Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 22
Diferente




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Diferente

Aquele era o mesmo corredor iluminado pela lua cheia. O mesmo piso de pedras, as mesmíssimas janelas que se erguiam, esplendorosas, até o teto. A mesma paisagem obscura iluminada por tochas, a mesma vista das montanhas que se elevavam atrás do palácio de torres góticas. Os empregados andando de um lado a outro, as cortinas de veludo escuro, tal como a capa que Hades insistia em usar.

Também era a mesma capa – a que o mantinha bem aquecido. Havia algo de monótono na cena, mas uma sensação estranha o acompanhava enquanto atravessava o corredor até a saleta de jantar. De fato, nada parecia diferente depois de tantos meses.

Porém, quando Hades empurrou a porta amadeirada, sentiu que nada era o mesmo.

Uma tradição ocorria. Como sempre, foi o último a chegar, chamando atenção, arrancando olhares. Cumprimentou a todos, sorrindo. As botas batendo no piso, o cabelo bem penteado para trás, as vestes bem passadas caindo perfeitamente em seu corpo. Nyx lhe lançou saudações calorosas, Tânatos fez uma piada qualquer, Hypnos limitava-se a ralhar com o gêmeo e Hécate, como sempre, mantinha o nariz enfiado em um livro qualquer, sem dar atenção a ninguém.

Mas ela, Perséfone, com os cachos presos, trajando aquele esplendoroso vestido verde, sorriu para ele de um jeito singelo. Hades sentou-se na ponta oposta, devolvendo o sorriso enigmático e, embora estivessem separados pelas cadeiras e guloseimas que empanturravam a superfície amadeirada, nunca pareceram tão próximos.

Sim, as coisas estavam diferentes. Aquele já não parecia mais um castelo sombrio. Agora tinha luz.

Agora tinha ela.

Havia também aquela palpitação louca, as mãos suadas, trêmulas, nervosas.

Sensações.

Sim, Perséfone lhe enchia de sensações. E saber que causava o mesmo nela o deixava atordoado, de certa forma, porque nunca imaginou ser retribuído.

Mas lá estava, a sensação do contentamento, da felicidade, do objetivo alcançado.

Perséfone era a mesma – mas também estava diferente, ele notou. Havia uma nota tímida nos olhos verdes. Vez ou outra os desviava, com as bochechas avermelhadas. Então ela sorria minimamente, sem mostrar os dentes, mas com a feição adorável de quem fora pega em flagrante o admirando.

Nos momentos em que safiras oliva e ônix cruzavam, sorriam para o outro, sem graça de mais para dizerem qualquer coisa. Mas não precisavam. Tais pequenos gestos diziam tudo por eles.

— Você fica patético suspirando assim. — Tânatos comentou para o deus, com um bolinho em mãos, achando a situação toda muito hilária. É claro que Hades nunca escondeu a paixão que sentia por Perséfone, mas aquilo já estava um pouquinho exagerado. Nunca vira o deus dos mortos com o queixo apoiado nas mãos sustentando aquele olhar todo abobalhado, sem fazer questão de disfarçar. Notou como Perséfone estava vermelha.

Céus!

— Eu sei. — Hades limitou-se a responder, ainda sem tirar os olhos da garota, que parecia prestes a ter uma síncope. Ela, toda envergonhada, deixou um pedaço de torta cair pateticamente do garfo.

Nesse momento, Hades suspirou novamente, de forma ridícula e apaixonada, como se essa fosse a visão do paraíso.  

— Você está deixando a menina sem graça. — alertou, de um jeito risonho, sem realmente se importar. Falavam baixo, para que ninguém na mesa escutasse.

— Não posso evitar. A culpa é dela.

— Culpa dela? — arqueou as sobrancelhas escuras.

— Claro. É a mulher mais linda que já vi, não tem como não olhar.

Tânatos fez careta, mordiscando o bolinho, sem desfazer o sorriso.

— O amor é mesmo nojento.

— É claro que acha isso. — deu de ombros. — Você tem a inteligência emocional de uma colher.

— E espero continuar assim.

Tânatos fez mais algumas piadas, o deus, porém, o ignorou, atento demais na moça para que desse atenção aos comentários toscos do amigo. Ele se demorou mais para comer, propositalmente, é claro, e quando todos – exceto Perséfone – deram o fora da bela saleta, resolveu que era o momento para se aproximar.

As palavras dela ainda soavam em sua mente.

“Acho que gosto de você, Hades.”

Bom, se ela ainda não tinha certeza, então faria com que tivesse.

— O que acha de darmos uma volta, querida?

Ela aceitou, polidamente, ainda corada. Perséfone não sabia o que eram aquelas sensações, mas estavam intensas e seu coração parecia atravessar o peito. É claro que sempre foi uma criatura cheia de animosidade e sorrisos, contudo, naquele instante, depois de tudo o que dissera a ele, não conseguia controlar o nervosismo.

Ele, como sempre, lhe ofereceu o braço. Conseguiam sentir o calor, mesmo que as peles não se tocassem graças ao tecido. Era estranho, de alguma forma. Sentia uma necessidade de ficar perto. Gostava de estar com Hades.

Sobretudo, gostava das sensações, dos sentimentos, daquela imprevisibilidade.

Da expectativa.

Eles conversaram por um bom trecho da caminhada sobre as banalidades de sempre. As vezes, as opiniões divergiam, mas eram boas e acirradas discussões.

— O que vamos fazer hoje? — perguntou, toda animada, fitando-o longamente, notando como o rapaz era alto, e como o brilho nos olhos escuros era lindo.

— Na verdade, não preparei nada. — confessou, apertando os lábios. Depois sorriu. — Mas vou te mostrar algo. Gosta de animais?

Perséfone deu de ombros.

— Se não for um cão gigante e diabólico de três cabeças, então, sim, amo animais.

Ele riu do comentário ácido, levando-a para o lado de fora do castelo. Eles atravessaram o jardim e, depois de uma boa caminhada, a deusa notou que nunca estivera naquele lugar. Quando começava a se cansar, um estábulo imenso surgiu a frente. Curiosa, deixou-se ser guiada para dentro. O local cheirava a feno e cavalo. Era simples, com pilastras de madeira, mas o que chamou sua atenção foram as figuras escuras, cada uma atrás de uma portinhola. Arregalou os olhos, perplexa, vislumbrando os enormes Pegasus – cavalos alados, com enormes asas de anjos.

Perséfone já tinha visto desses animais, a questão é que aqueles eram pretos como um abismo, da exata cor dos orbes de Hades.  

— São lindos! — exclamou, fitando o rapaz, que concordou com a cabeça, animadíssimo. Pelo visto, gostava bastante dos bichos.

Ele abriu uma das portinholas e o cavalo trotou para fora, fazendo com que a moça desse dois passos para traz. Ok, eram lindíssimos, mas não estava nada preparada para chegar perto ou coisa parecida.

Reparando melhor, era imenso e intimidador.

— Calma, garoto. — deu batidinhas amigáveis no lombo do bicho, sorrindo. Parecia estar se divertindo com a situação. — Não tenha medo, meu bem. São dóceis, principalmente esse. Venha. — Estendeu a mão. A sombra da dúvida passou pelo rosto da jovem, mas ela acabou cedendo, deixando que o rapaz puxasse seu pulso, repousando seus dedos no focinho no cavalo. O animal não se moveu, apenas bateu o casco da frente no chão e fechou os olhos enquanto era acariciado, satisfeitíssimo. — Está vendo? Ele gostou de você.

— Essa é — pausou, os olhos ainda arregalados, fitando Hades de maneira indecifrável, então sorriu, tão animada que parecia prestes a explodir. — a coisa mais louca que já fiz na vida. São criaturas quase indomáveis!

— É, eu sei. — disse, orgulhoso de si mesmo, todo prepotente. Perséfone riu daquela faceta.

— Demorou muito para domar?

— Os consegui já domados. — deu de ombros. — Foi um presente de Perseu. Esses cavalos foram os primeiros a nascer do sangue de Medusa, por isso são dessa cor.  

Certo, isso tornou tudo ainda mais excitante. Perséfone subiu a carícia para a crina. Era tão macia e sedosa!

— Combinam com você. — comentou, como quem não quer nada. E realmente combinavam. Imaginou Hades em cima de um daqueles cavalos, voando por aí. Ou todos o puxando em uma quadriga bem aterrorizante. O pensamento a fez rir; era bem a cara dele fazer esse tipo de coisa.

— Levarei como um elogio... — arqueou uma das sobrancelhas escuras, sorrindo ladino. — Só porque amo esses cavalos.

— São incríveis! — olhou os arredores. Todos a encaravam com curiosidade. — Quais os nomes?

— Esse é Alastor. — acariciou a asa do cavalo solto, de frente para eles, depois apontou para cada um, recitando seus respectivos nomes. — Svenja, Aldrich e Conrad.

— Deve ser o máximo ter todos esses Pegasus! Meu pai só tem dois. São brancos. Ele nunca, nunquinha, me deixou chegar perto. Só Atena. — rolou os olhos, enciumada. Atena era a preferida do deus dos raios.

— Seu pai é um tolo. — deu de ombros, compreendendo o tom chateado. — E esses animais devem ser apreciados. São raríssimos.

— Realmente!

Ficaram em silencio, por um segundo. Uma ideia iluminou a mente de Hades, que inclinou o pescoço, sugestivo, como se fosse contar um segredo.

— O que acha de darmos uma voltinha?

Quê?

Havia uma expressão de espanto no rosto dela. Ele deu de ombros, como se não fosse nada demais.

— Só achei que fosse uma boa ideia. Seu pai nem vai saber que saímos. — houve um brilho divertido nos olhos dele.

— Espera aí! — levantou as mãos, com a certeza de que tinha escutado errado. — Está me dizendo que...

— Que?

— Que vai me levar aos domínios dos mortais?

Havia choque, puro e simples, no semblante.  

Hades sabia que era arriscado, mas conhecia o lugar perfeito, onde, certamente, não seriam importunados por Zeus, muito menos por Demetra ou qualquer um.

— Não faz mal tomar um ar às vezes. — deu de ombros. — Mas jure que não vai tentar fugir de mim.  

— Eu juro! — respondeu rápido demais. Ele riu, achando graça da euforia dela. Sorria como nunca.

— Certo, então. — esfregou as duas mãos, ansiosíssimo. Havia um bom tempo que não saía do Mundo Inferior. — Mas teremos que partir ao anoitecer dos mortais. Assim, não correremos o risco de sermos vistos.

Ela concordou com a cabeça e, depois de alguns minutos, retornaram ao interior do castelo.

+

Perséfone não sabia que horas eram, mas certamente já era noite, porque um dos empregados bateram na porta para anunciar que o jantar logo seria servido. Ela e Hades, porém, sairiam antes para o tal lugar que o rapaz disse ser “seguro”.

Colocara uma toga leve e clara, chinelos de tiras e optou por deixar as madeixas soltas.  Só de pensar que ele a levaria para a floresta – coisa que sua mãe nunca fazia, aliás – a fez roer as unhas de tanta ansiedade.

Estava sentada na cama, nervosa, quando as primeiras batidas soaram, leves. Perséfone abriu a porta, que rangeu alto, revelando a imagem do deus dos mortos. Ele tinha uma nota igualmente ansiosa nos olhos, e estava todo de preto, com uma capa grossa e escura, diferente da de mais cedo, pesando nos ombros.

Fitou-a de cima a baixo, deixando-a ligeiramente vermelha.

— Você está linda, meu bem. — elogiou, sorrindo. — Mas aconselharia a pegar um agasalho. Certamente, fará bastante frio hoje. Não quero que fique doente.

Perséfone apenas obedeceu, correndo para pegar um agasalho qualquer no armário. Assim que o vestiu, Hades agarrou a mão dela e os dois caminharam sorrateiramente pelos corredores, como se fossem criminosos.

— Do que estamos nos escondendo? — ele a fitou de esguelha, com um sorriso enigmático.

— De todos. — respondeu, apertando um pouco mais os dedos dela, sentindo um frio na barriga com o calor emanado da pele quente e de como seus dedos estavam entrelaçados. — Digamos que... não é muito certo invadir os domínios de Zeus, e talvez aqui ninguém aprove isso, exceto, é claro, Tânatos, mas sabemos que a opinião de Tânatos é questionável.

Perséfone concordou com a cabeça, lembrando-se da vez que ela e o deus da morte invadiram a saleta particular de Hécate e de como o rapaz deu a ideia como se fosse um mero passeio de férias.

— Meu pai, por acaso, não vai descobrir se você for aos domínios dele?

— Talvez. — apertou os lábios em um sorriso mínimo. — Mas bem provável que não. Só se alguém nos ver, o que acho difícil. — Mostrou o que carregava na outra mão. Era o elmo. — Essa belezinha vai nos deixar invisíveis, se assim eu quiser. De qualquer forma, não vamos exatamente ficar nos domínios de Zeus.

A sombra de compreensão se passou pelo rosto de Perséfone e ela sorriu de forma travessa, percebendo o que ocorria, achando a situação engraçada. Quer dizer, ele era Hades, o deus todo sério e pomposo. Era estranho vê-lo tão animado por quebrar as regras.

Nessa altura do campeonato, já estavam do lado de fora, andando entre as árvores.

Uma pergunta, porém, não queria calar.

— O que quis dizer com “não vamos ficar nos domínios de Zeus”?

Observou o sorriso enigmático formar-se no rosto másculo.

— Você verá.

Nos estábulos, um dos Pegasus – não tinha ideia de qual e, francamente, esquecera todos os nomes – estava selado. Hades ajudou-a a montar de lado, depois subiu, sentado atrás, com o peitoral contra as costas dela.

O cavalo trotou para fora e abriu as imensas asas de anjo. Pela primeira vez, Perséfone sentiu-se apavorada, com um ligeiro frio na barriga; logo atrás, o deus inclinou a cabeça, quase encostando os lábios no ouvido da garota, o que causou nela uma sequência de arrepios para lá de estranhos.

— Segure isso. — entregou o elmo. Perséfone o apertou com força, temendo perdê-lo.— Segure-o assim, em cima da sela do cavalo, para que todos nós fiquemos invisíveis. Aconselho que feche os olhos. Vamos sair por um lugar diferente do que entramos, quando a trouxe aqui. Não quero que fique apavorada.

— Tudo bem.

E ela apertou os olhos com força, sentindo-se repentinamente nauseada, ouvindo o bater das asas do cavalo. Um vento forte soprou em seu rosto. Felizmente, os braços de Hades, que seguravam as rédeas, a protegiam de cair. Sentiu-se mais segura.

Não soube por quanto tempo ficou assim, de olhos fechados, mas em dado momento, a voz do rapaz soou outra vez em seu ouvido esquerdo:

— Pode abrir.

E a visão foi magnífica. Ok, não tinha como enxergar muita coisa com toda a escuridão da noite, mas céus, eram tantas estrelas e a lua estava esplendorosa! Abaixo deles, árvores e mais árvores. Luzes de algum vilarejo. A deusa piscou os olhos, sorrindo como nunca. De onde estavam, era possível ver até o Monte Olimpo erguendo-se até o topo, escondido pelas nuvens.

Viajavam para o norte e, de fato, Hades estava certo quanto ao frio. O clima era gélido e ela recostou a cabeça no peito dele, apreciando a viagem, sentindo-se mais livre do que nunca.  

A paz só durou até o momento que o cavalo desceu de repente, sem aviso prévio, arrancando um gritinho agudo da garota, o vento soprando em seus cabelos.

O pouso brusco só não a arremessou porque estava protegida pelos braços musculosos. Hades desceu primeiro, depois a ajudou. Sentiu-se zonza, de repente.

O cavalo, por outro lado, trotou até embaixo de uma árvore que projetava uma grandiosa sombra, onde deitou e fechou os olhos.

A grama era baixa e a copa das árvores pareciam alcançar o céu. Vagalumes voavam por cima das flores brancas e um rio raso corria entre pedras, nas proximidades. Estavam em uma clareira, dentro de um bosque.

Perséfone piscou, encantada com a visão.

— Onde estamos?

— Em Arcádia, nas matas virgens.  

A expressão feliz dela transfigurou para o mais puro horror. Conhecia o lugar – apenas por lendas, obviamente, porque ninguém, de fato, era louco o bastante para adentrar aquele local. Um local entre as montanhas do Peloponeso, isolado, habitado por feras.

Arcádia era, nada mais nada menos, que a morada de Pã, o deus dos bosques - ou melhor dizendo: a criatura mais assustadora e demoníaca das florestas.

O que?!

— Calma. Vai por mim, Pã não é nada do que as pessoas saem dizendo por aí. — apesar da aparente calma, ela continuava transtornada com a notícia. — Os deuses têm um medo irracional dele, mas...— enfiou as mãos nos bolsos, levantando os ombros, o olhar longe. — não é isso tudo.

— Você conhece Pã? — havia uma nota indignada na voz fina e os olhos pareciam pratos, de tão arregalados.

Aquela, certamente, era a novidade do século para ela.

— Lógico. — respondeu naturalmente, como se fosse a coisa mais normal do universo; não pôde deixar de se sentir indignada. Quer dizer, era Pã! Pã aterrorizava até mesmo Zeus! Ninguém ousava pisar naquela floresta! — Pã é filho de Hermes. O conheci quando ainda era só um garotinho, depois que cresceu passei a visita-lo aqui. As pessoas falam muito pelas costas dele, as fofocas são aterrorizantes, mas vai por mim, depois que o conhece você percebe que ele é um cara legal.

— Hm. — sorriu, debochada, para o rapaz. — Isso lembra alguém, não acha?

— Muito engraçadinha. — devolveu o sorriso, estreitando as sobrancelhas.

— Esquece o que eu disse sobre pegar em um cavalo alado ser a coisa mais louca que já fiz. — colocou as mãos na cintura, cheia de divertimento. — Entrar em Arcádia, sim, é a coisa mais maluca que já fiz. Aliás, é a coisa mais maluca que qualquer um pode fazer.

— Eu devo ter um parafuso a menos, então, porque gosto de vir aqui.

— É, você é doidinho de pedra. Agora, — o puxou pelo punho, levando-o para perto do rio. — já que estamos aqui, vamos aproveitar um pouco.

Ele se sentou em uma pedra, observando Perséfone brincar na água. Ela levantou a saia do vestido um pouco acima dos joelhos. Foi a primeira vez que Hades viu as pernas dela – grossas e torneadas. Sentiu o rosto em brasas, e tentou não olhar muito.

Depois de algum tempo, pequenos animais se aproximaram, como lebres e esquilos. Sendo uma divindade da natureza, era de se esperar que fossem atraídas pela áurea da deusa. Depois que ela se sentou na beirada do riacho, cercaram-na, Hades sorrindo, logo atrás, observando a cena.

O sorriso, porém, se desfez.

Pensou em como Perséfone parecia alegre, ali, no meio de todas aquelas árvores e plantas.

Será que ficaria assim, estando ao lado dele, morando em um lugar tão morto quanto o Submundo?

Estava sendo egoísta, querendo-a para si, quando ela tinha um desejo tão afoito pela liberdade?

Os pensamentos esvaíram repentinamente, fitando-a. Perséfone entrou outra vez no riacho, rindo como nunca, chamando por seu nome.

— Você está muito sério.  — comentou entre as risadinhas. — Por que não vem?

— Estou de botas. — inventou uma desculpa qualquer para permanecer quieto em seu canto.

— Tire a porcaria das botas e venha logo! — insistiu, mas ele rolou os olhos.

— Não.

— Ah, é?

Ele não esperava os acontecimentos seguintes. Perséfone jogou um monte de água nele, gargalhando. Hades piscou sequencialmente, em choque.

Ela parou de rir quando ele retirou a capa, as botas e arregaçou as mangas.

— Não pense que vou deixar isso barato. — e sorriu, correndo até ela. Perséfone soltou um gritinho, fugindo; Hades, porém, foi mais rápido. Entrou com tudo no riacho, começando a jogar água na garota.

Correndo das investidas, enquanto gargalhava, Perséfone não notou uma pedra e acabou tropeçando, caindo com tudo. Hades, nessa altura do campeonato, só faltava rolar de tanto rir da cena.

Ela não parecia nada feliz.

— Bem-feito, é isso que dá ficar jogando –

A frase não foi finalizada, porque ela o puxou com muita força, de supetão, fazendo-o cair de cara no rio. A sensação era a de que viraria algum tipo de iceberg se não saísse da água logo.

Indignado, levantou as sobrancelhas para a garota.

— Você é muito vingativa.

— Quem ri por último, ri melhor.

Hades ameaçou jogar água em Perséfone, infantilmente. Quando ela cruzou os braços e fez cara feia, ele parou, contendo uma risadinha nasal.

— Estamos parecendo duas crianças. — a moça comentou, ainda sorrindo.

— De fato.

— Mas é tão divertido!

Ele não negou. Aquela era, sem sombra de dúvidas, uma das coisas mais estúpidas – e legais –  que já fez na vida. Felizmente, o riacho era bem raso e, ao menos, as botas estavam a salvo. Quando ela começou a tremer por conta do frio, ele decidiu que era o momento de partir.

— Mas já? — sustentou um biquinho emburrado. O deus percebeu como ficava linda daquele jeito, com a água escorrendo pela pele e a luz do luar iluminando-a. Era uma visão esplendorosa. Patético e poético. Nunca foi tão clichê quanto o pensamento de que se sentia revigorado em ter o calor e o sorriso dela por perto.

— E sem reclamações. — retrucou, ajudando-a a se colocar de pé. — Seus lábios estão roxos. Venha.

Os dois saíram com dificuldades, tropeçando pelo caminho – Hades quase caiu em algum momento, arrancando risadas da garota. Ao menos, ela estava se divertindo. O vestido colava no corpo minúsculo e ele percebeu, com certo pesar, que era muito desconfortável usar uma roupa encharcada.

Jogou a própria capa em cima do ombro dela, calçou as botas e chamou pelo cavalo, que prontamente se dirigiu ao dono. Da mesma forma que saíram do Submundo, também voltaram – a volta, porém, foi meio dolorosa graças ao frio cortante.

— Nyx vai nos matar se nos vir nesse estado. — ele a puxava pela mão nos corredores do palácio. — Pelo Caos, eu vou morrer de frio. Se jogar no lago foi uma péssima ideia.

— Mas foi legal. — os olhos dela brilhavam.

— É, foi. — sorriram para o outro, depois subiram um lance de escadas. — Só que não vamos fazer isso de novo. Ao menos, não a coisa do lago.

Ela concordou com a cabeça, seguindo-o. Felizmente, não se depararam com ninguém durante o trajeto. No corredor dos quartos, Hades acompanhou Perséfone até a porta amadeirada dos aposentos em que estava hospedada.

Houve um longo silencio entre os dois, embora o sorriso fosse incontrolável.

— Essa foi de longe a melhor noite que já tive. — Perséfone quebrou o silencio, soando muitíssimo animada. — Foi demais!

— Eu sei que sim. — deu de ombros, igualmente risonho. As bochechas até doíam. Fazia muito tempo que não se divertia dessa maneira. — Estar com você é sempre divertido, querida.

— Digo o mesmo.

Ele ficou olhando para ela, para o sorriso dela, depois pigarreou, sentindo-se ligeiramente envergonhado com o silencio constrangedor.

— Acho melhor entrar. E trocar essas roupas. Depois te busco aqui para jantarmos. — coçou a nuca, desajeitado. — Acho que o jantar já foi retirado, mas posso providenciar isso.  

— Claro.

Mas ela não se moveu.

Foi quando ele percebeu que estava suficientemente perto para notar os detalhes de seu rosto. O sorriso dela desapareceu, os olhos esverdeados o fitavam de um jeito muito sério. Muito tempo pareceu ter passado em silencio.

A mão pequena de repente segurou seu braço esquerdo. Foi um movimento involuntário, que causou um calor entre os dois, embora estivessem enxarcados.

Mas não foi isso que o aproximou. Ele não soube ao certo o que foi. Algum magnetismo, talvez – não havia explicações racionais. Os narizes quase se tocavam, e ele podia enxergar as pequenas sardas – quase invisíveis – no rosto meigo.

O coração dela palpitava forte e não respirava. Estava presa em um transe, presa naqueles olhos.

— Perséfone. — a voz rouca quebrou o silencio entre os dois. — Eu posso...?

A pergunta nunca foi feita, ficou no ar. Apesar da falta de experiência, ela sabia muito bem o que tudo aquilo significava.

— Achei que nunca fosse perguntar.

E foi isso.

Simples assim.

Pegou-o desprevenido no último segundo, puxando-o pelo colarinho da blusa encharcada, encerrando toda e qualquer distância que poderia existir entre eles.

Os lábios se chocaram, quentes e firmes, contra os dela e, quando a língua dele começou um ataque suave, Perséfone abriu a boca sem cerimonias. A princípio foi um pouco eufórico, desajeitado, mas logo seus corpos se encaixaram e o beijo tornou-se cuidadoso e intenso, causando leve espasmos no corpo dela. As mãos dele esparramaram-se nas costas feminina, acariciando-a, e ela agarrou os fios da nuca, apertando-os entre os dedos, fazendo-o soltar pequenos suspiros. 

Sempre que Perséfone lia romances, os escritores faziam o maior estardalhaço com línguas e salivas, chegavam até a envolver fogos de artificio.

Mas beijar Hades era diferente. 

— Gosto tanto de você. — ele sussurrou entre os lábios dela, apertando-a mais contra o peitoral.

Ela afastou um pouco, ofegante, apenas para fitá-lo. Parecia haver dúvida nos olhos ônix, como se tivesse medo de que nada daquilo fosse real. 

— Eu também. — foi dito com tanta convicção que ele não fez objeções. O rapaz subiu uma sequência de selinhos por toda a face, afogando-a em carícias inesperadas. 

Ela o beijou na boca novamente, mordiscando o lábio, com os pulmões ardendo. Pensou se existia alguma palavra que pudesse descrever aquele misto de sensações. A sensação de que tudo está certo, exatamente como devia estar. Algo que queima de dentro para fora, ao ponto de doer. 

A sensação de experimentar o paraíso. 


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Notas finais do capítulo

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