O que aconteceu na taverna do Dente Do Dragão? escrita por Carenzinha


Capítulo 1
Estou encrencado, eu acho. (único)




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Eu caminhava pelas ruas nada melodiosas de Ady, a terra sujava minhas botas, mas eu nem me importava. Tinha parado de me importar com coisas costumeiras e muitas vezes inúteis e frescas. Suspirava tentando aliviar a tensão enquanto andava cabisbaixo encarando a estrada com algumas pedras.

Eu tinha uma preocupação maior agora.

Era hoje, sim hoje.

Eu estava dolorido, com manchas roxas e marcas de sangue no corpo. Não me lembrava como tinha conseguido esses hematomas.

Eu tremia da cabeça aos pés, era possível ouvir o barulho do ranger dos meus dentes. Estávamos no outono, uma época nem tão quente, mas também estava longe de ter o frio cortante do inverno. Mesmo assim eu sentia como se a mais gelada das neves estivesse caindo sobre meus cabelos, entrando pela minha blusa e passando pelas minhas costas. Um frio mais intenso do que a mais gélida brisa, meu medo.

Há aqueles que subestimam o medo, que parecem ter prazer de chamar os outros de covardes, mas a verdade, a mais pura verdade, é que poucos conseguem enfrentar o medo. É preciso ter muita força para que o desespero não engula todas as suas emoções e te deixe vazio de esperança. E era com isso que eu estava lutando, por mais que existam dragões e monstros horrendos, o desespero naquele momento era meu maior inimigo. No fundo sempre foi, mas eu era um tolo para aceitar isso. Não gostava de admitir minhas fraquezas e desesperos, preferia me afogar em bebidas em uma taverna qualquer.

Um erro, eu sei.

Uma falha igual a todas as outas que eu andava cometendo ultimamente.

“Se eu sair vivo dessa, prometo que nunca mais bebo.” Pensei comigo.

Minha mente cantarolava uma melodia, embora eu fizesse o maior esforço possível para parar, aquela não era hora de cantar. Aquela não era hora de ser um bardo.

Infelizmente, meu cérebro devia ter algum tipo de problema, onde só funcionava com músicas ou coisas do tipo, pois em contraste com meu gélido corpo, minha cabeça parecia estar aquecida, graças às músicas que vinham na minha cabeça.

A rua estava deserta, e eu não culpava ninguém. Enquanto passava pude perceber que as pessoas fechavam bruscamente as janelas de suas casas e se escondiam o mais rápido possível, a culpa não era delas, ninguém gostaria de esbarrar em uma pessoa acusada de um crime daquela magnitude.

As notas vinham fortes na minha cabeça, minha mão tremia, por causa do medo e da vontade que eu estava em extravasar meu desespero e raiva em algo ou alguém. Eu não me meteria em mais uma briga, minha situação já estava ferrada o suficiente para eu estragá-la ainda mais. Eu também não poderia beber, tinha que ficar sóbrio para o que eu estava prestes a enfrentar, embora aceitasse uns sete copos da bebida mais forte que pudessem me dar.

A única coisa que me sobrava era tocar, mesmo me abominando e me criticando por dentro. Minha situação não estava desesperadora o suficiente? Que tipo de pessoa pensaria em uma música em uma hora como essa?

Em uma de minhas viagens me avisaram que nossa cabeça tenta transformar nosso medo em algo menos desesperador. Mas tocar? Agora? Eu nem conseguia acreditar na insanidade de meus pensamentos.

Eu poderia morrer e parece que estava adiantando minha marcha fúnebre.

Deixei meus dedos me guiarem conforme os passava pelas cordas, eu nem sabia o que ou por que estava tocando, embora achasse isso ridículo. Que tipo de pessoa tocaria em uma situação que o final poderia ser incrivelmente trágico?

Minhas notas estavam fracas, agudas e leves. Eu sabia o que aconteceria, mas não adiantava mais me punir. O que estava feito, infelizmente estava feito.

A música que tocava não era alegre, era audível, mas não possuía a mesma intensidade do que eu normalmente tocaria. Eu não estava em uma taverna, festa ou comemoração, eu estava indo para algo que provavelmente seria minha execução.

“E mesmo assim você rima nessa situação?” Pensei.

Continuei tocando enquanto caminhava, tentando pensar em algo que me fizesse escapar da enrascada em que eu estava, mas eu falhava. Minha mente musical só pensava em notas e sons variados.

Poderia estar relembrando meus melhores e marcantes momentos, mas a única coisa que rondava minha mente era as rodadas de cerveja e as músicas que já toquei ao longo da vida.

“Ó grande rei mil perdões.

Por não conseguir lembrar o que fiz.

Se fui culpado ou não.

Isso eu esqueci.”

A rima mais idiota que já tinha passado pela minha cabeça, mas que revelava o desespero nítido. Tinha feito uma coisa grave, disso eu sabia, pois o rei tinha me chamado para uma audiência.

Acho que você sabe o que acontece quando um membro do povo, um não nobre, é chamado para uma audiência com o rei. Um jeito mais formal de dizer execução.

“Eu estava envergonhado.

Completamente encrencado.

Ó rei poupe minha vida.

Por mim não fiz nada de errado.”

Suspirei cabisbaixo, isso nunca daria certo.

“Cantando para si mesmo, bardo?” Uma voz surgiu atrás de mim, o que me fez dar um grande pulo de medo e terror.

Quando me virei para ver quem era, meus olhos se depararam com os olhos azuis profundos e a barba grisalha, usava uma túnica azul escura e em seu cinturão estava poções diversas.

“Minha nossa! Você quase me matou de susto!” Gritei, com o coração disparado, sentindo um suor gelado escorrer por minha face.

“Posso saber o motivo dessa extrema preocupação e dessa música tão fúnebre para uma alma tão jovem e aparentemente festeira como a sua?” Ele perguntou, com um sorriso bondoso.

“Infelizmente ninguém pode me ajudar, senhor.” Dei de ombros, me sentindo profundamente mal com esse choque de realidade que eu tinha falado em voz alta.

O idoso sorriu novamente.

“Mesmo assim conte-me. Soube que bardo adoram contar uma boa história.”

“Queria que minha história fosse boa e não sei lá... deprimente e com mais furos do que um queijo ou aquela toalha velha que só não jogam fora por ter valor sentimental.” Suspirei entristecido.

Histórias deixavam de ser boas quando o protagonista era o próprio bardo, que estava ferrado.

O homem riu.

“Está tudo bem, contar uma história sobre si mesmo pode ser mais fácil do que parece. Comece dizendo seu nome.” Ele sorria de um modo bondoso.

Que mal faria contar o motivo da minha enrascada? Mesmo não me lembrando direito qual era, acho que minha situação não tinha como piorar.

“Sou Hugo Wate.” Respondi.

“Prazer em conhecê-lo, Hugo Wate. Sou Eliot Artensio.” Ele respondeu e estendeu a mão, eu a apertei.

“Sua mão está molhada.” Ele observou olhando para ela.

“Desculpe! Desculpe!” Apressei a limpa-las em minha blusa.

Ele soltou uma leve risada.

“Está tudo bem, suor é uma coisa que todos temos.” Ele deu de ombros enquanto ria.

“É que esse não é um suor normal, eu me sinto gelado e estou tremendo.” Respondi.

“Então está com muito medo...”

“Apavorado.” O corrigi.

“Ainda espero a explicação para isso, mas tudo bem, eu tenho tempo.” O sorriso de Eliot era largo e calmo.

“Acontece que talvez eu não tenha.” Respondi. “Quero dizer, eu acho.”

“Acha que não tem tempo?”

“De uns dias para cá eu venho achando muitas coisas na minha vida. Não sei o que aconteceu, é como se minha memória viesse falhando...” Admiti.

“Você bebe diariamente e em grande quantidade.” Ele disse, o que fez eu ficar um tanto assustado, não tinha revelado isso para o homem.

“Nã-não... que isso.” Tentei disfarçar, mas não adiantava. Se não tinha dado aquela informação para ele, agora minhas bochechas vermelhas de vergonha teriam me entregado.

“Sei...” Ele arqueou uma sobrancelha, com uma expressão que era capaz de detectar uma profunda mentira.

“Certo, certo. Eu bebo bastante.” Respondi derrotado, não adiantaria mentir.

“Mas o que está querendo tanto lembrar?” Ele perguntou.

Suspirei.

“Eu estou querendo lembrar de algo importante, tenho uma audiência com o rei.”

“Audiência com o rei?” Ele perguntou curioso. “Você é um nobre ou alguém com futuro militar?”

Neguei, pude perceber que seu olhar ficou desapontado, logo depois se transformou em pena.

“Não precisa ficar assim, eu já sei que vou morrer. O problema é que não consigo me lembrar do que aconteceu ontem para eu estar nessa situação hoje.” Respondi, me punia mentalmente, como eu poderia ter esquecido de tudo o que ocorreu?

“Então você quer se lembrar de o que aconteceu na noite passada?” Ele perguntou, sem desviar o olhar de mim.

Assenti.

“Acho que posso te ajudar.” Ele falou.

“Vai me custar algum dinheiro? Acho que tenho pouco aqui. Se eu não estivesse com tanta pressa iria até minha casa e pegaria uma quantia melhor.” Respondi.

“Não vai custar nada, meu jovem, só queria uma chance de ajudar alguém.” Respondeu.

Meus olhos se arregalaram e eu sorri involuntariamente.

“Qualquer ajuda é bem vinda.” Pensei.

“Certo, de que precisa?” Perguntei empolgado, talvez houvesse uma chance de eu escapar.

Sei que eu nunca tinha visto Eliot em minha vida, mas aceitaria qualquer coisa se isso contribuísse para minha encrenca diminuir.

“Só quero que me diga do que tem tanto medo.” Ele respondeu.

Falar sobre meus medos nunca foi algo de meu agrado.

“Eu tenho medo de que a coisa mais importante que tenho seja tirada de mim nessa audiência.” Respondi. Estava suando, cabisbaixo e com medo. Assustado o suficiente para contar tudo para um mero estranho.

“Talvez eu possa dar um jeito nisso.” Ele respondeu sorrindo. “Mas precisa se lembrar do que?” Ele perguntou.

“Estou encrencado, já que não sou nobre e terei que ver o rei, devo ter feito algo que o desagradou. O problema é que eu não sei o que fiz.” Disse, ficando um tanto nervoso, estava mais preocupado do que antes, pois estava falando tudo o que estava acontecendo em voz alta.

Por algum motivo minha enrascada parecia menos trágica e ruim quando estava apenas na minha cabeça.

“Entendo... tenho algo que pode te ajudar.” Ele disse enquanto vasculhava o próprio cinturão, pegava cuidadosamente um frasco, o colocava mais próximo da visão dele e depois o guardava. Fez esse procedimento por mais ou menos umas sete vezes, sendo que seu cinturão continha 11 frascos.

Foi em sua oitava tentativa que o homem pegou um frasco com um líquido verde escuro, olhou para o recipiente com aprovação e logo depois me entregou.

“Certo, e o que eu faço com isso?” Perguntei confuso observando o líquido verde, tomando cuidado para não derrubar.

“Não balance!” Ele me repreendeu enquanto terminava de arrumar seu cinturão.

“Desculpe!” Gritei assustado.

“Você realmente está com medo, não estava balançando o frasco, mas mesmo assim se desculpou no caso de ter feito algo errado.”

“É, eu acho.” Murmurei.

“Agora tudo o que precisa fazer é beber tudo.” Ele respondeu.

“O QUE?!” Perguntei surpreso.

Ele assentiu.

“E em um único gole.”

Eu já tinha ouvido inúmeras histórias muitas delas sobre pessoas que tentavam envenenar as outras. Eu não queria aceitar um líquido que me foi entregue por um estranho.

“Como saberei que você não vai me envenenar?” Perguntei.

Eliot riu.

“Eu sou um alquimista, por que te envenenaria?”

“Porque você é um alquimista e alguns envenenam outras pessoas.” Respondi o obvio.

“Reconheço sua insegurança, mas entre morrer por um veneno de um alquimista e por execução não tem muita diferença, correto?”

Eu definitivamente não tinha muita escolha.

“Esse treco não vai me prejudicar mesmo?” Perguntei apreensivo.

“Se isso acontecer quero que um raio caia em minha cabeça.” Ele respondeu.

“Certo...” Disse um tanto preocupado enquanto olhava o líquido verde contido no recipiente, aquilo me dava um certo nojo, eu teria mesmo que beber?

“E que isso te de as respostas que deseja e a sorte que precisa.” Ele disse em um tom de voz mais baixo.

Respirei fundo e, convencido de que se fosse para morrer era preferível não encarar o rei, virei o frasco e o bebi em um gole só.

 Minha visão começou a ficar borrada e distorcida, senti uma profunda dor de cabeça. Logo depois, tive a sensação do lugar em que eu estava começar a girar. A face do alquimista foi ficando mais distante, a voz dele mais fraca. Minha visão começou a borrar e pude enxergar uns brilhos marrons. Depois esses brilhos foram diminuindo e uma profunda ânsia tomou conta de mim.

Uma grande tontura tomou conta do meu corpo, senti meus olhos latejarem, minhas mãos ficaram geladas de suor e antes que pudesse fazer qualquer coisa, apaguei.

Minha visão voltou a ganhar o foco normal, embora tudo parecia estar mais brilhante e claro do que o costume, o que fazia meus olhos doerem.

Eu por algum motivo tinha parado na taverna do Dente Do Dragão, um lugar que eu sempre tive o costume de frequentar. Eu estava sentado em uma mesa, que já tinha sua ponta comida por cupins. Estava meio tonto, mas mesmo assim conseguia saber o que estava acontecendo. Minha visão tinha desvios de foco, mas me sentia mais acordado do que nunca. O lugar que eu estava era como sempre foi. Aquelas paredes azul escuras, uma goteira no teto, uma bancada verde musgo. Uma rachadura na parede oposta à bancada. Uma porta que sempre rangia quando alguém adentrava ou saia do lugar.

O ambiente cheirava a fumo, bebida, comida, sangue e piadas sem graças, constantemente soltadas por uma pessoa qualquer em uma mesa qualquer, e isso fazia todas as pessoas que estavam na Dente Do Dragão e que possuíam o mínimo senso de humor, darem boas gargalhadas. Claro que muitas vezes a piada era algo idiota, mas a quantidade de álcool no cérebro era capaz de fazer qualquer coisa besta e escrota ser motivo de piada e, consequentemente, de risadas.

Um copo foi depositado cuidadosamente em minha mesa, onde Aleixa, uma garota com cabelos marrons presos em um coque e envolvidos em um lenço laranja me olhava com um sorriso.

Conhecia a garota desde muito tempo, uma garçonete que pretendia começar os treinamentos de guerreira. Uma mulher incrível, ótima de lábia, linda, com um beijo enfeitiçador. Além de preparar ótimas comidas.

“Tem certeza que gostaria de mais um copo, Huguinho?” Ela me chamou pelo apelido carinhoso costumeiro, o que fez minhas bochechas se avermelharem e minha cabeça pensar em várias coisas, uma grande mistura de sensações de uma única vez.

“Claro, pode mandar mais um!” Respondi decidido.

“Mas você já bebeu 12 copos inteiros!” Ela exclamou, me olhando com um leve tom repreensivo.

“Eu? Imagina!” Fingi surpresa. “Eu nem bebo!”

“Sei... e eu também não trabalho de garçonete em uma taverna.” Ela disse em um tom irônico e revirou cuidadosamente os olhos com um sorriso. “Acha que pode pagar tudo?” Ela perguntou, com um olhar provocante, de quem esperava algo a mais.

“Sabe que eu vou recompensar tudo depois do seu turno, não sabe?” Eu perguntei com uma voz mais doce enquanto encarava aqueles pares de olhos verdes. Depois, depositei em sua boca um beijo demorado.

Alguns gritinhos maliciosos foram ouvidos

“Eu estou no trabalho! Tem pessoas olhando.” Ela sussurrou envergonhada. “Agora não.”

Eu assenti com um sorriso besta.

“Boa sorte em seu décimo terceiro copo.” Ela disse com um largo sorriso. Aleixa realmente sabia provocar sensações em um homem. Saiu desfilando de um modo sedutor. Era como se eu fosse derreter.

“Eita cara sortudo!” Um homem barbudo me cumprimentou dando um tapa em minhas costas. “Pegou uma garota incrível.”

“Eu era mesmo um cara sortudo.” Pensei enquanto virava mais um copo e sentia uma sensação de ardência em meu íntimo. Dessa vez, sabia que não era apenas pela bebida, mas pelo meu desejo de ter os lábios de Aleixa colados nos meus.

Depois tive mais um desvio de foco.

Eu ainda estava na taverna, agora, não mais sentado na mesa. O lugar onde eu estava anteriormente possuía aproximadamente uns 20 copos jogados sem nenhuma cautela.

Eu estava em pé fazendo algo que me surpreendi ao ver.

Eu estava me agarrando com outra mulher no meio da taverna, onde todos estavam vendo.

Ao mesmo tempo que uma sensação calorosa me invadia, eu já começava a sentir tonturas e pernas bambas. Eu e a mulher trocávamos um beijo demorado e feroz. Minhas mãos percorriam o corpo dela, o que me dava cada vez uma maior vontade de ficar colado com a moça.

A mulher possuía pele negra, cabelos cacheados, volumosos e bonitos. Um olhar sedutor, penetrante e encantador. Beijava com uma intensidade única, de um modo incrível. Usava um longo, bonito e decorado vestido, coisa não tão comum para um local como o Dente Do Dragão, me perguntava quem era aquela moça.

Mas eu não conseguia entender porque estava fazendo aquilo, eu amava Aleixa.

Mas parece que meu pensamento na hora estava longe de ser a minha amada, estava muito ocupado apreciando os lábios da morena.

Logo depois uma coisa aconteceu, que gelou minha espinha. O beijo foi interrompido por uma mão que me puxou de um modo selvagem e, me arrastando pela blusa, me jogou em uma mesa da taverna, o que fez com que eu machucasse minha perna e barriga.

Agora eu entendia a dor que estava sentindo.

Eu reconheceria aquele braço forte em qualquer lugar. Com uma respiração raivosa me olhava nos olhos de um modo furioso. Perguntava entredentes, com uma entonação de querer me dar um belo soco.

“Responde, Hugo! O que você mais ama?!”

A bebida devia estar realmente muito forte para eu ter desafiado Aleixa. Olhei para ela nos olhos, dei um sorrisinho e respondi.

“Minhas músicas.”

O olhar dela foi algo perturbador. Aleixa bufou, deixando a raiva nítida, depois pegou uma coisa que estava encostada na parede. Meu alaúde.

“Ama suas músicas? Vamos ver se continua amando!” Ela gritou com um olhar de vitória, segurou o instrumento com as duas mãos e bateu com ele na minha cabeça.

Minha visão perdeu o foco novamente.

Eu estava em pé, com um pouco de sangue em minha cabeça e vestes. Minha roupa estava amassada e larga. Apoiei-me em uma mesa, pois já estava cambaleando graças à bebida. Percebi a existência de dois copos no chão e me questionei se não podia ser meus. Teria eu tomado 22 copos?

Na minha frente estava um homem, de vestes surradas, com o dobro do meu tamanho, dentes faltando na boca e cabelos bagunçados. Uma expressão de poucos amigos e que dirigia um olhar mortífero para mim. Eu tentava retribuir isso na mesma proporção, mas minhas pernas estavam tremendo, não sei se era pelo medo que sentia ou pela bebida.

Eu ainda não sabia o motivo dele estar me encarando, mas pela intensidade do olhar, boa coisa não era.

Ele disse algo para mim, mas que eu não entendi por causa do efeito da bebida em meu cérebro e eu infelizmente não sabia fazer leitura labial.

O homem avançou sobre mim e eu, por instinto e vontade de sair vivo da taverna, tentei me defender. Acho que a bebida deve ativar um tipo de força incomum, porque eu estava conseguindo lutar com aquele homem em um combate corporal. Claro que estava ralado, machucado e sangrando, o homem estava em um estado melhor do que o meu, o que fazia com que ele estivesse com vantagem e ganhando a briga.

Mas, olhe pelo lado bom, eu estava vivo!

O grande homem estava com sangue em sua orelha direita, meu nariz estava machucado, meu corpo doía muito, mesmo assim, consegui acertar um soco no olho do homem.

A reação dele não foi das melhores, cuspiu na minha cara e berrou xingamentos ofensivos, que eu fiz questão de retribuir no mesmo calão. Sem a parte de cuspir, me sentia tão tonto graças as porradas e bebidas que se fosse tentar cuspir, minha saliva poderia parar na cara de algum inocente.

Eu não conseguia lembrar o motivo daquela briga, mas nem sei se aquilo tinha realmente importância. Só sei que eu estava apanhando muito.

A briga continuou, acabei sendo jogado no chão, me levantei cambaleando e empurrei o homem contra a parede, pude sentir a adrenalina e raiva que eu estava. Nós dois continuamos a trocar tapas quando um homem, com uma roupa roxa e bordada, adentrou no recinto.

Todos que estavam na taverna ficaram quietos, menos os dois briguentos que nem ligaram para a presença do homem de roxo. Já pude sentir uma encrenca antecipada, pois eu era um que estava brigando e recebeu um olhar cortante do homem de cabelos pretos e roupa roxa. Mas, para minha sorte, ele apontou a espada para aquele que brigava comigo.

Minha visão ficou embaçada.

Quando o foco voltou eu estava sentado em uma cadeira, sem mesa, enquanto conversava com um homem de cabelos loiros e olhos bem azuis. Eu estava confortavelmente largado na cadeira, não me importando com o sangue em partes do meu rosto. Meu braço direito estava apoiado no encosto da cadeira, enquanto o esquerdo segurava mais um copo cheio e espumante de bebida. Eu ria como nunca, chegando a lacrimejar os olhos.

O garoto de cabelos loiros também ria, mas o de cabelo preto e roupas roxas, o mesmo que apontou a espada para o homem que brigava comigo, me encarava com raiva e desprezo.

“RETIRE O QUE DISSE SOBRE MINHA IRMÃ!” Ele urrou.

“Não retiro, e diria novamente.” Eu disse com uma expressão cínica. Ele fez menção de começar a brigar. Virei o copo, deixando parte do líquido cair na minha roupa. Limpei a boca com meu próprio braço e me levantei.

Ele me encarava com uma expressão furiosa, Aleixa assistia tudo de braços cruzados, encostada em uma parede. Minha respiração estava ofegante e sentia raiva, provavelmente por causa da alta dose de álcool, já que bebia cada vez mais. Dessa vez eu não seria humilhado como na primeira, com aquele homem alto e robusto. O homem de cabelos pretos e roupa roxa era magro, acho que com o mesmo preparo físico do que eu, quase zero.

Por mais furioso que o homem de roupa roxa poderia estar, ele não se atrevia a me dar um soco. Ele continuava impassível, me olhando com um tom de superioridade e desdém. Por causa de seu nariz empinado pude pensar que o homem poderia ser um nobre ou alguém com uma ótima classe social. Os braços do homem estavam cruzados e, mesmo com a raiva, era capaz de ver um sorriso de zombaria no rosto do mesmo.

Ele respirou calmamente, alargou o sorriso e disse com uma voz sádica.

“Cante para mim, bardo. Já que é a única coisa que você sabe fazer sem estragar tudo.” Ele dava um sorriso repugnante, zombando da minha cara e se achando o superior.

“O que?!” Eu gritei sentindo a raiva.

“Não irei mentir.” Ele falava em um tom de deboche. “Bardos só servem para cantar.”

“Pelo menos eu faço algo de útil!” Retruquei espumando raiva e mandando um sinal para trazerem mais uma rodada. Pelo visto eu já devia estar próximo de ter tomado meu vigésimo quarto copo. Senti pena dos meus órgãos e da minha sanidade. Não me lembrava de ter bebido tanto.

“Pelo menos temos uma função.” Respondi, enquanto agradecia o funcionário e pegava um novo copo, cheio até a boca. Derrubei um pouco de bebida em minha roupa, o          que me fez  gargalhar da minha própria situação.

“Função?” Ele riu. “Vocês bardos são tão ridículos que os bobos da corte os temem. Com medo de perderem o cargo para vocês.” Debochou.

“Ora!” Rangi os dentes com raiva, virei o copo novamente, dessa vez, deixando um pouco de bebida no fundo. “Você não sabe o que fala.”

“Pelo contrário, bardo.” Ele disse dando ênfase na última palavra. Pronunciou “bardo” com uma repulsa inigualável. “Você é patético.”

Revirei meus olhos e dei uma risada de zombaria.

“Pelo menos eu não sou um almofadinha idiota feito você.” Olhei para a cara dele, sorrindo de como aquele homem era um babaca. “Como é mesmo seu nome? Bunda Besta?” Debochei.

“Bundbease. Frederic Bundbease.” Ele disse, extremamente enfurecido. “Você deveria pensar melhor antes de dirigir insultos ao príncipe.” Frederic completou de um modo seco, autoritário e ameaçador.

“Que se dane se você for o príncipe ou não. Você é um metidinho!” Disse.

Eu não podia acreditar na minha insanidade e audácia. Eu estava falando tudo aquilo para o príncipe.

Ele torceu o nariz e revirou os olhos.

“Pelo menos eu não cheiro a rato morto. Meu hálito não é podre, não preciso me embebedar para esquecer meus problemas.” Ele disse em um tom seco. Logo depois me mandou um sorriso de lado em um tom cínico. “Eu também não preciso cantar feito um otário para ganhar uma mixaria e depois gastar com bebidas, comida e mulheres.” Ele olhou bem no fundo dos meus olhos me desafiando a discordar.

Era a verdade.

Só conseguia pensar em como um príncipe teria uma vida fácil, onde tudo o que queria aparecia para ele sem muitos esforços. Onde ganhava tudo de um modo fácil, nunca tinha problemas com dinheiros. Vivia uma vida ótima.

Na hora pensei em vários xingamentos para retrucar, minha mente borbulhava de palavrões, mas eu apenas me levantei e fui me aproximando do príncipe.

Ele estava com as mãos para trás, o peito estufado, o nariz empinado e o sorriso de zombaria duvidando da minha capacidade. Ah puxa... quando o engomadinho percebeu o que eu realmente ia fazer, era muito tarde.

Fechei meu punho esquerdo e concentrei toda a minha raiva nele. Respirei fundo e dei um soco na cara do príncipe. Minha força foi tanta que nós dois caímos no chão.

Quando eu levantei percebi que a boca e o nariz do homem estavam sangrando. Ele estava inconsciente e eu estava perplexo.

Tinha acabado de dar um soco na cara do príncipe Frederic Bundbease.

E se aquele era o príncipe, eu tinha beijado a princesa.

Minha visão desfocou novamente, a última coisa que eu ouvi foi gritos a respeito de uma flecha.

Dessa vez eu corria, descalço e sem camisa, pelas ruas do reino. Eu gritava e ria como nunca, minha face pingava de suor e ria feito um louco. Em minhas mãos eu segurava um pequeno colar brilhante. Minhas mãos estavam vermelhas de tanto apertar com força o objeto, eu realmente não queria perder aquilo.

Correndo atrás de mim estavam homens com trajes marrons e quentes, estavam usando armadura e botas de couro. Um dos homens usava um elmo e possuía um símbolo vermelho na roupa.

Deveria ter aproximadamente uns sete homens atrás de mim, apontando pontudas espadas. Eu conseguia sentir meu medo e adrenalina nas minhas veias.

O homem com elmo gritou furioso.

“Pare em nome do rei! Devolva o artefato que roubou da família real!”

Minha visão foi começando a perder o foco novamente, eles estavam me alcançando, podia sentir que estava encrencado.

Até que as luzes marrons voltaram a aparecer, a tontura voltou a me invadir e eu fechei meus olhos.

Quando os abri estava deitado no chão, suando, com o alquimista me encarando de um modo sereno.

“E então?” Ele perguntou.

Minha cabeça doía, coloquei minha mão nela para tentar assimilar.

“Eu traí minha namorada, briguei com o príncipe, beijei a princesa, roubei algo do castelo.” Murmurei. “Eu realmente estou encrencado.”

Minhas mãos estavam suando de nervoso, como sairia de uma situação como essa?

“Eu te desejo sorte, meu jovem. Espero que entenda as consequências de seus atos.” O alquimista disse.

“Obrigado pela ajuda.” Falei, me levantei e me dirigi até o castelo.

Chegando lá dois guardas vieram me interrogar, reconheci o do elmo e do símbolo vermelho, murmurei um pedido de desculpas.

“Você deve ser aquele bardo da audiência.” O guarda com o elmo disse, me olhando com um ar satisfatório, provavelmente feliz em me ver ferrado.

“Infelizmente.” Disse.

“Siga-me, sem gracinhas!” O guarda sem elmo me repreendeu.

Eu entrei no castelo com os dois guardas, o lugar era bonito, limpo e luxuoso. Teria reparado melhor em tudo se não estivesse tão nervoso com o que estava prestes a acontecer.

Os dois guardas me guiaram até uma porta, que levava até a sala do trono.

“O rei Alfred Bundbease te espera.” O com o elmo disse, tinha uma voz grave e forte. Conti uma risada, pois lembrei de “Bunda Besta”. Os dois fizeram uma reverencia para o rei e me deixaram sozinhos com ele.

Alfred estava sentado em seu trono com olhar imponente e expressão calculista e autoritária. Os músculos de sua face estavam contraídos e ele me analisava profundamente.

Ele tinha cabelos cacheados e longos, pele negra e usava uma roupa roxa e bonita.

“Então, bardo.” Ele começou. Percebi que assim como o filho usou a mesma repulsa na palavra “bardo”. “Você está aqui porque teve algumas atitudes que me desagradou.” Ele apoiou a cabeça nas mãos, ainda me analisando.

Assenti nervoso.

“Você beijou minha filha que estava noiva, deixou meu filho inconsciente e roubou um artefato do meu castelo.” Ele falava entonando cada erro que cometi, fazendo questão de me olhar nos olhos.

“Eu sinto muito, majestade.” Abaixei a cabeça, decepcionado.

O rei me encarou por alguns segundos e, quando pensei que o homem fosse ordenar minha morte algo inesperado aconteceu. Podia ser apenas o nervoso, mas percebi que os olhos do rei emitiram um brilho verde, assim como a poção que eu tinha tomado. Alguns segundos depois, os olhos do rei voltaram para o marrom costumeiro.

“Mas...” Ele disse em um tom mais forte. “Quando você beijou minha filha ela saiu correndo para ir se encontrar com o seu noivo, querendo ajuda e aconchego. Porém, quando chegou na casa dele, descobriu que ele a traía.”

Ele respirou fundo e continuou.

“Quando você brigou com aquele homem robusto, aposto que não sabia que enfrentava Simon Fernande, um criminoso procurado. Você conseguiu deixa-lo entretido com a briga, o que fez com que ele não fugisse. Dessa forma, meu filho o achou e o pegou. Você conseguiu encurrala-lo, mesmo sem saber que fazia isso.”

Assenti um tanto incrédulo. Eu tinha mesmo feito aquilo?

“Quando você jogou meu filho no chão, você impediu uma flecha de acerta-lo, ela estava mirando nele e só errou porque ele saiu da mira no último segundo.”

Então era sobre essa flecha que estavam falando?

“Mas, você roubou uma coisa valiosa para mim.” Ele me olhava com uma expressão mortífera, engoli a seco. “O colar que dei de presente para minha esposa no dia do nosso casamento.” A expressão dele foi se amenizando, mas continuava com o mesmo tom seco. “Eu só o quero  de volta.”

Eu senti um frio em meu corpo e meu estômago se revirando, eu não sabia onde estava o colar.

Comecei a tremer e minhas mãos já estavam suando. Fiz todo o esforço que pude para me lembrar do que tinha acontecido com aquele colar, revirei todas as cenas da noite passada na minha mente, mas não vinha nada. Nada.

Alfred me encarava com uma expressão enfurecida e entediada, querendo muito aquele colar.

Foi quando uma voz grossa surgiu em meus pensamentos.

“Olhe no bolso de sua blusa.”

Eu não sabia o que era aquilo, mas decidi arriscar, coloquei minha mão esquerda no meu bolso e senti o colar. Entreguei para o rei, perplexo.

“Você acabou, indiretamente, ajudando minha filha a descobrir uma traição, ajudando a prender um homem e salvando a vida de meu filho. Por isso não merece morrer.”

Eu respirei aliviado, como se um grande peso tivesse sido retirado das minhas costas.

“Mas, fez coisas que me desagradou então terá que ficar sem seu alaúde, entregar para mim seu dinheiro e vir trabalhar todos os dias em minhas terras.”

Aquelas palavras doeram como uma espada atravessando minha carne. Eu perderia meu alaúde para sempre.

Pensei em negociar outro tipo de coisa mas, ao ver a cara do rei, percebi que ou faria isso, ou seria morto. Com uma dor imensa no coração, entreguei meu instrumento.

“Você salvou a vida de meu filho, então acho justo te entregar um pouco de dinheiro, já que tirarei o seu.” Alfred disse me entregando umas moedas, o bastante para comprar comida por uma semana, depois teria que arranjar um novo trabalho, já que não poderia mais tocar, infelizmente. “Agora pode ir.” Ele disse.

Eu estava me dirigindo até a porta quando uma dúvida surgiu em minha mente, me virei para o rei e perguntei receoso.

“Desculpe-me minha pergunta, vossa majestade, mas, como eu roubei aquele colar?”

“Quando minha esposa foi até a taverna Dente Do Dragão, pois nosso filho estava demorando para voltar, você a entreteve com uma cantiga. Provavelmente querendo impedi-la de entrar no local e ver Frederic jogado no chão. Você começou a elogiar o colar que ela usava e, depois de tomar uns três copos de bebida fingiu que arrumaria o cabelo dela, pois contou uma história sobre um penteado premiado. Foi ai que você tirou o colar do pescoço dela e saiu correndo.”

Eu estava envergonhado, decepcionado e me sentindo um grande lixo. Como pude fazer aquilo?

“Perdoe-me. Peça desculpas para ela por mim.” Eu disse.

“Farei isso.”

Saí do castelo me sentindo impotente, um grande nada, já que estava sem meu alaúde. Foi quando encontrei Eliot.

“Parece que ainda está vivo, meu jovem.” Ele disse.

“Foi você, não foi? Você fez o rei mudar de ideia?!”

“Talvez.” Ele deu de ombros sorrindo.

“O rei me mataria se você não tivesse usado a poção?” Perguntei.

“Eu não sei, mas não cabe a nós pensarmos no que não aconteceu.” Ele disse com uma expressão bondosa. “E você disse que ele tiraria a coisa mais importante de você, e o que é mais importante para um bardo do que seu alaúde e sua liberdade?” Ele arqueou as sobrancelhas.

Ela tinha razão, com o trabalho nas terras do rei perderia minha liberdade e eu não tinha mais meu alaúde.

 “Espero te ver novamente, Hugo.” Ele disse e logo depois foi embora.

Respirei fundo sentindo um imenso alivio. Pelo menos eu estava vivo.

Encarei minhas moedas que tinha recebido, tinha passado por uma grande tensão e precisava aliviar as coisas, e além do mais, eu ainda tinha que me desculpar com Aleixa.

Fechei minhas mãos segurando minhas moedas e rumei decidido para a Dente Do Dragão.

Afinal, para que mais servem as promessas sem ser para quebra-las?


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