True colors escrita por CatarinaNina


Capítulo 1
Capítulo 1




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Em plena madrugada, eu estou morrendo de fome. Se eu estivesse na minha casa, com minha mãe, simplesmente levantaria a bunda da cama e iria até a cozinha pra procurar qualquer coisa comestível dentro da geladeira. As opções que eu provavelmente teria seriam: o resto do almoço do dia, algum queijo de aparência e cheiro duvidosos, alface murcha, meio limão e vários litros de água estocadas em garrafas. Então eu iria para o armário, que era o lugar onde o tesouro realmente era guardado: bolacha recheada, chocolate, batata chips. Sabe, comida de verdade, cheia de corante e gordura saturada.

Mas aqui a coisa não funciona desse jeito. Se eu estou com fome às duas da madrugada, tenho que esperar até o amanhecer pra comer alguma coisa. Porque princesas não levantam da cama no meio da noite pra beliscar comida na cozinha. Princesas nem mesmo vão pra cozinha. Há dois anos, desde que descobri que sou a filha perdida de um rei qualquer, não posso fazer nada que não esteja no Protocolo sem ser severamente repreendida por isso. As refeições são estritamente na sala de jantar, que é maior que a casa da minha mãe inteira. Às vezes, quando eu finjo estar doente, eles me deixam comer no meu quarto. Às vezes eu não consigo fingir que estou passando mal sem cair na gargalhada, então sou “gentilmente” coagida a me juntar ao meu pai, o Rei do Grande Nada e minha madrasta, a Rainha do Grande Nada. Isso não é brincadeira, esse é o nome do país. É uma piada pronta.

Não gosto do rei e da rainha. Eles não são pessoas ruins, mas também não tem emoções suficientes para sequer serem chamados de pessoas boas. São frios. Não frios tipo “vou-matar-você-e-comer-seus-pedaços”, é mais como se eles fossem cópias de si mesmo. A décima milésima cópia. Falhada. E em preto e branco. Em algum momento determinante entre o nascimento e a vida adulta dos dois, algo se perdeu no processo, ou sequer existiu. Algo crucial, indispensável. É como se Gepeto tivesse criado Pinóquio, mas ninguém tivesse lhe dado a vida.

Eles não têm o costume de sorrir. O Rei não sorriu nem quando me conheceu. Eu, a filha dele, a princesa perdida, a salvadora do seu legado. Uma vez o vi repuxar o canto dos lábios e tive que olhar para cima para ter certeza de que não tinha ninguém manipulando sua boca com linhas invisíveis. A Rainha sorriu uma vez, no entanto. Riu, na verdade. Vou repassar a situação que a levou a fazer isso. Que não teve um pingo de graça, por sinal. Foi quando minha mãe revelou minha identidade e meu pai, junto da Rainha, vieram me buscar. Àquela altura, eu já tinha superado toda aquela história de “minha mãe mentiu pra mim a minha vida toda e blá blá blá”. Eu já tinha feito as pazes com ela, e, na minha cabeça, tinha decidido que simplesmente esqueceria aquele assunto e seguiria com minha vidinha comum de adolescente, como se nada tivesse acontecido. Até eles aparecerem na minha casa.

— Eu não sou princesa de lugar nenhum – falei, fazendo um gesto vago de dispensa com a mão.

— É o Grande Nada, não Lugar Nenhum – respondeu meu pai, o Rei, impassível.

— O quê? Não, eu não quis dizer isso. O que que eu quis dizer é: Obrigada pela oferta, mas não tenho interesse.

E foi aí que a Rainha riu. Uma risada polida e contida. Aristocrata.

E eu entendi o motivo daquilo parecer engraçado pra ela.

Eu, Margaret Joan Dawson, a primeira e última filha do Rei, não tenho poder de escolha. A não ser que eu queira acabar com um país inteiro. E ao contrário do meu pai e de sua esposa, eu sou uma Pessoa Boa. Bom, na medida do possível, você sabe.

—____

Decido descer do mesmo jeito. Não consigo dormir com fome, ponto final. E também não é como se fosse a primeira vez que eu estivesse fazendo isso. Como a boa quebradora de regras que eu era, eu sabia que podia fazer qualquer coisa que quisesse desde que não fosse pega fazendo. Então é com esse pensamento que desço até a cozinha, um lugar onde uma princesa supostamente nunca deveria ser vista, e pego um pote enorme de sorvete de dentro do congelador. Não me preocupo nem em procurar uma taça, como direto do pote, com uma colher tão limpa que reflete meu rosto amassado de sono.

Me sento à uma mesa de granito posta no canto da cozinha e saboreio o gosto doce do chocolate, com uma pitada de adrenalina. Penso comigo mesma que nada é mais excitante do que fazer algo que te dizem para não fazer. Então ouço barulho de passos e fecho os olhos por longos segundos, me condenando mentalmente por ter cometido um erro de iniciante e acendido a luz ao entrar furtivamente na cozinha.

— Maggie? O que você faz aqui? – solto um suspiro de alívio ao reconhecer a voz que fala comigo.

— Ah, oi, Elly, graças a deus é você – falo, me virando e me deparando com uma garota alta, vestindo roupas puídas de dormir. Elly é a filha do prestador de serviços e da cozinheira chefe do Castelo. Sempre está por perto. Também é minha melhor amiga, mesmo que não possamos deixar que ninguém saiba disso. E não menos importante: eu morreria por ela.

Uma ruga surge entre suas sobrancelhas escuras.

— Você não devia estar aqui a essa hora. Ou a qualquer hora, na verdade.

É a primeira vez que interagimos desde o dia em que quase nos beijamos, há dois meses atrás, quando fomos interrompidos pelo pai dela, que nos advertiu sobre o perigo de ficarmos juntos. Mas a última coisa que eu quero é ficar longe de Elly. Ela não me trata como vidro só por causa da história toda de ser parte da realeza. Ela costuma conversar de verdade comigo e sorrir, um sorriso espontâneo e genuíno. Para todos no Castelo eu sou Sua Alteza, Princesa, Senhorita. Para ela, sou Maggie. Elly é a única certeza que eu tenho de que ainda sou eu mesma.

— Eu estava com fome – me explico e em seguida engulo mais uma colherada de sorvete. Sinto minha cabeça congelar na mesma hora e faço uma cara feia, que a faz rir.

— Não precisava ter vindo até aqui, era só pedir que algum dos empregados te levassem alguma coisa – sua voz é suave e melodiosa e me faz lembrar do quanto sinto falta das noites que passávamos conversando em cantos escondidos do castelo.

— Por que eu acordaria outra pessoa se posso muito bem me virar sozinha?

Ela suspira alto.

— Porque você é uma princesa, quantas vezes precisa ouvir isso para enfim se convencer?

Eu não havia parado para pensar no quanto senti saudade de um tom insolente e atrevido até ouvi-la falar daquele jeito comigo.

— Depende de quantas vezes você é capaz de me dizer isso até enfim se cansar de tentar – devolvo com um sorriso – E você, o que faz aqui?

— Vim comer alguma coisa também, mas vou voltar para o meu quarto, não quero correr o risco de te encrencar se alguém nos vir juntos. Sua Alteza – ela se abaixa numa reverência levemente debochada, pronta para sair.

— Idiota. Por que não fica aqui e divide o sorvete comigo?

Ela se vira com uma expressão ilegível no rosto.

— Porque uma princesa não deve ser vista partilhando a refeição com uma criada.

— Bom, então tudo o que devemos fazer é ter cuidado para não sermos vistas – digo, levantando-me e pegando-a pela mão. Um vestígio de sorriso surge em seu rosto e me descubro fisicamente incapaz de parar de encarar o adorável espaço entre seus dentes incisivos. Elly desvia o olhar e solta a minha mão, sentando-se à minha frente na mesa. Pego uma colher da gaveta do armário ao meu lado e ofereço para ela. Uma de suas sobrancelhas se levantam.

— Sem taça? – pergunta.

— O quê, muita rebeldia pra você?

Ela sorri e pega a colher. Seus dedos encostam levemente nos meus, mas ela os afasta antes que eu tenha tempo de decidir se o ato foi um acidente ou um gesto proposital. Elly leva uma colherada de sorvete à boca. Analiso seu rosto enquanto ela se concentra em olhar para todo lugar, exceto pra mim. O cabelo preto e ondulado não está perfeitamente arrumado, como de costume: parte dele está caído na testa em mechas aleatórias e o resto aponta para vários ângulos diferentes. Seus olhos azuis parecem mais claros do que nunca e sua pele pálida ganha mais cor à luz artificial da cozinha. Ela tem uma fileira de sardas que vão das extremidades das maçãs do rosto até a ponta do nariz. Quero tocá-las, fazer uma trilha tortuosa e demorada com as pontas dos meus dedos.

— Você tem conversado com seu pai? – ela pergunta com a provável intenção de desviar meu foco de seu rosto.

— Não muito – respondo, dando de ombros – Nem com ele, nem com a Rainha. Eu já disse uma vez pra você, os dois não são programados para terem conversas casuais.

— Acho que você precisa continuar tentando, uma hora vai dar pane no sistema deles.

Eu rio e tomo mais duas colheradas de sorvete.

— Duvido que eu sequer consiga vencê-los por exaustão, Elly. Eles agem exatamente da forma que foram ensinados a agir. Seguem o Protocolo como alguns seguem a bíblia. “Não seja assim, não seja assado”. Acho que eles ficam tão ocupados em não ser que esquecem como ser.

— É a forma com a qual foram criados. Mas tenho certeza que eles se importam com você.

— Eu não quero se importem comigo, quero que me amem.

Elly ergue o olhar para mim. Não consigo ler sua expressão, não sei se ela parece triste por mim ou se simplesmente tem pena.

— Minha mãe me amava – continuo – Me ama. Não gosto de estar aqui, porque sinto que minha identidade foi apagada. Lá, junto dela, eu sei quem eu sou, sei quem eu quero ser.

— Você sente falta dela?

— Que pergunta.

Eu rio e ela me acompanha. Então as risadas cessam e Elly me encara como a encarei minutos antes. Me analisa por tanto tempo que sinto minhas bochechas queimarem. Tento não pensar no que ela vê: uma garota com olheiras de sono, cabelos pretos bagunçados, cara inchada de cansaço.

— Se você pudesse voltar no tempo e impedir seu pai de descobrir sua identidade, você faria?

Enrugo minha testa.

— Que tipo de pergunta é essa?

— Uma pergunta hipotética. Sabe, aquelas que as pessoas fazem pra escapar da realidade por alguns minutos – ela sorri de novo e lá está a adorável falha.

— Bom, se eu pudesse voltar no tempo, em primeiro lugar impediria minha mãe de transar com meu pai, assim evitaria toda essa merda.

Ela não ri. Ao invés disso, seu rosto enrubesce e seu olhar desvia para baixo novamente. Sei que a palavra “transar” foi a grande causadora desse efeito. Não que eu acredite que Elly nunca tenha feito isso antes, sendo atraente do jeito que é, duvido que sequer tenha tido problemas nesse aspecto. Mas, por algum motivo, me ouvir falar sobre sexo faz sua pele exibir todos os tons de vermelho.

— Se você impedisse o Rei de...uhm....se relacionar com sua mãe, você não existiria – sua voz sai muito baixa e preciso me esforçar para ouví-la.

— Quem disse que não? Talvez minha mãe ficasse com outra pessoa e eu pudesse nascer.

— Não seria você.

— Poderia ser. Uma versão diferente minha.

— Não seria você – repete, convicta.

Eu a ignoro.

— Eu poderia ser loira, alta e magra como uma tábua.

— Não seria você.

— Quer parar de dizer isso?

Ela levanta a cabeça e me avalia pelo que parece uma eternidade.

— O que estou tentando dizer é que em qualquer realidade em que sua mãe se envolvesse com outra pessoa diferente do seu pai, você não existiria. Talvez tivesse o mesmo nome, a mesma idade, a mesma mãe. Mas não seria você.

— E eu estou dizendo que seria sim. Uma versão diferente, mas ainda assim eu. Imagina só quantas versões de mim poderiam existir em diferentes realidades? Mas vamos supor por um momento que a verdade seja mais próxima do seu argumento. Talvez não fosse uma coisa tão ruim assim não existir. Eu nunca saberia, porque não existiria, simples assim. Indolor e eficiente – dou uma olhada no sorvete, que já se encontra pela metade e finco a colher na massa de chocolate mais uma vez.

— Você consegue imaginar um mundo onde você não exista?

— Claro que consigo, não é tão difícil assim, o mundo não precisa de ninguém pra continuar existindo.

— Eu não consigo.

Sorrio.

— Então você se superestima demais, Eleanor.

— Não, Maggie, eu não consigo imaginar um mundo onde você não exista.

Olho pra ela, sem ter certeza do que ouvi. Seus olhos azuis me prendem e me descubro fisicamente incapaz de desviar o olhar, é quase como se ela tivesse sua própria força de gravidade e me puxasse em sua direção. Sinto minha pulsação aumentar e esqueço como se respira.

— Sabe, Maggie, você já tem esse poder – ela declara, ainda me encarando.

— Que poder?

Eu mal consigo ouvir o som da minha própria voz, é tão baixa que é quase como se eu estivesse pensando em voz alta.

Ela passa uma mão no cabelo, afastando uma mecha que cai em seu olho.

— De voltar atrás – diz – Você tem escolha, sabe. Não precisa ficar aqui. Pode voltar a ficar com sua mãe, voltar ao que era antes.

— Mas e quanto ao povo de Grande Nada? Meu pai é estéril agora, eu sou a única garantia que ele tem que esse país vai continuar sendo regido pela linhagem direta dos Dawnson. Ele pode ser o que for, Elly, mas sempre foi justo com os súditos. Eu posso aprender a ser assim também. Quem garante que, se eu for embora, os sucessores do Rei e da Rainha serão justos?

— Já está mais do que na hora do povo desse país aprender a andar com os próprios pés. A monarquia existe aqui há tempo demais.

Não quero pensar no quanto aquilo faz sentido. Não quero pensar no quanto ela tem razão. Porque ao invalidar uma das razões que me mantém presa a este lugar, sou forçada a encarar o outro motivo: Eleanor.

— E você? – digo baixinho.

— O que tem?

— Se eu for embora, vou deixar você pra trás.

— Você não tem que se preocupar com isso. Posso me sentar ao seu lado?

Assinto rapidamente com a cabeça. Ela se levanta e senta no mesmo banco que eu, segurando minhas mãos. Está tão próxima que posso sentir sua respiração descompassada contra meu rosto. Posso ver de perto suas sardas, pequenos pontilhados marrons na pele branca. Deslizo meus dedos por elas, como me imaginei fazendo tantas vezes antes. Ela fecha os olhos, leva a mãos até meu rosto e acaricia minhas bochechas gentilmente, quase fazendo cócegas. E então traz seu rosto junto ao meu, me beijando. Perco todos os sentidos. Na verdade, ganho. Tudo nela é terno, prazeroso e tentador.

A certeza de que eu a amo me corrói de dentro pra fora.

Ela para o beijo por um instante e me encara. Eu a encaro de volta. Elly toca o sinal de nascença em forma de coração que possuo no queixo. Segundo ela, é a minha Marca, a prova de que nasci pra amar tão intensamente que o destino tatuou isso no meu rosto.

Esqueço tudo a minha volta. Só existe eu e ela. Ela e eu. Nós dois. Maggie e Elly. Elly e Maggie. Duvido que algo, algum dia, tenha soado mais certo que isso.

— Sabe, Maggie – Elly diz - não importa quantas versões possam existir de você, essa sempre vai ser a minha preferida.


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