Um rinoceronte escrita por Lorita de M


Capítulo 7
Recomponha-se!




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Descobrir de onde vinham os rinocerontes provou-se menos satisfatório que os habitantes daquela cidadela achavam que seria. Estavam todos apavorados imaginando que poderiam ser os próximos naquele ciclo terrível de transformações. E era completamente descabido tornar-se um rinoceronte: como iriam a seus trabalhos? Como dormiriam em suas camas de noite? A inconveniência da situação e o fato de que ninguém conseguia compreender por que a cidadela havia sido abatida por uma desgraça tão imensa e grandiosa contribuíram para disseminar o pânico por todos os cantos e casinhas da encosta. Crianças proibidas de sair de casa, qualquer contato com a praça dos rinocerontes, como agora era chamada, fora de cogitação.

Como a transformação de senhorita Maria havia destruído o antigo prédio da prefeitura, o prefeito e seu secretário se haviam transportado para o apartamentinho do segundo.

— Não é grande coisa – dizia o secretário, modestamente – Mas assim pelo menos temos um teto sobre nossas cabeças para trabalhar até na chuva.

— Certamente, secretário – murmurava o prefeito, num desânimo como nunca havia vivido antes. Sentia até saudades dos tempos em que sua maior preocupação era passar os dias entediado naquela cidadela livre de quaisquer problemas de dimensões reais. Completamente desmoralizado diante da população e sem ter a menor ideia de como lidar com a situação, ele se encontrava perdido. A simples menção da palavra “rinocerontes” fazia com que se tremesse todo, os olhos abertos como os de um louco. Se ainda mantinha alguma compostura, era apenas por conta da dedicação de seu secretário.

— Muito bem, senhor prefeito – o secretário surgiu, em mangas de camisa, da cozinha, trazendo consigo duas xícaras de café que colocou sobre a mesinha ao lado da janela – Vamos trabalhar. O que pretende fazer?

O prefeito bebericou o café quente e balançou os ombros.

— Vamos pensar juntos então... – o secretário disse - Nós temos dois caminhos possíveis a serem seguidos, pelo que vejo. Podemos tranquilizar a população e conter o pânico que se espalhou, ou então podemos assumir a situação como de extrema urgência e acionar medidas de segurança...

— Não estamos em condições de tranquilizar ninguém, secretário! – o prefeito levantou-se e apoiou a testa e as duas mãos na janela – Eu mesmo não vejo como acreditaria em alguém que me dissesse que a situação está sob controle.

— Então acionamos as medidas de segurança...

— A população já o fez inconscientemente. As crianças não saem de suas casas, e os adultos só o fazem em situações de urgência. Tudo esta sob observação. A praça está isolada. Não há nada mais que possamos acionar.

— O senhor prefeito está sugerindo que... Não há nada que possamos fazer diante da situação?

— Sim.

— Está sugerindo que... Diante do extraordinário dessa situação as nossas funções se tornaram obsoletas e desnecessárias?

— Sim.

O secretário levantou-se de um salto e cruzou os braços em indignação.

— O senhor prefeito me perdoe, senhor, mas o senhor está agindo como um covarde! – disse. O prefeito voltou-se, sem saber o que dizer diante do inesperado daquela reação de seu secretário – Está me dizendo que em tempos de crise a figura do prefeito faz-se inútil? É justamente em tempos de crise que precisamos fazer alguma coisa! Vamos organizar um sistema de distribuição de comidas e mantimentos eficiente para que as pessoas não precisem sair de suas casas e procurar por sintomas em si e seus familiares, vamos fazer planos de evacuação ou isolamento da cidade, mas vamos fazer alguma coisa! Recomponha-se, senhor prefeito!

O prefeito abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas não disse nada. Ajeitou os bigodes timidamente e fez que sim com a cabeça. O secretário deu-lhe alguns tapinhas no ombro.

— Vamos mostrar a que viemos, senhor prefeito! Por que o senhor foi eleito, afinal?

      - Porque conheço os interesses da população da cidadela... – resmungou o prefeito.

      - Não entendi! Por que o senhor foi eleito, afinal, senhor prefeito?!

      - Porque conheço os interesses da cidadela! – o prefeito bradou, estufando o peito e repousando as duas mãos na cintura.

      - Então o senhor vai agora vestir calças limpas, ajeitar o bigode e o cabelo, lavar o rosto, e lidar com a situação!

      - Vou!

      Iniciaram então o isolamento da cidade, o que na verdade significava que ninguém entrava e ninguém saía dos limites estabelecidos por uma fita adesiva com a qual o prefeito e seu secretário marcaram o contorno da cidadela. Selecionaram alguns poucos funcionários públicos para fazer a distribuição de mantimentos, instituíram a cada dois dias uma visita a cada uma das casinhas para verificar se os sintomas de rinoceronte haviam aparecido para mais algum cidadão. O pânico que se disseminara permanecia, mas a confiança do prefeito e seu secretário – ou do secretário e seu prefeito – parecia tranquilizar os cidadãos minimamente.

      Assim se passaram duas semanas, e nada acontecia. A espera na verdade apenas aumentava a tensão, pois poderia acontecer qualquer coisa a qualquer momento. Não sabiam se o intervalo entre rinocerontes seria regular, de um mês, se era inconstante, se a peste de transformação havia parado depois de três rinocerontes. Na quarta-feira da segunda semana pós-rinoceronte-florista o sacristão, irritadíssimo porque com as novas medidas de segurança sua igrejinha voltara a ficar vazia, foi tirar satisfação não com o prefeito ou seu secretário, mas com os próprios rinocerontes. E após gritar, enfurecido, durante meia hora do lado de fora da praça, tornou-se ele próprio o quarto rinoceronte.


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