A Pele do Espírito escrita por uzubebel


Capítulo 5
Capítulo 04




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Lorena

O barulho da água passando pelas pedras era alto, mas gostoso. O rio Tâmi descia em direção ao mar com suas várias corredeiras cheias de musgo e algas onde a gente gostava de escorregar. Nos dias de calor as partes mais altas, com cachoeiras e pedras grandes, ficavam cheias de crianças. Era comum nos jogarmos nos poços de água mais funda, do alto das quedas d’água. Ano passado, Ed fez uma prancha de madeira comprida que usamos pra descer as corredeiras sem ficar com a bunda doendo no final do dia, mas é claro que ela se quebrou quando nós três tentamos subir nela ao mesmo tempo. E o pai dele ficou muito bravo por ele ter pegado a madeira para canoa nova que estava fazendo, sem pedir permissão. Como “cúmplices” — foi do que Dorothea nos chamou — nós também ficamos umas três semanas de castigo.

Mas essa parte não era um bom lugar para ficar sozinha. Desviei da água que três crianças mais novas jogavam umas nas outras ­­– se molhassem minha bolsa e o que tinha lá dentro eu ficaria muito brava – e continuei descendo em direção à foz, onde o rio encontrava o mar. Se havia um lugar na ilha para aquietar o espírito, era aquele. O Tâmi seguia seu caminho até uma praia cercada por rochedos, onde a água do rio ficava presa nas pedras do topo e formava piscinas naturais. Então, de uma abertura pequena na parede de rochas, a água escapava e saltava uns quinze metros, até encontrar a areia da praia na forma de uma cascata fina como uma ducha. Quando chovia muito e o rio transbordava, a ducha virava uma cachoeira larga, até que o nível da água voltasse ao normal.

Seguindo o rio, cheguei no lago no topo do rochedo. Era um lugar fresco graças à brisa do mar, e sombreado por causa das árvores que cresciam ao redor. Me sentei numa pedra achatada debaixo de uma árvore larga, tirei as sandálias e coloquei meus pés na água. Encarei os peixinhos que nadavam ao redor dos meus dedos e respirei fundo.

O Tâmi era a única fonte de água doce na ilha além das chuvas, e por isso dava pra dizer que o rio era sagrado. Mesmo assim, ninguém sabia direito de onde a água nascia. Ela brotava dos picos da ilha em vários pontos, como se estivesse vasando das montanhas, mas nós não conhecíamos as cavernas bem o bastante para saber de onde ela vinha. Pra quem vivia em mar aberto, as cavernas eram apertadas e assustadoras.

O dia depois do Solstício finalmente tinha passado e, enquanto Ed e Alice estavam ocupados ajudando suas próprias famílias, eu me vi sozinha para fazer o que quer que pudesse sem eles. Então, saí com meu caderno e o amuleto para finalmente escrever sobre ele, antes de ter que devolvê-lo.

Numa página em branco, comecei fazendo um desenho do objeto. Não sabia que título colocar na página, mas isso ainda não era importante. Esforcei-me para acertar o rosto de gato esculpido na pedra, as listras em volta dos olhos, as patas apoiadas sobre o corpo alongado a as duas caudas que se enrolavam nas pontas. Eu já tinha terminado meu rascunho e fazia as primeiras anotações quando percebi que os peixinhos que bicavam meus pés haviam sumido.

Antes de poder olhar para baixo, um vento forte jogou folhas secas e areia no meu rosto, abriu as páginas do caderno e soprou para longe algumas que estavam soltas. Elas caíram na água e foram carregadas pela correnteza rapidamente. Pulei de pedra em pedra tentando alcançá-las, mas a água era mais rápida que eu. Então, o rio parou. A correnteza, a água, pareciam congelados no tempo, como num desenho. Mergulhei um dedo na água, mas a superfície não ondulou, apesar de minha pele ter se molhado.

De repente, uma cabeça pálida saiu da água, na minha frente, e eu quase cai de susto da pedra em que eu me equilibrava. A criatura, toda molhada, não tinha nenhum pelo no corpo todo, e ao invés de cabelos, nascia água de sua cabeça. Água que escorria por seus seios pequenos e sem roupa nenhuma, até cair no rio petrificado. Ela — pelo menos ela se parecia com uma mulher — estendeu seu braço muito magro e comprido e apanhou os papéis que flutuavam na água. Depois, abriu minha mão com cuidado e colocou as páginas lá, conferindo se eu estava segurando firme. Os dedos dela eram tão gelados quanto o rio.

Na outra mão eu ainda segurava o amuleto com força. Seu cordão estava pendurado para fora dos meus dedos, e a mulher puxou ele e tomou o objeto de mim.  Ela enrolou o fio nos próprios dedos e levantou o amuleto na altura de seu rosto. Depois disse, com sua voz baixa:

— Que feio é roubar dos Espíritos...

— Eu não roubei... — Olhei no fundo de seus olhos leitosos, sem íris ou pupilas. — Quer dizer... Eu ia devolver.

Ela abaixou a mão e me encarou de volta.

— Vejam só, que menina esperta...

— Quem é você...?

Ela empurrou minha testa com um dedo molhado, e uma gota d’água escorreu pela ponta do meu nariz até pingar de volta para o rio, que tinha voltado a correr.

— Você sabe meu nome. Tente um pouco mais.

Encarei a água corrente que parecia seguir todos os movimentos dela e que também brotava de sua pele, como numa nascente.

— Tâmi... — respondi, insegura. Ela confirmou com um aceno de cabeça. — Você é o Espírito do rio.

Ela sorriu, mostrando uma fileira de dentes triangulares e afiados.

— Sim, de fato eu sou — Tâmi apontou as anotações nas folhas que tinha me devolvido. — Posso ver que está atrás do seu passado.

Seus olhos se estreitaram.

— Eu posso lhe mostrar algo, se quiser. Algo desse passado que você não lembra. Mas... — ela me estendeu de volta o amuleto. — Você precisa fazer uma coisa primeiro. Não pode ficar com algo que não lhe pertence. Devolva o amuleto, e eu lhe devolverei algo seu que ficou perdido.

Peguei o amuleto, mas não o guardei ainda.

— Vai me contar uma história sobre mim?

Tâmi sorriu.

— Talvez. Me procure quando tiver feito sua parte.

Joguei o amuleto no meu bolso apressadamente e devolvi as folhas soltas para dentro do meu caderno. Ia me virando quando pensei:

— Mas e se a maré já estiver alta demais para eu passar? Aí não vou conseguir passar agora...

Tâmi pensou um pouco antes de responder, com seus dedos muito longos seguindo o rastro das veias azuladas em seus ombros.

— Se for o caso, eu não lhe dei nenhum prazo. Mas eu desconfio de que ainda dê tempo. Basta se apressar.

— Tá bom!

***

Ela estava certa. O mar começava a lamber a escadaria do templo quando cheguei, mas consegui subir sem problemas. Só molhei meus pés, como da última vez. As pedras da Praia Velha estavam escorregadias, e peixinhos se debatiam em pequenas poças entre elas. Também acabei ralando um pouco as mãos e os joelhos na decida apressada.

— Senhor, — Um, a aldraba da esquerda, gritou ao me ver — a garotinha chegou!

— É, ela veio mesmo! — Repetiu Dois, o da direita, olhando para mim, depois tentando olhar para a porta, revirando seus olhos, e de volta pra mim. O que seria bem mais fácil se ele tivesse um pescoço. — Desculpa, mas qual é mesmo seu nome?

Encarei ele.

— A-ah, é...

— Lorena?

Me assustei quando alguém me chamou atrás de mim, ao invés de me chamar de dentro do templo.  Byakko tinha aparecido do nada e, com o pulo que eu dei, me segurou pelo ombro. Quase tive um troço.

— Desculpe, não queria assustar você.

Não conseguia dizer nada de tão ofegante.

— É, mas gritar assim já foi um exagero... — Um criticou. — Sabe, eu não tenho mãos para proteger meus ouvidos.

Você também não tem ouvidos, pensei. Ou tem?

— Shhh! — Byakko o repreendeu, depois olhou pra mim outra vez. Ele mexia no seu cabelo, puxando as pontas desfiadas, sem olhar pra mim. — Acabei me precipitando. Eu só queria ter certeza de que era mesmo você.

Ignorando os protestos indignados das aldrabas de que elas nunca, nunca se enganavam, ele abriu a porta e acenou para que eu entrasse. O altar logo atraiu meu olhar. Agora, ele estava coberto por papoulas cuidadosamente arranjadas em seu topo e em sua base, ao redor dos objetos que continuavam lá. Uma máscara assustadora, algumas lâminas escuras, um colar colorido e outros adereços. Havia até mesmo um buraco entre as flores, onde deveria estar o amuleto que eu tinha pegado.

Tirei logo o amuleto de meu bolso e o entreguei para Byakko, assim que ele fechou as portas.

— Antes que eu me esqueça... — dei de ombros. — Eu o peguei no solstício porque não sabia que tinha dono, e me esqueci de devolver quando trouxe as flores. Me desculpa pela confusão. Considerando como você foi atrás de mim para pegar ele de volta naquela noite, imagino que seja importante.

Byakko não disse nada até pegar o amuleto e devolvê-lo ao seu lugar, na mesmíssima posição de onde eu o tinha tirado. Não só isso, ele ajeitou as flores ao redor, para que não deixasse espaços entre as flores no altar. Foi quando ficou claro que aquilo era mesmo coisa dele. Mas porque um Espírito faria uma oferenda tão... formal no próprio altar? Espíritos estavam acostumados a receber oferendas, e não a fazer. Mas de uma coisa eu tinha certeza: não era para si mesmo que ele tinha feito aquilo tudo. Os objetos no altar não pareciam ser dele, e sim de outras pessoas.

Parando pra pensar, não era nada diferente da oferenda que eu tinha feito para os meus pais, no dia do Solstício.

Quando terminou, Byakko se abaixou e pegou meu agasalho, que continuava no mesmo lugar que eu tinha deixado — só que vazio — e veio na minha direção.

— Você também esqueceu isso — ele disse.

Depois, abriu a roupa para que passasse minha cabeça e me ajudou a vesti-lo. Foi só quando estava agasalhada outra vez que percebi como o interior do templo era frio.

Caminhei até perto do altar e espiei as flores mais de perto. Não pude evitar de tocar as pétalas, que não pareciam menos frescas do que ontem, quando tinham sido colhidas.

Me virei para Byakko, que continuava no mesmo lugar.

— Você fez isso?

Ele fez que sim.

— Por quê?

Ele parecia pensativo, distante.

— Porque não posso me esquecer de algumas coisas.

Eu reconhecia sua postura encolhida, a cabeça baixa, a resistência em falar no assunto, o olhar sem foco, as mãos se mexendo em busca de algo para segurar, um apoio.

— Você também perdeu algo, não é? É por causa da cidade? Das pessoas? Você disse que se lembrava de quando elas estavam aqui.

Um tremor tomou conta de seus braços e enrijeceu seus dedos. Os olhos do Espírito se arregalaram, sem foco. Parecia estar lembrando de algo... Algo ruim.

— Você está de luto? — Perguntei.

Ele me encarou. Eu olhei em seus olhos e, ao invés de raiva, vi medo. Byakko não estava simplesmente com raiva da minha pergunta, mas, tinha receio de alguma coisa que eu não sabia. Será que era medo de dizer mais do que deveria, de novo? Durou apenas um segundo, antes que o Espírito desaparecesse num sopro de névoa branca tão forte que me fez tropeçar. Eu tinha coberto meus olhos com as mãos, e quando voltei a abri-los ele não estava mais na minha frente.

— Você tem que ir embora — disse, com sua voz se espalhando de cada canto do templo, como se ele fosse o lugar, como se estivesse dentro das paredes.

Procurei por todos os lados, mas ele tinha desaparecido como uma assombração.

— Mas...

!, sua voz gritou na minha mente desta vez. E não era a voz de um menino.

 Tremi de medo pela primeira vez, desde que tínhamos nos apresentado.

O vento me empurrou outra vez para a saída. Tentei resistir, apesar de minha confusão. Queria pedir desculpas, mas eu nem conseguia abrir a boca. Ao mesmo tempo em que eu era empurrada pra fora, era como se estivesse sendo empurrada pro chão também, mas por outro tipo de força.

Finalmente eu desisti de lutar. Corri para a praia, e as portas se fecharam atrás de mim, prendendo tudo o que tinha acontecido dentro do templo. Quando percebi, eu ofegava e suor pingava do meu rosto. Me apoiei na madeira e me sentei no chão de pedra, me sentindo exausta. Quando enfiei minhas mãos nos bolsos do casaco que vestia, tentando acabar com a tremedeira nos meus dedos, senti que eles não estavam tão vazios quanto eu esperava. E, quando abri minha palma na frente do rosto, uma única papoula me encarou de volta.

Uma flor que fora colocada lá.


Byakko

O templo inteiro estava cheio de vultos. De vozes. De passado...

E eu me perdia..., não; eu me afundava naquelas lembranças como um náufrago. Só que não havia ar puro para mim. Não ali.

Passei pelo salão e cada passo meu era o desenrolar de centenas de anos de história, o começo e o fim de milhares de vidas. Via pessoas, ouvia seus sussurros e a música ao fundo; era dia de festa. Mais uma vez eu assisti a cada festival dos últimos dois mil anos, em um piscar de olhos.

Com mais um passo, tudo se encheu de água, e os gritos foram abafados antes mesmo de escapar das gargantas. Senti cada vida ali, naquela noite, sendo engolida pelo mar, e as ondas me sussurrando desculpas, aquilo não devia ter acontecido...

Não, não devia ter acontecido...

A um pequeno passo das portas duplas, as imagens começaram a sumir. Cada vida naquela noite fora ceifada..., menos uma. E agora ela me encarava com seus olhos negros gentis. O último fantasma no salão.

Ela apoiou as mãos no meu ombro enquanto se abaixava à mesma altura do meu corpo infantil.

— Não precisa sorrir pra mim — disse-lhe.

Discordando com um gesto displicente, ela tocou meu rosto carinhosamente. Seus lábios formaram palavras, mas, com um último suspiro, seu vulto também se foi.

Apoiei a testa nas portas, apesar de não ser capaz de sentir o toque da madeira na pele, nem o cansaço pesar nos ombros, nem dor. Sem ser capaz de sentir nada além de remorso.


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