O Projeto Inesperado de Mike Hudson escrita por Lucca


Capítulo 2
Primeiro Capítulo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/762469/chapter/2

Primeiro Capítulo 

A Metáfora do Titanic 

 

— Estou um pouco preocupado com você. A cada vez que nos encontramos, você demonstra menos expressões e sentimentos e, segundo as anotações que fiz, tudo indica que o seu nível social está decaindo, em controvérsia com seu nível de tendência à depressão, que só parece estar aumentando.  

 Mike... Eu sou o psicólogo.  

Em Deerwood, Pensilvânia, poucas pessoas sabiam usar o sarcasmo tão bem quanto Mike Hudson. Para ele, o uso de tal figura de linguagem era tão simples quanto o ato de enrolar um cachecol ao redor do seu pescoço. Infelizmente, isso tornava o trabalho do sr. Will um pouco mais difícil de ser executado.  

Sua sala naquele consultório possuía uma janela de vidro que cobria toda a parede, dando uma vista dos prédios da cidade e permitindo a iluminação ser totalmente natural durante os horários em que o sol brilhava. Além disso, também possuía um pequeno lustre branco e bege, mas sem lâmpadas, um quadro pintado à mão por um homem cego e uma escada para um andar acima no canto esquerdo.  

— Você realmente não planeja me contar o que existe lá em cima? — Mike perguntou, olhando para a escada e juntando as sobrancelhas. — Nós nos conhecemos há algum tempo, você deveria considerar a ideia.  

— Isso é tudo que você pensa ao vir para cá? — o sr. Will perguntou, sentando mais eretamente em sua poltrona e recolocando os óculos no lugar. 

— Basicamente. — respondeu, pendendo a cabeça para o lado esquerdo. — E eu também penso em como o sistema de limpeza de ruas da cidade não está funcionando, esse bairro está parecendo um lixão. Você deveria ligar para a prefeitura, aproveita que não estamos fazendo nada de mais interessante. 

O psicólogo balançou a cabeça negativamente com os olhos fechados, logo em seguida repreendendo-se mentalmente, pois não deveria demonstrar seus pensamentos e opiniões pessoais quando não contribuíssem para o crescimento de seus pacientes. 

— Sabe do que eu acho que você precisa, Mike? Mais interações sociais. Já considerou voltar a estudar?  

— Não. 

— Nós falamos sobre isso semana passada.  

— Eu lembro. Sua esposa estava tentando engravidar na semana passada. Ela ainda está tentando? 

 — Isso é extremamente pessoal, mas onde deseja chegar?  

— A questão é: assim como sua esposa não mudou de ideia sobre conceder o legado da nossa miséria para uma criatura, eu não mudei de ideia sobre conviver com as provas vivas do legado da miséria humana em forma de adolescentes.  

— Mike... 

— Não, Will. Eu sei das suas expectativas pra mim, mas não. Eu não planejo voltar a estudar. Principalmente depois de saber que o time de basquete queria o animal símbolo da cidade como mascote, mas o clube de drama protestou contra porque sentiu inveja. Você sabe qual o animal símbolo da nossa cidade?  

— Um veado? 

— Um veado. Exatamente. 

Não era uma mentira. O protesto havia acontecido na praça de alimentação da Deerwood High School e no final da tarde haviam uniformes de basquete e roteiros de Hamlet rasgados por toda a parte. Talvez porque tivesse uma mente que era excentricamente literal e lógica, mas Mike não entendia como um veado conseguia ter criado tanta confusão.  Nem sequer era um veado tão bonito. 

— E quanto ao grupo de apoio que eu indiquei?  

Mike abriu a boca para responder e então a fechou, lembrando-se da tarde em que passou no grupo de apoio à adolescentes.  

— Por que não nos conta um pouco sobre você?  

— Bom... Me chamo Mike Hudson. Tenho dezessete anos. Seis comprimidos. Nada de facas ou giletes em casa, pelo menos não depois da última tentativa. E eu vim até o grupo por indicação do meu psicólogo e porque meus pais me fizeram escolher entre isso e uma visita à casa dos meus tios. E eu pensei "de jeito nenhum isso pode ser pior do que caçar coelhos enquanto escuto piadas misóginas de dois senhores de meia idade", mas então aquele cara ali, você mesmo, o gordinho, começou a contar a história sobre as bolinhas de pingue-pongue que ele herdou do avô e criou em mim a vontade de voltar no tempo para poder escolher a outra opção.  

— Eu não tenho certeza se gostaria de voltar lá. — explicou, olhando para baixo e coçando a parte de trás de sua cabeça.  

Pouco mais de uma hora depois, Mike estava indo embora quando recepcionista do consultório o chamou com um sorriso de orelha a orelha. O garoto se perguntava se a motivação dela era mostrar que o seu plano dentário era melhor do que o de muitas pessoas toda vez que isso acontecia. 

— Ei, Mike! — ela o chamou, acenando com a mão direita e lhe entregando um pequeno papel, assim como fazia a cada final de sessão. — Espero que torne o seu dia melhor.  

"O silêncio é a única resposta que devemos dar aos tolos. Porque onde a ignorância fala, a inteligência não dá palpites", era o que estava escrito, um pequeno incentivo, como chamavam. 

— E então, o que achou?  

Mike não respondeu, apenas foi embora. Não era sempre tão obediente, mas pela primeira vez concordara com o que o pequeno incentivo lhe dissera. Ou talvez fosse apenas uma desculpa para não continuar conversando.  

Eu espero que ele melhore, os pais não merecem tanto sofrimento em casa. 

Uma pena, tão bonito e tão jovem. 

É, por isso que ele usa tantos cachecóis, a corda deixou uma marca terrível.  

Ele precisa de oração, talvez se o levarem até a igreja para que o padre reze por ele. 

Eu até tento entender, mas será que ele não podia simplesmente tentar ficar feliz? 

— Confundirem meu estado de saúde com um estado emocional já não é muito aceitável. Confundirem com surdez é simplesmente terrível. — resmungou.  

— O quê, filho? — perguntou o sr. Hudson ao ouvir a voz do filho falar algo um pouco incompreensível. 

— Nada, pai. Só estou lendo em voz alta.  

Hudson's era a biblioteca que o pai do Mike possuía, provavelmente a maior da cidade, pelo menos em quantidade e diversificação de livros. Era apenas uma das fontes de renda da família. Karl, sempre que podia, reservava um dia da sua agenda como empresário de imóveis para controlar a qualidade do atendimento. Era um negócio que transcendia gerações.  

Quando criança, era o lugar preferido do Mike, naquele lugar tudo era possível. Ele rodava o mundo sentado no mesmo lugar, passando pelas prateleiras de contos de fadas. Naquele dia, no entanto, era apenas mais um dos lugares em que ele se sentia desconfortável.  

Graças às estrelas faltavam poucos minutos para que seu pai o levasse para casa, já que ele ainda teria mais uma visita como empreendedor num condomínio. Mike não deixava que seus pais soubessem, mas ele já havia descoberto o plano de nunca deixar ele sozinho desde o primeiro dia após voltar para casa.  

Estava num momento pouco interessante do seu livro quando uma garota de cabelos loiros e lábios finos o interrompeu, pigarreando a garganta. Ao seu lado, estava mais uma garota, bastante parecida com ela, provavelmente sua irmã ou prima, não havia muita diferença de idade. Seria uma surpresa se alguma delas tivesse mais que quatorze anos.  

 — Com licença, você trabalha aqui? — ela perguntou com um pequeno sorriso e uma voz agradável de se ouvir.  

Mike fechou o livro ajeitou sua roupa que estava um pouco amarrotada ao levantar-se do banco em que estava sentado. 

— Não, mas talvez possa ajudar.  

— Oh, ótimo. Estamos procurando um livro para entregar uma redação na aula de literatura inglesa. — então virou-se para a menina do seu lado rapidamente — Como é mesmo o nome?  

— Ahn... Droga, eu anotei em algum lugar. Ah! Cinquenta Tons de Cinza

Talvez estivesse sendo dramático demais, porém naquele momento Mike odiou não ter sucedido na sua última tentativa de suicídio muito mais do que já havia odiado antes.  

Ele bateu o livro que lia com força no balcão de madeira da sessão de atendimento. Força o suficiente para que seu pai derramasse o chá que bebia no chão.  

— Mike, o que foi? 

— Uma criança acabou de me perguntar onde ficava Cinquenta Tons de Cinza. Porque, segundo ela, é preciso fazer uma redação sobre algum livro importante para entregar na aula de literatura inglesa. Eu quero ir pra casa. 

Existia uma certa quantidade de coisas que Mike gostava e não gostava de fazer. Assim como a lista de coisas que ele já havia gostado, mas, no entanto, agora não gostava mais. Interação social, séries de terror e Justin Timberlake eram alguns dos itens na lista.  

Na lista de coisas que nunca havia gostado, estavam livros ruins no top dos mais vendidos da América e reality shows sobre mulheres fúteis, entre outras coisas.  

Na lista de coisas que gostava, Mike cultivava pequenos prazeres que provavelmente não seriam compreendidos por outros seres humanos. Como o cheiro da chuva encostando na plantação ilegal de maconha que seu vizinho disfarçava com alfaces, lamber tampas de iogurte de morango e assistir Titanic enquanto comia uma daquelas lasanhas que eram vendidas em caixas congeladas. 

— Seu pai me contou sobre o que aconteceu hoje na biblioteca. Se quer saber, eu concordo plenamente com você. E o seu pai também, sabe. Nós podemos discutir sobre isso quando ele voltar. — os pais de Mike sempre tentavam puxar assunto com o filho, mesmo que quase nunca conseguissem — Você deveria assistir outra coisa. É a terceira vez essa semana e só estamos no começo dela. — disse a sra. Hudson, que atendia pelo primeiro nome de Lydia, enquanto entregava um guardanapo para o filho e retirava o prato onde antes havia um pedaço de lasanha. — E eu nem sequer sei o que você vê de tão interessante na história desse filme, o casal sequer fica junto no final. 

Mas não era a história do filme que Mike via.  

Entre suas qualidades, o garoto de cabelos loiros possuía o dom de enxergar coisas que passariam despercebidas por outros olhos. Ele sabia que a florista do seu bairro sentia pena dele, porque ela cuidava de flores como se fossem reais tesouros, mas ainda assim o oferecia uma rosa sempre que podia. Sabia também que o seu psicólogo provavelmente fumava escondido de sua esposa, já que nos bolsos de suas camisas estavam sempre uma parte quadrada um pouco maior, do tamanho exato de uma caixa de maços. Mas, o pior de tudo, Mike sabia que estava atrapalhando a felicidade de seus pais. Essa era uma das coisas que mais o afligia, pois sabia que eles não haviam errado em momento nenhum com ele, mas mesmo assim não havia nada que ele pudesse fazer para sair do buraco negro em que se encontrara. Talvez saber muito sobre muitas coisas tenha o levado aonde ele chegou. Poucos sabem que a ignorância pode ser tida como um presente.  

Então, ao assistir Titanic, Mike enxergava uma metáfora perfeita de sua vida. Um navio que havia sido planejado tão detalhadamente e projetado para surpreender e facilitar a vida de tantos outros. Mas apenas um descuido, apenas um deslize, e de repente ele havia desaparecido no meio do oceano. Ele se enxergava como alguém que havia sido criado para suceder, afinal, seus pais sempre investiram nele. E no momento ele se encontrava afundando. Não havia nada que alguém pudesse fazer para ajudá-lo.  

— Mike, você se incomoda em lavar a louça? — questionou Lydia da cozinha, fazendo com que Mike levantasse de onde estava para ajudar sua mãe naquela tarefa doméstica.  

E foi tudo que bastou, um pequeno deslize de falta de atenção, para que Mike, mais ou menos como o Titanic encostou na ponta de um iceberg, batesse com a cabeça no armário de alimentos da cozinha e desmaiasse.  


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!