Inquilina escrita por Jeniffer


Capítulo 1
Inquilina


Notas iniciais do capítulo

Até eu estou surpresa.



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É difícil viver com uma inquilina em sua mente.

Por um tempo – muito tempo – decidi ignorá-la. Se ela se sentiu no direito de fazer da minha cabeça sua casa, também me senti no direito de negar sua existência. Pensei que poderíamos viver em harmonia, cada uma em seu canto, vivendo nossas vidas em um sistema de comensalismo. Não dizem os cientistas que usamos apenas 10% de nossos cérebros? Ela poderia ficar com os 90%. Mas ela é um tanto gananciosa, um tanto carente e outros tantos atrevida. Vivíamos em um sistema de parasitismo.

Eu gosto de chamá-la de An. Pronuncio como o apelido de Anne, em inglês. Não sei bem o porquê. Achei que o nome estrangeiro geraria distanciamento, mais uma comprovação de que não somos iguais, que não viemos do mesmo lugar. Mas, a verdade é que somos a mesma coisa.

Não sei se pertenço a ela.

Se ela pertence a mim.

Se nos pertencemos.

Se me pertenço.

Temos dividido o mesmo espaço há tanto tempo que já não sei mais onde começo e onde ela termina.

An é como uma inquilina inesperada que prometera ficar por apenas alguns dias e, agora, já tem sua própria gaveta no armário e um lado favorito na cama. Este tipo de visita não consegue viver independentemente, precisa estar com você o tempo todo, perguntando o que você está fazendo e, às vezes, tentando ajudar em algumas tarefas. É exaustivo. Queria poder despejá-la, mas não consigo. Afinal, para onde ela iria? Sinto-me responsável por An, de um jeito pouco saudável.

Acho que poderia tolerar sua longa estadia se An tivesse sua própria vida, ou se ela tivesse algum hobby que a mantivesse ocupada por algumas horas. Contudo, é como se a televisão em seu quarto apenas sintonizasse em minha vida. Então, ela gosta de me acompanhar nas situações mais diversas. Desde momentos importantes como entrevistas de emprego, até momentos banais, como idas ao banco.

An observa cada suspiro, cada movimento, cada passo. Se você conseguisse falar com ela, tenho certeza que ela diria que faz isso por amor. Talvez ela realmente me ame, de seu jeito torto e fragilizado, e se preocupa comigo. Sei que diz para si mesma que faz tudo isso para me proteger. Me proteger do mundo, da vergonha, das decepções e das tristezas. Mas, An, como posso me proteger de você? Como posso me defender de alguém que tem as chaves de todas as portas da minha mente?

Pensando bem, An foi o meu relacionamento mais duradouro até agora. Desde meus amores platônicos ou fracassados, até os amigos que ficaram para trás e os que continuam ao meu lado, foi a única que nunca realmente me abandonou. Perceber isso me assusta e me conforta, se é que isso é possível. Mesmo que sua existência faça minhas mãos tremerem, meu coração palpitar e minha respiração parecer insuficiente. Talvez esses sejam os sintomas de alguém apaixonado, não é mesmo? Não tenho certeza.

Mas, de todas as coisas, An é, principalmente, previsível. À essa altura de sua estadia, a conheço tão bem quanto conheço a mim mesma. Sei o que a agita, o que a conforta, o que a apavora e o que a enfurece. Posso não saber controlá-la, mas sei conviver com ela. E não me entenda mal, pois isso não é uma coisa boa. Muitas vezes, conviver com An significa deixar de viver comigo mesma. Significa dar um passo para trás para que ela não dê dois passos para frente. Significa abrir mão, evitar, esconder, e, pouquíssimas vezes, reconciliar. Já abri mão de tanta coisa por An que nem sei se isso é uma acusação ou uma carta de amor.

Tentei criar uma casa agradável para nós duas, na esperança de que isso a deixasse mais calma. A enchi de histórias, filmes, paz e tranquilidade. Mas An é uma criaturinha agitada, que pensa e sente demais. Logo se imagina naquelas situações, vive aquelas vidas e chora por amores perdidos que nunca sequer teve. É difícil ignorá-la nesses momentos. Carrego nossa casa em nossos ombros, logo, seus lamentos são todos ditos ao pé do meu ouvido. Qualquer agitação faz meus joelhos fraquejarem.

Às vezes eu lhe dou remédios. Não aprecio o amargo que deixam em minha língua; tem gosto de traição. É como anestesiar um braço ou uma perna: ainda me movo, mas não com naturalidade. Mas, ainda assim, peço que me entenda. Tem dias em que An é como uma criança que comeu muito açúcar ou um adulto que bebeu muito café. Nesses dias, ela precisa dormir, nem que seja por algumas horas. É quando ela dorme que saio de fininho para viver um pouco. Caminho pé ante pé, uso sapatos silenciosos, rio baixo, com medo que minha pequena felicidade seja muito barulhenta e a acorde.

Nesses dias, faço uma tão necessitada faxina, deixo a casa em ordem, jogo fora coisas velhas, abro as janelas. Até mesmo visito meus vizinhos e amigos, peço que me visitem, faço café e até me aventuro na cozinha para preparar bolos. Sei que se An estivesse lá, sussurraria absurdos para mim, insinuando que os amigos estavam me visitando por pena, que já não me suportam, não aguentam mais esperar décadas para que eu saia de casa, ou até mesmo que o bolo estava ruim e eles comiam por respeito. Gosto de não ouvir seus sussurros por um tempo. Tenho o péssimo hábito de acreditar neles.

Mas, às vezes, nem mesmo os remédios conseguem derrubá-la. An tem uma força que me assusta e me causa inveja ao mesmo tempo. Nesses dias, eu preciso trancá-la naquele quarto escuro no final do corredor, o único lugar da casa que ela não utiliza, e até odeia. Mas não posso evitar, tem coisas que eu preciso fazer sozinha, momentos importantes que não posso deixá-la me acompanhar. Ser adulto, muitas vezes, é ignorar os seus inquilinos ou escondê-los de seus vizinhos, mesmo sabendo que eles estão escondendo seus próprios inquilinos nas casas sobre seus ombros.

Meu maior erro foi nunca ter instalado uma tranca naquela porta. Então, eu sempre preciso segurar a porta sozinha. Finco meus pés no chão, escorro-me contra a madeira gasta e seguro. Respiro fundo e seguro um pouco mais. Posso ouvi-la lá dentro, sabia? Mas não importa o quanto ela grite, chore ou desfira socos nas paredes, eu não posso deixá-la sair.

Por isso, eu entendo seus dias de agitação. Eles são sua pequena vingança. Sei que ela não gosta daquele quarto escuro e trancá-la lá a deixa furiosa. Mas a sua fúria é de um fogo lento, consistente e duradouro. Sei que ela espera até que eu colapse de exaustão para se esgueirar pela porta que já não consigo mais segurar. E, por um tempo, ela me fecha no quarto escuro e toma conta da casa.

Nesses dias, eu prefiro fechar as janelas e ignorar a campainha, fingindo que não tem ninguém em casa. Afinal, como eu poderia sair para regar as plantas, ou conversar com os vizinhos à cerca se fraquejo a cada som de destruição que atinge meus ouvidos e joelhos? É melhor deixá-la se cansar.

Mas nem tudo é caos com An. Temos aprendido muito uma com a outra nos últimos tempos. Desenvolvi um gosto agridoce por desafiá-la. Eu a ouço discursar sobre minha próxima aventura – até mesmo as mais simples, como tomar um drink com minhas amigas – dissertando sobre tudo o que pode dar errado e tento acalmá-la da melhor maneira possível.

“Essa blusa não te favorece”. Está frio, An. De qualquer maneira, vou usar um casaco.

“Elas estão atrasadas, aposto que nem vão aparecer”. Elas sempre estão atrasadas, é um hábito.

“Você não percebe que elas já não aguentam mais ouvir você falar de mim?”. Não estou falando, An. Hoje estou apenas ouvindo.

“E se elas finalmente decidirem falar o que pensam de você? Elas são sua carona, como pretende voltar para casa? Em um silêncio constrangedor?”. Posso chamar um táxi ou um Uber.

E se você for assaltada?”. Então eu chamo a polícia.

“Por que não vai naquele mesmo restaurante que você sempre vai? E se você não gostar da comida desse lugar novo?”. Posso me acostumar com carne mal passada ou um molho diferente, An. Já me acostumei com coisas piores.

Gosto de voltar para casa depois dessas pequenas aventuras e encontrar a casa em ordem, com um perfume suave espalhando-se pelos cômodos. Sento-me então no sofá e deixo An descansar sua cabeça no meu colo, enquanto corro meus dedos por seus cabelos e bebo uma xícara de chá.

“Não foi tão ruim assim, eu acho”. Não, não foi.

“Nada deu errado. Desta vez.” Não, nada de errado. Desta vez.

Se aprendi alguma coisa com meus anos de convivência com An foi a necessidade de viver uma coisa de cada vez. Muita coisa pode acontecer na próxima vez, mas posso deixar para me preocupar com isso quando chegar a hora. Viver ansiosa pelo futuro e saudosa do passado me impede de viver o presente.

Talvez eu nunca consiga expulsar An da casa que carrego nos ombros. Já aceitei esse fato. O que posso fazer –  e estou fazendo –  é aprender a conviver, deixando-a estar sem perder meu próprio espaço. Pois, mesmo com toda a dor e caos que ela consegue criar, sempre há momentos como este, em que ela está descansando sua cabeça em meu colo e minhas mãos não estão tremendo, meu coração está batendo cadenciadamente e o ar em meus pulmões é suficiente para arejar a casa toda.


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