Temperatura escrita por Rossetti


Capítulo 3
3. O mundo


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo postado às 23:15 do ultima dia da semana desse tema, um verdadeiro 46 do segundo tema :v

Terceira semana, tema: A primeira vez que cozinhamos juntos

Me perdoem se tiver algum erro, revisei, mas pra ser sincera to no limite do sono e cochilei umas três vezes enquanto relia.



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Marvin não conseguia dormir.

Mesmo que estivessem em casa, era verão e a alta temperatura arruinava seu sono. E como se isso não fosse o suficiente, haviam todas aquelas preocupações. E a saudade, ela era cruel também.

Em algum momento ele desistiu de tentar e se levantou da cama. Vestido apenas com uma bermuda, resolveu dar uma volta lá fora. Achou que fosse improvável mais alguém perambular pela propriedade de madrugada. Mas se enganou.

Se madrasta estava sentada lá fora, na escada de pedra, de pijama e com um cigarro entre os dedos. Marvin parou de andar e estava pronto para voltar depressa para dentro, quando ela o olhou por cima do ombro.

— Ora, moleque. – Ela disse, tranquilamente. – Venha cá.

— Ah… – Marvin hesitou, mas acabou por se sentar ao lado da mulher. – Sinto muito, não queria te incomodar.

— É bom que eu tenha companhia. – Ela assoprou a fumaça para o alto. – Eu estava justamente pensando em você.

— Você está preocupada. – O rapaz supos.

— Como poderia não estar?

— Andira, eu não… – Ele não tinha palavras. – Eu sinto muito.

— Não sinta. – Ela sorriu. Andira era totalmente diferente de Marvin, em aparência; era baixa, com o cabelo escuro e cacheado e a pele negra. Nenhum traço poderia ligá-los como parentes de sangue. E, ainda assim, quando o rapaz olhava para ela, tudo o que via era uma mãe, sua mãe, a mulher que estava ali há tantos anos, o criando, o guiando na vida. Ela vinha de uma família nobre e tinha uma postura natural de elegância, mesmo sentada no chão, fumando escondida de madrugada. Marvin queria ser como ela desde criança, alguém que lidava com tudo com calma, responsabilidade e carinho, que tentava passar confiança e sinceridade a quem fosse.

— Mas se for verdade… – Marvin suspirou.

— Não vamos para nossas vidas por isso, moleque.

— Mas se for…

— Marvin. – A mulher sorriu e passou a mão livre no cabelo do enteado. – Pare se preocupar com isso.

— Mas você disse que você está preocupada.

— Sim, eu te amo, meu cotidiano é estar preocupada com você. Isso não muda nada. Eu estaria preocupada seja qual fosse o rumo de vida que você tomasse. Com sanguessugas rastejando pelo mundo, com a vida como ela é, todos os pais se preocupam com seus filhos.

O rapaz se sentiu frustrado e inútil.

Poucos dias antes das férias de verão começarem, um Prenoar, primo de Marvin, foi assassinado. O assassino não foi encontrado, nem nenhum sinal de sua identidade, mas haviam sinais de luta e queimaduras no corpo e local do crime, que indicava que poderia ter sido um Brajzen, mas não foram consideradas provas conclusivas para nada. E mesmo que se provasse que o criminoso era membro da família de fogo, haviam muitos deles para considerar todos suspeitos. O que causou um alvoroço ainda maior sobre essa morte foi o recente problema com alguns Brajzens, um grupo ligeiramente isolado da linhagem principal da família, que acreditava a todo custo que fogo era um elemento superior. Eles nunca tinham machucado ninguém ou partido para qualquer agressão física, mas tinham ofendido muitas pessoas, ficando marcados pelo seu ódio às duas demais famílias, às antigas famílias nobres e até mesmo pessoas comuns. Esse grupo, intitulado Signem, pregava com frequência a desonra que era para o Brajzen se relacionar com alguém de alguma das outras duas famílias portadoras dos dons de ShVolzu.

Além disso, já não era bem vista a mistura de linhagens dessa forma. Os raros filhos de casais com dons opostos, registrados ao longo da história, haviam nascido sem qualquer dom, causando uma onda de críticas à quebra de toda uma linha de poder.

Marvin estava numa situação difícil, começando a ter encontros com Yazze, com o coração batendo mais rápido pela menina ruiva. Agora, com as férias de verão, ele sentia que poderia morrer de saudades.

O rapaz havia contado tudo para sua madrasta, mas tinha medo de como seu pai poderia reagir. Ou seus tios e avós. Ou qualquer um.

— Você não acha que eu deveria… Só deixar para lá? – Ele questionou. – Nós não estamos namorando… Ainda não. Eu acho.

— Marvin, você não precisa terminar com essa menina, não deve, se gosta dela. – Andira encolheu os ombros. – Você disse que foram selecionados um para o outro. Acha que essa é uma conexão fácil de se quebrar? Posso te ver se arrastando pela casa, como um parere¹ sem ordens, e tenho certeza que não é por medo do que pode acontecer.

O rapaz colocou uma mão sobre o peito, automaticamente, como se pudesse apertar o próprio coração.

— Saudades. – Disse baixinho. – Mas se for perigoso para nós dois…

— Enfrentar sanguessugas é perigoso para vocês dois, ainda assim estão estudando para fazer disso a sua profissão. – Andira jogou a bituca do cigarro junto à outras três. – Como sua mãe, é claro que estou morrendo de medo, é claro que eu preferia que essa menina nunca tivesse aparecido. Mas como uma pessoa que teve que passar por tudo que passei por amor, acredito que você deve enfrentar tudo com a mesma facilidade que você se dispõe a enfrentar monstros. De qualquer jeito, você tem que escolher o que fazer, não pode se sentir obrigado ao que for, pressionado pela situação. Ou vai acabar se arrependendo depois, por não ter pensado profundamente nisso.

— Eu estou pensando. Estou rachando minha cabeça e partindo meu coração. – Marvin contou. – Não sei o que fazer… Ainda não sei.

— Que bom que tá pensando. – A mulher aconselhou, enquanto pegava outro cigarro e colocava na boca.

— De qualquer jeito… Obrigado por me ouvir. E não contar para o papai.

Andira riu.

— Ao menos por agora, vamos evitar que ele derrube essa casa.

O rapaz sorriu um pouco.

 

—–

 

As férias de verão pareceram durar uma eternidade, mas finalmente terminaram. Enquanto os outros alunos reclamavam do fim de seu descanso, o rapaz se sentia satisfeito por voltar à sua rotina de estudos e, principalmente, por ver Yazze.

Ele não teve muito tempo para falar com ela, no meio da correria da chegada, mas os dois tinham as primeiras aulas juntos.  

O coração de Marvin poderia implodir de alegria ao ver a moça logo pela manhã, com uma das suas longas blusas de tom pastel por cima do uniforme, o cabelo rosa queimado despenteado e olhos pesados de sono. Ela acenou. Usava brilho rosa nos lábios.

— Bom dia, Marvin.

Ela ainda o mataria de amor.

— Yazze, dia. – Marvin queria abraçá-la, mas era melhor não fazer isso na frente da turma toda. Ainda estava com o pé atrás, com a situação toda.

Os dois se encostaram na bancada, enquanto o professor não vinha, e começaram a conversar. Mal tiveram uns minutos de conversa e o professor já chegou, pedindo a todos que sentassem e parassem de falar.

A aula era dupla, da matéria Praticidades, onde aprendiam um pouco de tudo, desde vida doméstica, até mecânica básica ou leis e pagamentos de impostos. Era uma matéria padrão, mesmo em escolas comuns. E naquela manhã estavam focados na prática da culinária, o que era um bom treinamento, já que a turma teria aula de sobrevivência naquele ano e eventualmente seria cobrado que pudessem preparar uma refeição onde quer que estivessem, com o que fosse que tivessem à disposição.

A sala se movimentou para pegar os ingredientes, decidir o que fazer e então pegar os itens de cozinha necessários. Marvin decidiu o que podiam fazer e dividiu as tarefas, mas a moça não parecia muito feliz em ter que cozinhar.

Ainda no pré-preparo, Yazze perdeu a paciência e soltou a faca e a batata que descascava.

— Eu não consigo fazer isso. – Ela reclamou. – Estou destruindo as batatas, mais da metade delas tá indo embora junto com a casca!

Marvin parou de picar uma cenoura e foi para o lado da moça.

— Eu posso fazer isso para você.

— Você já tá fazendo quase tudo, eu não quero só te atrapalhar. Mas eu também sou uma porcaria que não serve para cozinhar nada.

O rapaz mordeu os lábios, sem graça. Era incomum que Yazze desistisse de algo ou se colocasse para baixo daquela forma.

— Tudo bem, Yazz. Você pode aprender, eu ensino. – Ele falou, em voz baixa.

— Eu não sirvo pra cozinhar. Eu nunca vou aprender, não perca seu tempo.

Marvin ficou olhando para ela, sem dizer nada. Até que a moça suspirou e pegou a faca de novo, que usou para começar a esfaquear as batatas.

— Desculpa. – Ela falou. – Eu voltei meio irritada das férias.

— O que houve?

— Briguei com meus pais. Com todo mundo. Eu não sei. – A moça falou baixo para que os colegas não escutassem, enquanto enfiava a faca em mais uma batata. – O clima tá estranho, minha família está com medo. Eles deveriam está com raiva, mas estão com medo. E a raiva, estão deixando uns para os outros, aparentemente. Muito tempo dizendo que tudo vai passar, mas descontando o que há de ruim em nós mesmos. Se borram sobre coisas extremamente erradas, mas acham que tudo bem se tratar como lixo por causa de uma falha ou outra.

O rapaz não sabia se tinha entendido tudo que a moça havia dito, se o contexto era mesmo o que ele pensava, mas colocou uma mão em seu ombro.

— Eu sinto muito. Se tiver alguma coisa que eu puder fazer para ajudar...

— Não, tudo bem. Eu só explodi. Não queria te preocupar com meus problemas. – Yazze respirou fundo algumas vezes. – Vou terminar de descascar. Não vou deixar isso bagunçar minha vida, não vou parar de viver, nem fugir das coisas.

Marvin se lembrou vagamente do que Andira disse. De repente ele se sentia empolgado, sem entender direito porque.

— Eu posso mesmo te ensinar. – Marvin pegou a faca. – Você tá segurando isso errado. Não pode levar a faca para longe de você, tem que puxar. Olha. – Ele mostrou como descascar uma. – Agora tenta.

— Eu vou cortar meu dedo fora.

— Não seja dramática.

Marvin segurou as mãos de Yazze e mostrou como fazer. Por um minuto ela realmente teve medo de cortar o dedo, mas depois conseguiu descascar um bom pedaço sem destruir a batata. Ela sorriu e olhou para Marvin, para agradecer, e percebeu que o rapaz estava perto demais. Os dois ficaram sem graça, mas ninguém realmente se afastou.

Logo a sopa de legumes dos dois estava em andamento, na panela, com um cheiro melhor do que eles poderiam ter esperado. E os dois, ombro a ombro, não estavam afim de desencostar.

O rapaz se pegou imaginando como seria todos os dias cozinharem juntos, lado a lado dessa forma. Em uma casa deles, só deles. Ou deles e, quem sabe, os filhos deles. Marvin sempre quis ter um monte de crianças. O mundo era perigoso, mas ele queria aquela vida. Ao lado dela.

— No que você tá pensando? – Ela perguntou, preguiçosamente apoiando o peso em Marvin.

— No futuro.

A decisão estava tomada: Ele ficaria com Yazze. Enquanto ela o quisesse, não importava quem fosse contra, eles se manteriam juntos.

 

 


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Notas finais do capítulo

1. Parere: É um animal canino extremamente dócil. Basicamente um cachorro que vai te obedecer a qualquer custo, muito fiel. Falar que alguém parece um parere sem ordens é dizer que a pessoa ta sem rumo e/ou triste.

Ah, já sabem né, um comentário, mesmo que curto, faz uma autora feliz.
Um abreijo!



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