Você sente minha falta? escrita por Ariel Boavista


Capítulo 3
Senhor Astronômico.


Notas iniciais do capítulo

A música citada no início é Astronomy Domine, do álbum Piper At The Gates Of Dawn. A entrevista no início é referência a uma entrevista real que ocorreu em Maio de 1967. Vocês podem assisti-la legendada no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=hAoZPY_gWik



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Lime and limpid green, the sound surrounds

The icy waters underground

A próxima foto era de Syd no palco do UFO, seu rosto estava assombroso em meio a escuridão e parecia tão jovem! Um dândi dos anos sessenta com suas roupas com plumas e babados. Mesmo no escuro, era capaz de reconhecer os parceiros de banda. Foi meteórica à fama, ao ponto de não demorar para sair o primeiro single: Arnold Layne. Entretanto, a fama vinha com consequências que o tal Syd Barrett era novo e ingênuo demais para perceber. E com eles, vieram as entrevistas tendenciosas.

— Por que a música tinha que ser tão alta? — Perguntou Hans Keller em seu show “The Look of the Week”. — Acontece que cresci com sons mais suaves, com cordas. Por que tão amplificado?

— Bem, é assim que gostamos. — Roger respondeu com simplicidade. — Não é questão dela ter que ser. Ela é. E nós não crescemos com quartetos de cordas.

— Na verdade, — Retrucou Hans. — nem todo mundo que não cresceu com quarteto de cordas entra para um grupo de pop barulhento. Então seu motivo não é totalmente convincente. Mas eu aceito que vocês gostem disso. O que estou dizendo é que se alguém se torna imune a esse tipo de som ele poderia ter dificuldade apreciar sons mais suaves.

Syd no mesmo instante olhou para Roger com uma expressão de “Como assim?”, interrompendo o entrevistador.

— Eu não acho que seja isso. 

— Não? — Hans demonstrou surpresa.

— Quero dizer… — Syd tentou se corrigir. — Todo mundo escuta. Não precisamos que seja muito alto para podermos ouvir, e às vezes isso é bem tranquilo, na verdade. Pessoalmente eu gosto tanto de música tranquila quanto de música alta. Tocamos em salões grandes e lugares assim, onde obviamente o volume é necessário. E quando as pessoas dançam, elas gostam de volume não é?

Os componentes da banda se mantiveram em silêncio assim como o apresentador, escutando o jovem que falava com eloquência e ao mesmo tempo timidez, dando um charme único a sua fala.

— Bem, isso é interessante. — Hans Keller retornou a falar. — Você disse quando “dançam”. Vocês começaram, se não me engano, como grupo para acompanhar danças, estou correto?

— Podemos dizer que sim. — Respondeu Roger.

— E como vocês se converteram em um grupo de concertos? Se é que posso usar esse termo. — Questionou novamente Hans, com um cinismo claro na voz.

— Só fizemos dois concertos na verdade. — Roger corrigiu rapidmente, fazendo com que Syd não disfarçasse o sorriso dentado e brincalhão em sua direção. — Porque no mainstream da música pop, que acho que é o que somos no momento, é que fazemos shows em salões e bailes. E é esse tipo de cenário porque é como funciona hoje em dia. No entanto, sentimos que não havia nenhuma razão real, sabe? De porque não poderíamos fazer um concerto organizado em um salão grande, onde as pessoas pudessem se sentar para nos assistir e apreciar nossa música porque salões de dança em específico não são bons lugares para se ouvir música.

Novamente todos ficaram  em silêncio, mas dessa vez quem demonstrou boa postura em falar foi Waters, o que também aquietou Hans Keller.

— E esses dois concertos foram bons? — Perguntou.

— Eu acho que sim. — Syd falou. — Quando tocamos, acho que… A forma como evoluímos em seis meses tem sido bastante influenciada por termos tocado em salões. Necessariamente, porque, é claro, esse é o nosso primeiro marketing. O que nos deu a oportunidade de perceber que talvez nossa música não seja voltada para a dança, como grupos pops faziam no passado.

Hans Keller prosseguiu a entrevista, deixando um pouco de lado a questão do som para pouco depois do final da entrevista voltasse à câmera que refletia o topo de sua cabeça sem pelos e acentuava seu bigode cheio.

— Meu veredicto, — Concluía. — é que esse som é um retrocesso à infância. Mas depois de tudo, por que não?

Os quatro retornaram aos bastidores, era claro que Syd estava atordoado com aquela entrevista. Não eram os primeiros a criticarem o som do Pink Floyd. Polêmicas envolvendo Arnold Layne também aconteceram, porque era absurdo uma música sobre um homem que roubava roupas femininas para vestí-las. Syd adentrou no camarim praticamente se jogando numa poltrona, suspirando e jogando a cabeça para trás.

— Isso tudo foi uma merda. — Falou.

— Você falou bem, Syd. Isso foi bom. — Roger disse, fechando a porta atrás de si.

— Precisávamos mesmo vir aqui? — Nick Mason concordava.

— Tecnicamente sim. — Falou Rick Wright. — Quer dizer, precisamos de divulgação, não é?

Syd manteve os olhos verdes um tempo maior no teto, como se pensasse sobre alguma coisa ou apenas entrasse em devaneio, o que fez Roger olhar para ele alguns instantes.

— Mais divulgação? Sério? — O jovem dândi disse, sem que voltasse os olhos aos outros. — Eu preferia ter saído com a Libby do que ser humilhado ao vivo e ela nem mesmo gosta da minha música.

— Syd. Vocês terminaram fazem alguns meses. — Roger estranhou. — Você ficou batendo com um pandeiro na cabeça dela e deu comida de cachorro para ela.

— Oh. Verdade. — Deu de ombros, jogando o corpo para frente. — Eu preciso de uma namorada nova. Nick, quer ser minha namorada?

— O quê? — Mason engasgou.

— Brincadeira. — Syd levantou-se com esforço e desânimo. — Ok, querem sair?

Os três se entreolharam incrédulos com a mudança de postura e sem entender a pergunta súbita do vocalista, mas Roger foi o primeiro a se pronunciar naquele silêncio esquisito e desconfortável que ocorreu entre os componentes da banda.

— Syd… Temos até agosto para terminar o álbum.

— Hm. Tá bom, eu vou sozinho. — Resmungou. — Apareço amanhã. Até.

Sem cerimônias, Syd Barrett abriu a porta e a bateu atrás de si. Roger suspirou. Teimoso. Ele era sempre teimoso, mas aborrecido daquele jeito não era comum. 

No dia seguinte, Syd realmente foi ao ensaio, mas… Ele estava ocupado demais invadindo o estúdio dos Beatles que gravavam Sargent Pepper. Era realmente fanático por eles e não disfarçava ao puxar conversa ou fumar erva junto. Era realmente difícil convencer o vocalista a voltar. 

Por volta das cinco da tarde quando o sol estava se pondo, Barrett entrou na sala de gravação com um sorriso alegre no rosto de quem havia tido um excelente dia, o que contrastou com a expressão aborrecida de Rogers que o recebeu junto de Norman Smith, o produtor do álbum.

— Olá. — Syd soltou. — Aonde está Nick e Richard?

— Eles já foram. São cinco horas da tarde e você não veio. — Rogers soltou, levantando do banco aonde estava.

— Nós gravamos o instrumental de Take Up Thy Stethoscope And Walk. — Norman amenizou para que mostrasse que eles tiveram algum progresso.

Syd soltou um “Oh…” baixo, estalando os lábios e em seguida rindo de maneira abobalhada.

— Desculpa. John e Paul são muito gente boa, foi difícil sair de lá. Eles me deixaram escutar um pouco do som, foi mágico. Foi como ver Van Gogh e Picasso trabalhando juntos! Sério, o álbum novo deles irá mudar a história, pode escrever o que eu digo.

— Eu imagino que foi. — Roger, pigarreou. — Eu acho que não temos muito que fazermos aqui. Te levo para seu prédio.

Syd deu um sorriso de lado pelo amigo resolver acompanhá-lo, abrindo a porta como se não tivesse atrapalhado a gravação ao não comparecer. Roger ficou em completo silêncio, emburrado pela negligência de Syd com a banda que ele mesmo resolveu formar, mas o vocalista mal parecia notar ou sabia ignorar muito bem.

Chamaram o táxi por volta das dezoito horas até que chegassem no prédio em que Syd estava morando desde que foram de Cambridge para Londres. Syd saiu do carro, apoiando o corpo na janela de Roger, sorrindo de maneira que Roger já sabia pelos olhos de raposa do outro: era sinal de encrenca.

— Quer conhecer um pessoal que tá no meu prédio? — Perguntou animado.

— Pessoal? O quê? Você não disse de pessoal nenhum.

— Pois é, desde que me mudei essa gente apareceu. — Fez uma careta. — Acho que são fãs ou algo do tipo. Estranho, né?

Roger ficou relutante, mas saiu do carro mesmo que achasse que seria uma péssima ideia por não gostar nem um pouco de Syd estar morando com pessoas desconhecidas e temia que eles fossem parasitas que estivessem em cima da fama dele. Syd buscou nas roupas a chave de casa, seguindo na frente e sendo acompanhado logo depois pelo colega. Mesmo com o sorriso reluzente e belo de Syd, havia algo que deixava Roger preocupado e com o desejo de sair correndo. O silêncio retornou quando entraram no prédio, subindo as escadas para que chegassem no andar de Syd. Conforme subiam as escadas um barulho de agitação como uma estação ferroviária era escutado e isso aumentava ainda mais a apreensão de Roger.

Chegaram finalmente na porta do apartamento de Syd e a zona dentro do local fazia com que algo parecesse muito errado. Syd girou a fechadura com a chave, dando espaço para Roger que abriu os olhos em espanto. Havia pelo menos umas dez pessoas na entrada e uma delas se levantou do sofá e aproximou de Syd apoiando o braço por cima dos ombros e o puxando para perto de maneira íntima com um sorriso alegre e ao mesmo tempo atroz.

— Syd, bem na hora! Não vai adivinhar o que eu trouxe. — O homem animado falou, o rosto quase colado ao de Barrett de modo inconveniente.

— Oi, Scotty. Rog, esse é o Scotty. — Syd disse ao entrar. — Scotty, esse é Rog. Roger, Scotty é um amigo meu. Ele me aproximou muita gente.

— Ah. Waters. Você é bem mais esquisito pessoalmente. Legal. — Balançou a cabeça ainda sorrindo. — Eu vi você ontem na TV. Você foi foda, bicho.

— Perdão, esquisito?

Scotty era um rapaz magro como outros presentes, cabelos bagunçados, olhos psicóticos que não paravam quietos e lábios rachados cujo molhava frequentemente com a ponta da língua, além de dentes tortos e salientes. Todos ali pareciam suspeitos, mas nenhum deles parecia perigoso como Scotty.

— Você tá muito doidão, cara. — Syd riu da empolgação de Scotty. — O que é que você trouxe?

— Achei que não fosse perguntar. — Pegou do bolso uma cartela colorida, tirando uma fita. — Da melhor qualidade para você, amigo. Você tem que ser o primeiro a provar, é o nosso gênio, afinal.

Scotty fez um gesto para que ele abrisse a boca e Syd fez de maneira comportada e feliz. Demonstrava estar contente, diferente de Roger que mostrava desconforto com aquela cena. Syd olhou para a face preocupada de Roger alguns segundos antes do ácido encostar à língua e pensou se o amigo não estava com ciúmes da amizade deles. Se ele fosse Roger estaria com certeza e esse desejo malvado divertiu Syd, que voltou os olhos para Scotty e enfim os fechou.

O homem soltou Syd, mostrando um sorriso de quem estava nefando para Roger e que causaria calafrios em qualquer pessoa comum, mas que o vocalista mal havia percebido pela animação e histeria do local que para ele era o comum.

— Você também quer? Eu prometo que você entrará numa viagem interestelar com um desses.

— Eu acho que não… Syd, eu…

— Sim? — Syd não olhava para Roger, ao contrário, ainda mantinha os olhos fechados para que o efeito viesse mais rápido e sentisse o ácido queimar abaixo da língua. 

— Fico feliz por apresentar seus amigos. — Se mostrou lacônico. — Eu vou voltar para casa. Não esqueça de ir para o ensaio amanhã.

Falou apenas, abrindo a porta e saindo sem olhar para trás.

Roger Barrett manteve os olhos fechados um tempo também para que as lágrimas das memórias parassem de manchar aquela relíquia amaldiçoada com fotos que o aterrorizavam. A dor no peito, mesmo depois de três décadas, ainda parecia forte e o acovardava de virar as próximas páginas.

Ele sabia muito bem que o fechar da porta de Roger Waters era o ínicio de algo muito pior a entrar na vida do jovem Syd Barrett: o começo de sua solidão e do abandono daquele que mais confiou. O começo do que os sensacionalistas chamariam de sua perda da realidade e o nascimento do louco risonho.


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Notas finais do capítulo

O capítulo fez referência a duas músicas além de Astronomy Domine: Take Up Thy Stethoscope And Walk e Interstellar Overdrive. O final foi uma citação do álbum solo "Madcap Laughs". Além disso, há algumas considerações que queria fazer: Sim, eu resolvi reviver a história. Não sei se irá ter alguém acompanhando, mas quis continuar por gostar da história. Se tiver alguém lendo, agradeço de verdade. ♥



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