando suas feições.

— Siga-me, Pérola.

— P-Para onde vamos, Minha Diamante?

— Para a Terra. Onde há mais espaço do que aqui.

— E o que vamos fazer lá?

Os olhos escuros cintilaram com voracidade.

— Eu vou ensinar você a lutar.

 

***

 

Depois do choque, das inúmeras negações e da hesitação, Pérola decidiu que gostava do peso das espadas em suas mãos.

Era uma serviçal, um adorno. Não havia sido feita para o combate, essa era a função de um quartzo. E ainda assim, ao ver o brilho letal das lâminas afiadas em sua posse, ela sentia um prazer que beirava a gana. A sensação de poder e de controle sobre si mesma era inédita, assustadora e maravilhosa, tudo combinado aos incentivos de Diamante Rosa, que assumira o papel de sua tutora.

— Isso! Muito bom! – Ela exclamou quando Pérola conseguiu bloquear mais uma estocada – Eu juro, Pérola, você tem muito jeito para isso!

— Não sou nada comparada a você, Minha Diamante. – Ela sorriu com prazer – Mas me permite fazer uma pergunta?

— É claro.

— Por que decidiu que preciso aprender a lutar com espadas?

— Ora, eu não posso iniciar um ataque à colônia sozinha. Preciso da sua ajuda.

Pérola parou no ato de girar a lâmina, os olhos esbugalhados de espanto.

— Você... precisa de minha ajuda?

— É lógico! No momento você é minha única aliada. Vamos espantar todas as gems que estão aqui juntas. Elas nunca precisaram lidar com uma rebelião, então não saberão o que fazer.

— Mas e as outras Diamantes?

— Elas não se importam, Pérola, não vê? Azul e Amarelo só ligam para o que diz respeito a elas. – Ela resmungou com amargura – Eu não passo de uma pedra no sapato. A Diamante defeituosa.

— Você não é defeituosa!

— Não precisa mentir para mim. Eu vejo como minhas irmãs sempre tiveram vergonha de mim. Por isso não me deixavam ter minha própria corte, meu próprio exército, meu próprio planeta. – Ela se sentou no chão, encarando as pedras próximas ao riacho enquanto cerrava os punhos – Não posso contar com o apoio delas porque elas nem me consideram uma delas. E no fundo eu sempre soube disso. Sempre soube que estava sozinha.

Pérola não soube o que dizer. Sentou-se ao lado dela, e ambas ficaram em silêncio por alguns minutos enquanto contemplavam a água corrente.

— Gostaria de fazer outra pergunta, se não se importar.

— Vá em frente.

— O que você viu neste planeta, afinal? O que há nele que te encantou, que te deixou tão determinada a protegê-lo mesmo que ao custo do seu status?

Diamante Rosa pareceu considerar a pergunta. Na forma de soldada quartzo, ela parecia muito mais natural quando colocada em contraste com a paisagem, o vento agitando seus cachos cor-de-rosa, a água cristalina borbulhando perto de seus pés. Ela apanhou um seixo e atirou-o contra a superfície do riacho. Ele foi quicando na água até parar na outra margem.

— É porque este planeta é uma bagunça. Aqui nada faz sentido, nada tem um propósito pré-estabelecido. Aqui, você precisa inventar as coisas. Você precisa ir atrás de um sentido, de um propósito. É exatamente o que eu venho fazendo desde que brotei do solo. Buscando um propósito para minha existência. E eu sinto que posso encontrá-lo aqui, no meio de toda essa vida que está em mudança constante. Eu quero conhecer tudo o que ele tem a oferecer. Quero experimentar todas as possibilidades. E eu quero que os seres que vivem aqui também possam fazer isso, especialmente os humanos. Que criaturas fascinantes.

— Fascinantes. – Pérola repetiu, os olhos fixos nela. Por um instante, ela se esqueceu de que estava falando com a Diamante a qual pertencia. O que ela via era uma soldada quartzo que se desgarrara de seu batalhão ao descobrir as maravilhas que a Terra tinha a oferecer, ao ponto de querer abrir mão de seu propósito para se reinventar. E ela era a pérola também desgarrada que, graças a ela, também teria a mesma oportunidade.

Fechou os olhos e balançou a cabeça. Não. Não haveria reinvenção para ela. Uma pérola tinha seu propósito, toda gem tinha seu propósito, era absurdo ir contra sua programação, era...

— Bem, vamos continuar? – Diamante Rosa convidou, estendendo a mão, que Pérola aceitou com uma sensação estranha que se espalhava do seu braço até seu peito e tronco. Um calor curioso, quase aconchegante.

Treinaram até a lua cheia chegar para iluminar o céu. O brilho prateado dava ao cenário noturno uma aura quase mística. O embate era agora quase uma dança, as lâminas refletindo a luz pálida da lua, cortando e circulando, o som de metal contra metal soando melódico. E o sorriso no rosto daquela que valsava com ela era tudo o que Pérola enxergava na noite.

Ela também se sentira solitária por muitos milênios. A pérola defeituosa que ninguém queria por perto. Mas ali, naquele planeta tão estranho, usando espadas sob a luz da lua e conhecendo melhor a gem a quem fora designada, ela sentiu que não se importaria mais em permanecer sozinha, se pudesse ficar sozinha com ela.

 

***

 

Rosa tinha que admitir que estava bastante orgulhosa, tanto por Pérola quanto por si mesma. Como gems rebeldes, elas acabaram criando um renome bastante infame. Seus ataques constantes ao Jardim de Infância, suas tentativas de impedir a destruição de moradias humanas e suas escapadas épicas as tornaram bastante conhecidas, tanto na colônia quanto fora dela. Foi então que ela decidiu que, já que eram tão notórias, seu pequeno contingente de duas merecia um nome próprio.

— Crystal Gems? – Pérola repetiu, uma sobrancelha se arqueando em dúvida. Rosa riu com gosto.

— Não é legal? Eu mesma inventei.

— Sim, eu sei. Mas não entendi esse Crystal...

— É porque somos transparentes. Não somos obscuras e escusas como outras gems malvadas. Somos sempre verdadeiras na nossa busca por justiça. – Ela disse com convicção, fazendo uma pose heróica que arrancou uma risadinha de Pérola – Somos sempre abertas, cristalinas. Por isso somos-

— As Crystal Gems. Entendi agora. – Pérola imitou sua pose, exagerando ainda mais nos movimentos, e Rosa riu ainda mais alto. Sua pequena Pérola a fascinava cada vez mais.

Logo chegou ao conhecimento delas que seus pequenos feitos atraíram a atenção da corte de Diamante Azul. Elas iriam até a Arena Flutuante para investigar, e Rosa achou que aquela seria a oportunidade perfeita para realizar o susto derradeiro.

— Tem certeza que pretende atacar a corte de uma Diamante? Se formos pegas, será o nosso fim. – Pérola a lembrou com receio.

— Não seremos pegas. Tudo o que eu quero é dar um belo susto na Azul. Quando ela ver o tipo de atrocidade que a Terra pode proporcionar, vai desistir do planeta na mesma hora. – Ela segurou as mãos de Pérola nas suas, os olhos brilhando – A Terra vai estar enfim livre dessa tirania!

No fim, Pérola concordou. Ela sempre concordava.

O ataque se iniciou como planejado. Pérola estava agora letal com duas espadas na mão, dando trabalho até para soldadas quartzo. Rosa não teve dificuldades contra duas das três rubis que protegiam uma safira. Quando Pérola cortasse a pequena aristocrata diante de toda a corte, Diamante Azul perceberia como a situação era séria. Desistiria da colônia e deixaria a Terra em paz. Tinha que deixar.

Mas seus planos foram por água abaixo quando a rubi remanescente, suicida como só o seu tipo sabia ser, agarrou a safira e saltou para longe do alcance da espada de Pérola. O que ninguém ali esperava, fosse a corte, fossem as rebeldes, era a massa de luz ondulante que engolfou os corpos diminutos das pequenas gems agarradas uma a outra. A massa tomou forma, se alongou, se encurvou e se dissipou, revelando a criatura mais bizarra em que Rosa já pusera os olhos, uma confusão de cores desordenadas e três olhos dispares que se abriram e piscaram primeiro em confusão, e depois em choque absoluto.

Pérola e ela encararam o espetáculo, abismadas, esquecendo-se momentaneamente do que vieram fazer ali até que a corte de Diamante Azul fez questão de lembrá-las. Estavam sendo cercadas. Precisavam sair dali, já.

Agarrou Pérola e saltou para o ar, subindo o mais alto que podia e depois descendo na diagonal para o mais longe possível da arena. E durante toda a descida, Pérola e ela foram incapazes de trocar uma só palavra, ainda espantadas demais com o que tinham presenciado.

Aquilo era uma fusão, não havia a menor dúvida. Mas uma fusão de duas gems completamente diferentes? Como aquilo era possível?! Era sem precedentes, surreal, absurdo!

E era absolutamente, indiscutivelmente e indubitavelmente fascinante!

Como, como ela nunca pensara naquela possibilidade? Ficara tão focada nas mudanças que a Terra proporcionava às suas formas de vida que não considerara a possibilidade de ela operar o mesmo em formas de vida visitantes? Mas como gems poderiam mudar? Elas brotavam da terra já sabendo seu propósito, e isso nunca mudava.

E uma rubi e uma safira, ainda por cima! Um soldado comum e uma aristocrata com poderes de vidência. Duas gems completamente diferentes e que ainda assim foram capazes de se unir numa fusão como ela nunca havia visto. E do que aquela fusão era capaz? Como pensaria, como agiria sendo feita de partes que eram o oposto uma da outra? Sua cabeça fervilhava ao considerar todas as possibilidades, o fascínio e a curiosidade a fazendo praticamente vibrar.

Pérola se manteve calada durante toda a noite e maior parte do dia seguinte enquanto ela continuava a tagarelar. Rosa chegou a se perguntar se ela ainda estava em choque com a cena inusitada que presenciaram no dia anterior, mas sua expressão contemplativa denotava que ela também estava fazendo profundas considerações sobre tudo o que sabia, ou pensava que sabia. Aquilo acirrou seu deslumbre e ela desatou a falar ainda mais alto, tão distraída em suas conjecturas que demorou a perceber Pérola se movendo.

— Dá para imaginar como deve ser a sensaçãããÃÃÃOOOO-

Sacudindo os braços desesperadamente para se equilibrar, Rosa considerou com assombro o fato de Pérola ter engatinhado para debaixo de suas saias, segurado-a pelas plantas dos pés e tê-la erguido do solo acima de sua cabeça. Pelas estrelas, quando ela havia se tornado tão ousada?!

— Fusão ativada! – Pérola gritou quase triunfante antes de capengar para o lado, perdendo o equilíbrio. As duas foram parar no chão numa confusão de braços, pernas e saias esvoaçando. Rosa balançou a cabeça, ainda um pouco tonta e completamente espantada com o que acabara de acontecer, até ouvir Pérola gritar.

— Oh! Eu pensei... – Ela gaguejou, parecendo só então perceber o que acabara de fazer e ficando horrorizada com a própria ousadia – Eu pensei que se uma rubi e uma safira... mas você é uma Diamante! – Ela quase guinchou, fechando os olhos com força escondendo o rosto na mão esquerda – Me perdoe! O que eu estou fazendo? Eu preciso ser substituída imediatamente!

— Não! – Rosa exclamou sem pensar. A ideia de Pérola ser substituída sequer passara por sua cabeça, e a possibilidade a encheu de medo. Pérola substituída? Impensável, inaceitável! Ela não merecia, não conseguia mais se imaginar vivendo naquele planeta sem ela e.. Espere, o quê?

— Mas... eu estive imaginando coisas. Até quando você não me pede para imaginar. – Pérola balbuciou, os olhos muito esbugalhados e mais expressivos do que Rosa jamais vira – Eu fico imaginando que eu fugi e encontrei você aqui, na Terra. Uma... uma Rose Quartz.

Uma Rose Quartz. Era a primeira vez que ela ouvia tal definição. E naquele momento surreal, nada parecia tão perfeito e tão certo quanto aquilo.

— E eu não sou sua, mas eu faço você muito feliz de qualquer jeito! – Ela juntou as mãos, sorrindo nervosamente, parecendo prestes a chorar – Hahaha! Isso não é ridículo? Diga-me para parar.

Ouve uma explosão de alguma coisa no seu peito, alguma coisa que ela ainda não sabia definir, mas que era mais forte e mais certo do que tudo o que já vivenciara. Uma epifania, talvez, uma certeza que a arrebatou com uma potência esmagadora. Naquele momento, aquela Pérola diminuta e trêmula em descrença era a criatura mais fantástica que já encontrara em todos os seus milênios de existência. Segurou-a pelos ombros, querendo se afundar naqueles olhos azuis.

— Por favor, não pare nunca!

Pérola piscou. Rosa piscou também. E então alguma coisa aconteceu.

Houve luz, intensa e ofuscante. Sua forma se dissipou e se mesclou à de sua companheira sem sua permissão. Por um instante sentiu medo, mas então a sensação de plenitude absoluta a engolfou e ela se sentiu inebriada. Era impossível explicar, mas ela não se sentia mais ela. Era como se ela tivesse cessado de existir por si mesma para agora fazer parte de algo maior, único e fantástico. Ela era nada e, ao mesmo tempo, ela era tudo. Pérola era nada e também era tudo. Elas eram nada e tudo juntas. Era apavorante, incrível, inebriante, ela queria parar e ao mesmo tempo não queria, ela-

Então tudo acabou tão rápido quanto começou. Ambas voltaram a si, suas próprias gems mais uma vez, confusas e um pouco constrangidas. Sem saber o que dizer, Rosa ponderou sobre a fusão que viram na Arena Flutuante, estremecendo em culpa e medo por ela ao pensar que tipo de punições terríveis Azul poderia estar dando a ela-

— Ai!

O grito as pegou de surpresa. Pérola se ergueu com a espada em punho e correu para investigar, uma Rosa ainda nervosa em seus calcanhares. E para seu espanto e absoluto alívio, o que viram foi a estranha fusão do dia anterior, parecendo perdida, assustada e tão culpada quanto elas se sentiram minutos atrás.

— Nós não queríamos nos fundir! B-Bem, nós quisemos desta vez... mas nós vamos nos disfundir! Nós vamos... vamos...

Rosa decidiu se mostrar, saindo por dentre a folhagem. Ela não queria mais se esconder. Não queria perder um só minuto daquela nova experiência.

— Não, por favor. Eu estou feliz de ver você outra vez.

 

***

 

Depois de algum tempo, a fusão decidiu que se chamava Garnet.

Ela ainda tinha dificuldades para explicar a sensação, mas depois de muita insistência das outras duas, ela tentou o melhor que pode.

— Como eu posso dizer... É como se você deixasse de ser você. Como se você desaparecesse, mas ainda estivesse ali de alguma forma como parte de algo maior. E a sensação de sumir não é ruim, pelo contrário. Você se sente uma com a outra gem que faz parte do todo com você. Vocês formam o todo para criar uma coisa totalmente nova.

— E quem está no controle? A rubi? A safira? – Rosa perguntou, ao que Garnet balançou a cabeça.

— Nenhuma? Ou as duas ao mesmo tempo? É difícil explicar. Eu não sou uma mistura das duas, por assim dizer. Eu sou... minha própria gem? Formada a partir da junção delas? Eu sou elas e ao mesmo tempo sou eu mesma? Pelas estrelas, isso é tão complicado! – Ela riu nervosamente, ao que Rosa e Pérola a acompanharam – Eu só sei que é uma sensação sem igual. É incrível. Eu... eu gosto dela. Eu quero ficar mais assim, mas é difícil manter essa forma.

— Vamos ajudar você a pegar o jeito! E aí você pode nos ensinar a como fazer isso também.

— V-Vocês querem se fundir também? Mas eu nem sei como Rubi e Safira conseguiram! Eu mesma vou precisar aprender, mas isso vai contra tudo o que eu sei-

— Esqueça tudo o que você aprendeu. Aqui na Terra, as regras com as quais convivemos não têm mais validade. Aqui, o que era antes errado pode ser certo, e vice-versa. Aqui você pode se reinventar. – Rosa a segurou pelos ombros – É o que Pérola e eu fizemos. Nós... eu e ela fugimos de nossa Diamante. Estamos nos redescobrindo juntas. Você pode fazer isso conosco.

Pérola não questionou a mentira, embora tivesse mordido o lábio inferior em incerteza.

— Eu... Eu não sei...

— Apenas tente. Deixe de lado tudo o que você sabe a abra a mente para novas descobertas. Vem, vamos tentar do começo. – Ela segurou as mãos da fusão, sorrindo encorajadora – Eu sou Rose Quartz, e quero poder decidir meu destino por mim mesma.

— Eu sou Pérola. Eu... – Ela hesitou em pouco, mas quando Rosa sorriu para ela com um aceno de cabeça, ela estufou o peito, já mais confiante – Eu não quero pertencer a ninguém. Não quero ser um adorno. Quero ser a dona de mim mesma.

Rosa assentiu entusiasmada. Voltou-se para Garnet.

— E você?

Garnet olhou para as próprias mãos. Ponderou por alguns instantes. E depois abriu um meio sorriso cheio de promessas.

— Eu... Eu sou Garnet. E quero poder existir.

 

***

 

No passo de poucas noites, tudo havia mudado.

Primeiro, Diamante Rosa decidiu que não queria mais ser Diamante Rosa. A partir dali, para sua nova família, ela seria apenas Rose Quartz.

Segundo, ela decidiu que Garnet merecia existir como bem quisesse. Não apenas ela, mas todas as outras gems que quisessem se redescobrir. Ela começara aquela jornada querendo lutar apenas por aquele planeta e pelo o que ele tinha a oferecer a ela. Mas agora, ao perceber que assim como as estranhas formas de vida que ali viviam gems também poderiam ser capazes de se reinventar, ela decidiu que não era a única que merecia viver aquela experiência inédita. E isso significaria mais que uma simples rebelião. Aquilo significaria guerra contra seu próprio planeta, contra suas irmãs que nunca aceitariam algo assim. Significaria cortar seus laços com Homeworld, abrir mão de seu status e de todos os seus privilégios e descer do pedestal de matriarca perfeita para se tornar um simples soldado. Uma igual entre gems menores, uma protetora para os humanos e para a Terra. Naquele momento, ela sentiu que Rose Quartz era sua verdadeira identidade, seu verdadeiro eu que permanecera preso por trás da fachada de fria perfeição e que agora se via enfim livre. E ela a abraçaria e lutaria por tudo aquilo que ela representava.

E terceiro, Pérola não poderia mais pertencer a ela.

Ao longo de milênios de solidão, mudanças e descobertas, a Pérola que outrora lhe causava desconforto se tornara a sua mais querida amiga, maior confidente e braço direito. Sua igual, não sua propriedade. Ela também merecia experimentar a liberdade de se possuir, de ser dona de si. Isso significava deixá-la livre para escolher o próprio caminho. Não poderia arrastá-la para uma guerra assim, como se ela não tivesse outra escolha. Ela tinha o direito de escolher.

Foi com receio e pesar que elas se encontraram em uma das plataformas flutuantes sobre um vasto campo de morangos. A lua lançava seu brilho prateado sobre elas, como na noite em que treinaram juntas com espadas. As lembranças fizeram Rose sorrir com ternura.

— Pérola.

— Sim? – Os olhos dela eram enormes sob o luar pálido. Rose engoliu em seco antes de prosseguir.

— Eu decidi que vou ficar e que vou lutar por este planeta. – Ela esperou por uma objeção, mas Pérola não pareceu surpresa. Ela então continuou: – E você não tem quem fazer isso comigo.

— Mas eu quero fazer! – Ela respondeu sem hesitar. Rose suspirou. Aquilo seria mais difícil do que pensava.

— Eu sei que você quer. Mas por favor, por favor, entenda. – Ela enfatizou as palavras com cuidado, querendo explicitar a seriedade da situação – Se perdermos, seremos mortas. – E eu não quero que você morra por mim. — Mas se vencermos, não poderemos voltar para casa. – E eu não quero prender você aqui por um capricho meu.

 Aquilo era uma dispensa implícita. Pérola compreendeu, seus olhos se esbugalhando subitamente. Ela não pertencia a mais ninguém. Era livre para escolher seu próprio destino. Lutar suas próprias batalhas. Não precisava mais pedir permissão, só falar quando solicitada, ser uma peça decorativa. E ela definitivamente não precisava lutar ao seu lado se não quisesse.

Foi então que ela sorriu. Um sorriso que tirou todo o fôlego de Rose.

— Eu por que eu iria querer voltar para casa se você está aqui?

E naquele instante ínfimo, enquanto encarava Pérola com os olhos arregalados e um rubor que lhe queimava o rosto, ela finalmente percebeu a profundidade do laço que elas haviam construído juntas. E que ele era mais valioso do que qualquer privilégio, qualquer status, qualquer noção que um dia pudesse ter tido sobre sua imperfeição, sua invalidez, sua necessidade de se provar.

Ela chegara àquele planeta sozinha e infeliz, ganhando o que ela sempre quisera, mas não o que ela precisava. Ela aprendera a apreciar coisas imperfeitas e despropositadas porque ela era imperfeita e despropositada. Coisas imperfeitas estavam sempre sujeitas a mudanças, e era na imperfeição que ela se encontrara.

E fora na imperfeição, na solidão, que ela conhecera a Pérola que desejava ficar ao seu lado não por um senso de dever, mas pelo mero desejo de sua companhia. Ela não precisava pertencer a ela para querer estar com ela. “Casa” era onde quer que as duas estivessem, juntas. Rose riu, emocionada e maravilhada com mais aquela descoberta.

— Minha Pérola...

Estendeu a mão e entrelaçou os dedos com os dela. E ali elas ficaram, duas gems imperfeitas e solitárias, mas que descobriram na imperfeição e na solidão a possibilidade de se redescobrirem.

Elas continuariam a estar sozinhas, as únicas guardiãs de um segredo que poderia colocar tudo a perder. Mas estariam sozinhas juntas.

 — Você é maravilhosa.

 

 

Fim

 


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