Era sábado, os pássaros já cantavam, o som das pessoas andando e resmungando na rua abaixo já chegava ao quarto dos meninos.

"Algo está diferente", pensou Damian.

A casa em si se encontrava em completo silêncio, tão silenciosa que chegava a ser um incômodo.

"Algo está diferente", esta frase ainda perambulava pela mente de Damian.

Damian olhou ao seu redor, Lars ainda dormia. A noite passada fora o 18° aniversário de Damian e o 17° de Lars. Os dois foram deixados no mesmo dia à porta de Isabel, uma viúva que nunca pode ter filhos. Não era possível saber a data exata de nascimento de nenhum dos dois, mas Damian era claramente mais velho que Lars, assim foi decidido que Damian era 1 ano mais velho. Como já é de se imaginar, o aniversário obviamente foi decidido como sendo o dia em que eles apareceram, 07 de setembro.

Voltando para a manhã de Damian, logo após olhar para Lars, que dormia em uma cama não muito longe da sua, Damian olhou para a janela, na verdade uma porta de vidro que levava para a sacada de seu quarto. Foi nesse ponto que ele teve certeza:

—Algo está diferente...

O sol já não batia em seu rosto, a luz do sol não vinha da frente, mas de cima, um pouco na diagonal para ser mais claro. Isso significava que já deviam ser no mínimo 10 horas, algo completamente anormal para eles. Isabel não gostava nem um pouco que seus meninos acordassem tarde. Todo dia, sem exceção, às 06:30 em ponto ela os acordava com um banho do sol que batia diretamente em seus rostos adormecidos. Mesmo em dias de pouco sol, o simples fato de Isabel abrir a janela já ativava algo instintivo que os fazia acordar no mesmo momento.

Damian levantou correndo de sua cama e sem nem vestir uma camisa (para completar o pijama que Isabel havia comprado, sendo que ele se recusava a vestir algo que não fosse as calças na hora de dormir) desceu as escadas. Algo estava muito errado, Isabel não havia os acordado, e além disso, a casa se encontrava em um silêncio mortal. A essas horas Isabel ficava cuidando de algo pela casa, sempre algo que fazia no mínimo um resmungo distante ecoar pela casa.

Damian olhou na cozinha… Na sala… No quintal… No quarto… Até mesmo o porão foi alvo de buscas. Cada cômodo daquela casa ouviu a voz de Damian chamando por sua mãe… Mas ninguém acabou por responder.

Damian subiu as escadas tão rápido quanto desceu e encontrou Lars com a metade inferior do corpo coberto por cobertores enquanto repousava suas costas no encosto da cama. Lars era um rato de biblioteca, livros cercavam sua cama de tão lotada que a prateleira ao lado da cama estava. Todos os livros ali foram lidos e relidos ao menos 3 vezes, assim como o livro em suas mãos: “O Bom, o Mau e o Monstro”.

Damian estava ofegante, algo visto por um número incrivelmente baixo de pessoas. Ele havia corrido por toda a casa e subiu todo aquele lance de escadas mais de uma vez, em todas elas com pressa, porém, isso estava longe de ser o motivo de sua fadiga. Damian não estava cansado, Damian estava nervoso.

—O que houve? - Lars logo perguntou, preocupado com o irmão.

—Então você realmente não notou...

Damian vestia logo as primeiras roupas que encontrava pela frente. Todas pretas, já que o guarda roupa de Damian não fugia muito dessa tonalidade.

—Não notei o quê?

—Você tá falando sério? Você não notou mesmo?!

—Fala logo! Sabe que sou meio lento as vezes...

Damian largou tudo que estava fazendo e olhou para Lars com um olhar melancólico:

—A mamãe sumiu.

♢

Ambos estavam voltando de uma visita miseravelmente decepcionante à delegacia da polícia local. Além do oficial à atender eles parecer mais do que desinteressado em fazer seu trabalho, o ar em toda a delegacia passava um clima de indisposição. Se tudo fosse largado nas mãos deles a Isabel jamais seria encontrada, mas o que os dois sozinhos poderiam fazer?

Durante a viagem de volta para casa os dois começaram uma breve conversa.

—Isso não vai dar em nada… - Damian teve a graça de iniciar o diálogo.

—Você deveria aprender a ter mais esperança nas coisas...

—E você deveria aprender a ter menos. A vida não é tão boazinha quanto você faz parecer ser.

Lars ficou pensante por um segundo e retornou um sorriso acolhedor como resposta.

—Bem, alguém precisa manter a esperança nessas horas. É essa esperança que nos vai manter sãos.

—Talvez você tenha razão... Mas não minta pra si mesmo, você sabe que esses inúteis não vão fazer nada por ela.

—É... Infelizmente não vão mesmo.

Seu sorriso diminuiu levemente mas não ousou sair daquele rosto de bochechas rosadas.

—Mas mudando de assunto, Você... Eles... Muito?

Algo tirou completamente a atenção de Damian e não deixou que ele compreendesse o que Lars dizia.

Enquanto andavam, passaram ao lado de um beco escuro e de aparência úmida. Damian virou seu rosto para olhar beco adentro, e por alguns segundos viu um sorriso que transbordava empolgação, junto de um olhar penetrante e profundo. Tudo começou com um sentimento de frio na barriga. Um arrepio desceu por toda a extensão de seu corpo e seu coração palpitou. Aquilo era nostálgico, mas era uma nostalgia diferente, brutal e aterrorizante, porém, acolhedora ao mesmo tempo.

  Um simples piscar de olhos foi o suficiente para que essa imagem desaparecesse e deixasse Damian parado no meio da calçada, observando o beco.

—Ei!

Lars o tirou de seu transe com um tapa leve na nuca e seguiu falando.

—O que aconteceu? Já faz mais de um minuto que vc tá aí olhando pro nada e não parece ouvir uma palavra do que eu digo. - Lars estava sinceramente sem entender absolutamente nada.

—Minuto? - Damian perguntou, tão confuso quanto o irmão.

—É, minuto. Talvez dois.

—Mas...

—"Mas..."? - Por dois segundos Lars teve a esperança de que Damian explicasse algo, mas logo viu que não ia rolar.

—Deixa pra lá...

Lars resmungou e sorriu levemente.

—Você tem muita sorte que sou a pessoa mais compreensiva do mundo... Se não estiver a fim de falar eu entendo.

—Obrigado...

O resto da viagem de volta foi repleta de silêncio.

♢

Damian estava estranho, e Lars não demorou nada pra notar isso. Já era fim de Tarde da noite e Damian não falou praticamente nada por todo o dia.

Lars estava deitado num sofá da sala enquanto olhava para o teto e imaginava toda sorte de mini seres reais e fantasiosos voando sobre sua cabeça enquanto ouvia o som da TV ao fundo, foi quando ele sentiu algo, algo parecido com um pressentimento. Mas, diferente de qualquer pressentimento que ele havia sentido antes, este era forte, muito mais forte. Foi como se uma mão gelada como a de um cadáver gentilmente envolvesse seu coração e lentamente o apertasse. Em seguida sentiu como se seus sentidos estivessem mais apurados do que já nunca estiveram durante toda sua vida.

As portas e janelas estavam trancadas pois já estava próximo do horário de dormir de ambos, mas mesmo assim um pensamento se recusou a esvair da mente de Lars: "Tem alguém aqui"

♢

Damian estava deitado em sua cama e sua mente estava completamente nebulosa. Sua mãe havia simplesmente desaparecido. A polícia não parecia querer ajudar e provavelmente não ia.  Além de tudo isso ainda houve o ocorrido no beco. Damian nunca esteve tão confuso em sua vida.

A única luz que iluminava seu quarto era a luz da lua cheia pairando no céu e entrando diretamente pela mesma janela que o acordava toda Manhã. Não demorou muito para que Damian caísse no sono...

~♢~

Era um campo gramado gigantesco, grama, grama e mais grama. Grama até onde os olhos não podiam mais enxergar. Porém, essa grama era cinza, assim como o céu noturno dali e suas nuvens. Uma gigantesca Lua branca como os cabelos de Damian planava sobre a estrelas.

Damian estava sozinho nesse campo, quando ouviu uma voz que lhe trouxe uma sensação de conforto tão grande quanto a de Isabel, mesmo sendo uma voz mais profunda e grave:

"VOCÊ NÃO DEVERIA CONFIAR A VIDA DELA À ELES"

—Você fala como se eu quisesse! - O comentário atingiu Damian como um soco gelado no peito.

"NÃO... DEFINITIVAMENTE NÃO QUER, SEI BEM DISSO. MAS DIGO QUE ESPERAR SENTADO TALVEZ NÃO LHE SEJA TÃO FAVORÁVEL."

—E o que espera que eu faça?

"SEI EXATAMENTE O QUE DEVE FAZER, E VOCÊ SABE TAMBÉM"

—O que quer dizer com isso?? - A voz brincando de mestre dos magos começava a irritar Damian. Mesmo assim era um sentimento muito supérfluo. Damian não demonstrava muito bem, mas a voz lhe trazia calma.

"BEM, SÓ ME RESPONDA UMA ÚNICA QUESTÃO... O QUÃO LONGE VOCÊ IRIA PRA PROTEGER ALGUÉM QUE AMA?"

—O mais longe possível, e ao atingir esse limite eu andaria até meus pés sangrarem para atingir o impossível...

"HUM... VOCÊ NÃO TEM IDÉIA DE QUÃO LONGE IRÁ."

—E isso lá importa?

"VOCÊ CRESCEU MUITO, MAS AINDA AGE COMO UMA CRIANÇA EM CERTOS MOMENTOS... ISSO É BOM, É ÓTIMO, SIGNIFICA QUE A INOCÊNCIA EM VOCÊ AINDA NÃO MORREU..."

—Ei, você havia me dito que eu sei exatamente o que fazer, o que quis dizer com isso?

"UMA EXPLICAÇÃO NÃO É NECESSÁRIA"

—Claro que é! E eu adoraria que ela ocorresse agora.

O vento soprou com tamanha força que chegava a uivar, e em poucos segundos um vulto surgiu logo em frente de Damian, observando de longe.

—Quem é você? - Damian gritou. A maneira como ele agiu com naturalidade foi algo que surpreendeu até mesmo o próprio Damian. Provavelmente ele percebeu que aquilo não passava de um sonho.

"UMA PARTE DO SEU PASSADO, E A SOMBRA DE UM FUTURO NÃO DISTANTE..."

—Por que não me responde direito?!

A visão de Damian ficou turva e em um piscar de olhos o vulto estava a menos de 1 braço de distância.

"PORQUE VOCÊ JÁ SABE AS RESPOSTAS"

E um clarão cegou Damian.

♢

  Damian despertou com a luz do sol em seus olhos...

♢