This Heart Is For The Wrecking escrita por Araimi


Capítulo 2
Capítulo 2




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/761456/chapter/2

 

— Como assim não tenho nada? – Ela pergunta, chocada.

O advogado tem uma expressão condescendente que os homens costumam ter quando falam com mulheres que eles julgam estúpidas. Ele organiza os papéis que tem em mãos e diz:

— Não é que a senhora não tenha nada. Seu marido lhe deixou uma certa quantia em imóveis e fazendas. Mas também lhe deixou muitas dívidas. Tantas, na verdade, que é pouco provável que sobre algo de sua herança quando terminar de quitá-las. Talvez nem seja o suficiente, para ser franco.

Julieta engole em seco, pede um tempo para digerir a informação e vai para casa. Ela vai para o escritório de Osório, local antes proibido para ela. Ele a colocara para fora a empurrões na única vez em que ela tentou entrar. Mas agora o escritório não é mais dele. Não há portas fechadas para ela naquela casa.

Ela se serve uma dose de whiskey, fazendo careta ao tomar o primeiro gole. Julieta mal sabe como processar aquilo, não sabe o que fazer. Nunca lhe faltara um teto, comida, roupa, confortos. Nem com o pai, nem com Osório. Por um breve momento ela pensa em voltar para casa dos pais, mas rejeita a ideia rapidamente. Julieta não fala com eles desde que se casara; ainda profundamente magoada pela atitude deles.

Mas ela tem que ser realista. Não tem um amigo naquela cidade a quem recorrer. Mesmo que volte para a casa dos pais, eles moram em uma das fazendas de Osório. Osório que estava falido e não se importou em avisar a ninguém. De repente, as bebedeiras, o temperamento cada vez pior, começam a fazer sentido. Não justifica, é claro, o modo como ele a tratava.

Ela toma um whiskey atrás de outro e a bebida parece destrancar um ódio inimaginável. Julieta havia sentido tanta coisa por Osório. Ressentimento, rancor, raiva, sim. Mas ela sentia medo demais para ter espaço para o ódio. Agora ela sentia, consumindo-a como um incêndio. Ela joga o copo contra a parede, vendo-o despedaçar, empurra as coisas que estão na mesa para o chão, arranca livros da prateleira. Só para sua destruição quando está cansada demais para continuar.

Senta-se na cadeira que costumava ser de Osório e, tomada pelo whiskey e a raiva que ainda borbulha dentro de si e um sentimento de puro desafio, Julieta toma uma decisão.

Ela tem 21 anos, nunca cuidou de negócios, não tem nenhum amigo ou dinheiro, mas está convencida de que pode fazer um trabalho melhor que Osório.

 

—***-***-***-

 

Julieta vende algumas fazendas e todos os outros imóveis, exceto a casa onde ela mora, para conseguir dinheiro suficiente para começar a pagar sua dívida e conseguir mais tempo para pagar o resto. Ela demite o advogado que, além de ter sido advogado de Osório, não acredita que Julieta consiga fazer qualquer coisa para mudar sua situação. Ambos têm pouquíssima paciência um com outro. O melhor a fazer era seguir caminhos opostos. Ela contrata outro advogado que parece mais aberto as suas ideias.

Ela vai a reuniões e tenta aprender o máximo que pode. Não é fácil. Aquele é um mundo de homens, um negócio de homens e homens não estão nem um pouco interessados em ensiná-la qualquer coisa. Ela aprende de qualquer maneira.

 

—***-***-***-

 

Ela decide visitar as fazendas que lhe restam, precisa saber o que está acontecendo, se tem algo de errado. Julieta precisa que elas sejam mais produtivas do que nunca.

Logo na primeira fazenda ela encontra problemas. Um maior do que todos os outros. O administrador era péssimo, estava vendo a fazenda desmoronar na frente de seus olhos e não fazia nada, tratava aquele lugar como seu reinado particular. O único motivo de ocupar aquela posição é porque era amigo de Osório.

Julieta o demite e coloca outro em seu lugar. O homem não fica nada satisfeito, nem a família dele. Ela deixa que eles esperneiem. O novo administrador parece bastante satisfeito e se mostra disposto a lhe ensinar algo sobre o café. Julieta acha importante aprender tanto sobre o negócio do café quanto do café em si.

Ela tenta aprender algo novo em cada fazenda ao mesmo tempo em que procura fazer melhorias com o conhecimento que já tinha de ver o trabalho do pai.

Julieta se cansa logo das viagens constantes, mas Camilo está radiante. Quando estão na estrada, ela passa a maior parte do tempo tentando mantê-lo longe da janela. Corre para longe da charrete assim que chegam ao seu destino. Ele faz amigos rapidamente, brinca como nunca havia brincado antes. Ele volta para ela com as bochechas vermelhas, suado e sujo de terra. Julieta o repreende, mas não é sério. Camilo lembra-a a si mesma, de sua infância.

 

—***-***-***-

 

Ela acaba indo a fazenda do pai, por mais que não queira. Camilo fica na casa, com ordens expressas para não sair. Ele fica desapontado, mas estivera febril durante a viagem e Julieta não quer arriscar. Ela também não quer que ele seja visto pela família que deixou ali.

A mãe a abraça apertado e Julieta se permite abraça-la de volta por um instante. O pai a cumprimenta com a cabeça, sentando na poltrona de frente a ela, ainda com aquela expressão de desapontamento que irrita Julieta mais do que alguma vez a feriu.

— Meus pêsames pelo seu marido. – Ele diz.

— Você veio morar aqui na fazenda? – A mãe pergunta, sorrindo, olha ao redor de Julieta e emenda: - Onde está o menino?

— Em casa. – Julieta responde. – E não vim para ficar. É uma viagem de negócios.

— Negócios? – O pai pergunta.

Julieta explica o que está fazendo. Não sua situação de dívidas, não quer que o pai saiba, por algum motivo. Seria muito humilhante. Mas ela explica o que melhor que pode sua posição, de maneira pragmática e direta. Os pais a olham com um misto de incredulidade e nervosismo. Quando ela termina, os três caem em um silêncio desconfortável. A mãe olha para o pai e, por fim, ele pergunta:

— Trocar o administrador? Eu sou o administrador.

— Eu sei.

— Mas... mas a fazenda está indo bem.

— Sim, mas eu preciso que ela seja excelente. Bom não é mais suficiente.

Pelo canto do olho, Julieta percebe que a mãe está a um passo de começar a chorar. O pai está ficando vermelho.

— Eu sou um bom administrador. Nunca dei problema. Na última vez que você esteve aqui, essa foi a fazenda mais produtiva do senhor Bittencourt...

Aquilo acende a ira dentro de Julieta.

— Foi. – Ela o corta com rispidez. – Cinco anos atrás. Desde então não foi tão produtiva.

Eles se encaram por um longo tempo, a sala preenchida por um silêncio tenso. O pai inclina-se na sua direção, com aquela aura ameaçadora, como se Julieta ainda lhe devesse obediência. Depois de tudo que ele a fez passar.

— Eu não acredito que você tenha coragem de demitir seu próprio pai.

Julieta inclina-se para mais perto dele também.

— Me parece que eu acabei de fazer exatamente isso.

O pai levanta-se em um rompante e Julieta faz o mesmo, o coração batendo rápido. A mãe funga em seu canto.

— Eu e o seu pai trabalhamos nessa fazenda a vida toda. O que vamos fazer sem ela?

— Vocês podem continuar na fazenda. – Julieta a acalma. – Só não no mesmo cargo que antes. Nem na mesma casa. Desocupem o quanto antes, acredito que o novo administrador chegue em menos de uma quinzena.

Ela volta para casa de bom humor e vai dormir relaxada. Julieta reza e pede e tenta, mas não consegue se sentir menos satisfeita pelo o que fizera. Tem que se confessar assim que chegar a São Paulo.

 

—***-***-***-

 

Ela estuda e aprende. Escuta o que aqueles homens dizem e aprende a falar como eles, a falar com eles. Não é fácil. Eles não gostam dela, por ela ser mulher. As vezes eles são condescendentes, outras rudes, alguns a tentam tratar com carinho, como se ela fosse uma menina estúpida. Esses são os que a irritam mais.

Uns não querem fazer negócios com ela, pois, além de ser mulher, é muito jovem. Outros parecem irritantemente regozijados por sua juventude. Julieta percebe os olhares deles, o sentido obscuro em frases corriqueiras. A maioria deles respeita seu luto. Não, eles respeitam o homem a quem ela pertenceu antes. De qualquer forma, Julieta abraça o preto como uma armadura, a aliança em seu dedo uma arma, e, caso necessário, aprende a manejar uma de verdade.

Não é fácil, não é rápido, nem tão gratificante quanto ela achou que seria, mas aos poucos, Julieta começa a colocar sua vida nos trilhos. Ela acha um propósito para si, uma forma de dar a Camilo todo o conforto de uma boa vida, a dívida que o falecido a deixou gradualmente vai sendo paga.

 

—***-***-***-

 

A dívida está diminuindo, mas os negócios ocupam cada vez mais o tempo de Julieta. Ela vê Camilo a noite, normalmente quando ele está se preparando para dormir. Ele já é um menino grande, já deveria estar na escola. Julieta quer a melhor educação para o seu filho. Ela acredita que irá conseguir pagar a dívida toda e depois... depois quer expandir seus negócios. Camilo deve ser melhor preparado que o pai, para não colocar tudo a perder no futuro.

Ela o coloca em um internato na cidade, um pouco afastado, mas com ótima reputação. Os melhores internatos estão na Europa, mas Julieta não consegue imaginá-lo tão longe. Ela deita-se ao lado de Camilo uma noite e lhe explica a mudança. Ele se agarra a ela e parece receoso de ficar sozinho em um lugar estranho. Faz muitas perguntas. Julieta responde o melhor que pode, trata de acalmá-lo, de garantir que ela o veria sempre, que iria vê-lo sempre que ele precisasse.

Ele concorda e aceita, mas no dia em que Julieta o leva para o internato, assim que chega o momento de se despedirem, Camilo para. Ele olha para o prédio, para Julieta, para o prédio novamente e atira-se contra ela, abraçando-a, agarrando suas vestes.

— Eu não quero ficar aqui! – Ele chora. – Eu não quero! Eu não quero!

Julieta tenta acalmá-lo, abraçando-o. Uma mulher espera por Camilo, observando a cena por alguns segundos antes de intervir e tentar garanti-lo que tudo estaria bem.

— Camilo, nós conversamos sobre isso. Está tudo bem. Me solte.

Mas o menino se agarra mais a ela.

— Não. Eu não quero ficar aqui, eu quero ir pra casa. Quero ir pra casa com você. Mamãe? – Ele pede e chora.

Aquilo parte o coração de Julieta e ela tenta mais uma vez explicar que ela não o está abandonando. Camilo começa a gritar. Não diz mais nada, não chora, apenas grita. E Julieta perde a paciência. Ela tira os braços dele ao redor de si com força e, segurando-o pelos ombros, diz:

— Já chega! Pare com isso. Nós já conversamos, Camilo. Você vai ficar aqui.

— Mas eu não quero. – Ele responde petulante.

— Você não tem querer! Eu sou sua mãe e eu decido. Você vai ficar aqui. Entendeu?

Ela é rude com ele e se arrepende no segundo seguinte. Julieta nunca o tratara assim e Camilo a olha como se ela fosse uma estranha. Uma lágrima silenciosa cai por sua bochecha ruborizada e aquilo dói em Julieta mais do que o choro e os pedidos de Camilo. A mulher o pega pela mão e o leva para seu quarto. Ele olha uma última vez sobre o ombro para Julieta. Ela mantém a pose até ele desaparecer e, depois, com muita força de vontade, até chegar em casa.

Ela chora até dormir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!