Requiem Aeternam escrita por AnaBonagamba


Capítulo 15
Annus Novus


Notas iniciais do capítulo

O último por um breve período de tempo!



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Despertei preguiçosamente na minha própria cama do dormitório feminino, envolta pela grossa coberta de lã verde-musgo. Os cabelos levemente desfeitos, e o casaco da noite anterior pousado com cuidado na cadeira da penteadeira dividida entre mim e Margot.

Tinha ciência de que o efeito da poção seria ineficaz por um período duradouro, já que sua função principal é desvendar a verdade. Um corpo modificado magicamente para atender às necessidades físicas de uma garota, abrigando fisiologia de uma mulher com 24 anos, trazia consigo efeitos colaterais óbvios e, saturado pela alquimia que se decompunha em suas células após a ingestão do chá, sem conseguir quebrar o padrão estabelecido por Snape em sua poção rejuvenescedora perfeita, foi vencido pelo cansaço.

Tom havia me carregado até ali, tarefa que julguei não ser das mais simples. Ele conhecia os corredores de Hogwarts como ninguém, e evitar contato social nesta época era demasiadamente fácil já que poucos alunos permaneciam na escola. Ademais, como monitor, ele tinha liberdade para transitar em locais que os outros estudantes não se atreveriam após do toque de recolher. Portanto, o mais complexo seria me carregar.

Eu não me lembrava muito da noite anterior e, apesar de sentir o corpo enfraquecido pelos efeitos da poção da verdade - que estavam agindo diretamente no envelhecimento das células revigoradas e, deste modo, impediram que minha consciência fosse perdida e minha mente, invadida - eu estava atenta feito uma coruja. Rapidamente procurei vestígios de alguma alteração externa que pudesse levantar suspeitas, mas não encontrei nenhum detalhe que pudesse me incriminar. Meus documentos forjados, artigos pessoais e presentes de Natal jaziam intactos sobre a penteadeira e, de sobressalto, notei um pequeno bilhete com a caligrafia elegante que eu conhecia bem:

Desculpe-me.

Pisquei demoradamente, tentando entender a motivação que o teria levado a me enfeitiçar para colher informações, e como ele deve ter se sentido frustrado por não conseguir avançar sobre minha mente impenetrável. Gostaria de lembrar o momento pouco antes de desfalecer, onde eu disse aquelas palavras marcadas que o deixaram atônito: seja o que for objeto de seu desejo, você o conquistará, apenas por ser você. Eu queria mesmo ver seu olhar negro e penetrante enfurecido por não conseguir ir além disso.

Iria questioná-lo por tal atitude, é claro. Contudo, após essa investida, uma luz de alerta acendeu dentro do meu peito, lembrando-me de algo que havia ignorado. O lembrol, desfazendo-se em fumaça vermelha. Quem era Tom Riddle. Os motivos pelos quais eu estava ali.

Minha audácia para com ele deveria ser contida e, as conjecturas sobre o mundo moderno, o que se daria entre trouxas e bruxos, o futuro das nossas gerações, aquilo deveria ser parte de um todo que culminava em mim na mais profunda e guardada lembrança. Mesmo que eu soubesse grande parte da história futura, minha existência naquela realidade permitiria diversas ramificações temporais e eu sabia, infelizmente, que não demoraria para que este desvio fosse violentamente corrigido. Era apenas questão de tempo.

Eu poderia adotar uma postura defensiva, amena e inocente, para deixá-lo desconfortável. Mas, não, não faria sentido. O que o despertara para mim era exatamente o contrário, algo em minha segurança por fazer coisas que muitos ali eram incapazes, por estar sempre por cima dos assuntos, pela rápida adaptação e pela sobriedade nos comentários que eu tecia. Neste caso, eu viraria o jogo de um modo bastante usual e o deixaria vulnerável de uma forma que eu sabia que ele nunca havia ficado antes.

Troquei-me e caprichei mais do que deveria. Um vestido vermelho de mangas longas, cintura marcada e saia rodada compunham parte do visual e ressaltou ainda mais minha figura esguia. Abusei da boa vontade de Dorea, usando seus lindos sapatinhos carmesim brilhantes que haviam ficado, entre outras coisas, junto a um belíssimo casaco de pashmina preto. Ela não iria se importar.

Domei o cabelo comprido prendendo-o numa presilha atrás da cabeça. Avessa ao uso de maquiagem ou outros truques de beleza manuais, encostei a ponta da minha varinha no rosto, corrigindo as imperfeições de uma noite turbulenta e mal dormida. Apesar de sua natureza cética e fria, Tom Riddle era um rapaz de 16 anos recém completados. Mesmo que tentasse me ignorar, eu percebia os impactos da minha proximidade e como isso afetava seu corpo diversas vezes.

Eu não iria atrás dele hoje.

Minha ausência seria completamente justificada diante do fato de que eu tinha permissão de ir e vir quando e onde quisesse e, também, o uso da varinha não rastreada pelo Ministério da Magia. Em outras palavras, eu me arriscaria a propor um dia de indiferença, o dia de seu aniversário, para deixá-lo reflexivo. Eu voltaria antes do entardecer para a festa de Slughorn, a qual ele enfatizou que não participaria.

— Tópico número 15, Valery, vamos começar agora. - disse para meu reflexo na penteadeira, arranjando os últimos fios que insistiam em se desprender da presilha.

Cruzei o Salão Comunal vazio a passos rápidos, seguindo pelo terceiro andar até a passagem secreta que me daria acesso à Dedos de Mel. Dali, seria uma caminhada considerável até o portal de Hogsmeade, onde eu poderia aparatar. Estava preparada para atingir com um feitiço não-verbal quem cruzasse meu caminho, porém, ninguém veio. Tudo estava ermo feito um cemitério.

Ao adentrar na pequena vila, os comerciantes amontoavam-se para vender as mais diversas quinquilharias, e muitos bruxos passeavam aqui e acolá, como num dia normal e despreocupado. Outros corriam contra o tempo para preparar a ceia de ano novo, e acabei me dando conta de que nunca havia oferecido à minha irmã uma festa de Ano Novo decente, repleta de comidas típicas, presentes, amigos e amenidades reunidas em torno de uma mesa farta e bem enfeitada. Naturalmente, nas datas festivas ocorriam as piores notificações do Ministério da Segurança Nacional, e minha folga nesse período jamais acontecera. Victoria ficava na escola, em segurança, enquanto eu trabalhava limpando a escória dos Comensais da Morte.    

Então, de maneira similar, eu nunca havia experimentado uma festa a altura, mesmo quando aluna, pois não havia nenhum Slughorn para colaborar com a socialização de jovens, especialmente entre as casas. Talvez essa fosse uma oportunidade irônica da vida em que eu me veria numa situação confortável e, quem sabe, feliz, no meio do caos que estávamos vivendo.

Aparatei como costumava fazer, levemente aborrecida pelo estalo que o corpo jovem fez ao tocar novamente o chão. O local escolhido era bem no coração de Londres, nos jardins da Catedral de St. Paul, que havia sido bombardeada pelos nazistas em 1940. Prossegui confiante na caminhada até Regent's Street, para depois visitar Oxford Street. Muitas pessoas faziam o mesmo trajeto, o que de certa forma dava-me uma sensação de conforto e pertencimento.

— Notícias do dia, apenas 10 cents, leve agora as notícias do dia!

Os trouxas estavam bastante preocupados com a Segunda Guerra Mundial, e especulavam seu término em 1943. Mal sabiam eles que demoraria pelo menos 2 anos mais para as coisas se ajeitarem e, mesmo que definitivamente a Inglaterra tenha conseguido ascender em recuperação - através de muito esforço humano - após essa empreitada, outros países não teriam a mesma sorte.

— Eu quero um, obrigada.

— Bonito casaco, moça.

Eu não tinha controle do que acontecia ali, naquele momento, e por isso certifiquei-me de estar cercada o suficiente para parecer normal e inofensiva à linha do tempo que passava intacta por mim. Comi o desjejum num pub tradicional e, num sobressalto, percebi que era afortunada pela quantidade de dinheiro disposto a meu favor, pensando seriamente em depositá-lo num banco sob a liminar de que, após o falecimento da titular, deveria ser encaminhado a uma instituição de caridade qualquer.

Vi o dia se desfazer e, dentro de poucas horas, os feixes de luz solar serem engolidos pela neblina do inverno europeu. Na tentativa de oferecer um pouco de calor àquelas ruas repletas de pessoas de todos os tamanhos, jeitos, cores, iluminavam os postes com chamas à gás, e não energia elétrica. A crise energética criada pela guerra estava cobrando um preço absurdo para aquela cidade que nunca dormia.

Voltei pelo caminho da ida, e pouco depois veio a neve. Indiferente à beleza dos pequenos flocos que se depositavam sobre o casaco de luxo emprestado pela minha amiga, eu notava famílias inteiras aconchegando-se no chão, no frio, buscando por aquecimento, acalanto... Homens, mulheres e crianças, muitas e muitas crianças, trajando pares de sapatos gastos, chapéus amassados e luvas rasgadas. Emitindo sons de fome, dor, e insegurança. Eu podia ouvir a mente deles, implorando misericórdia, um olhar, qualquer coisa que aliviasse a dor da perda que haviam sofrido.

Meu estômago revirou.

Que época cruel esta em quem Tom Riddle vivera. No mundo bruxo, parcialmente isolado, essas condições adversas não eram vistas com facilidade, por não sermos uma comunidade de grande porte. De certo modo, ele fazia parte daquela realidade deplorável, já que por 15 anos fora abrigado num orfanato trouxa e por 11 anos todas as suas experiências foram limitadas a esta sociedade a qual eu estava agora, parada no meio do caminho, analisando com pesar.

É claro que eu não era ignorante de que nos anos 90 não havia pobreza, nem miséria. Eu acompanhava os noticiários e jornais de diversas partes do planeta para saber que aquilo não era exceção. Contudo, algo cativou minha atenção. Da Catedral parcialmente obstruída por escombros surgia um frade, velho como um carvalho, carregando consigo uma imensa cesta de pão.

— Peguem, meus irmãos; para a glória do amanhã, venceremos o hoje.

As famílias recolhiam o alimento em silêncio e, de mesmo modo, parti desapercebida. Não deveria esperar que algo fosse diferente, mas confessei para mim mesma, íntima e incrédula, que havia sido mais afetada do que o planejado.

— Ainda dá tempo de comprar algumas guloseimas, meu bem. - informou a atendente da HoneyDukes ao me ver entrar. O relógio da soleira mostrava 6 horas da tarde. Peguei a cesta de suas mãos e parti pelos corredores até o porão.

A passagem era desaconselhada para adentrar Hogwarts, já que o caminho era mais tempestuoso, entretanto, eu não poderia me dar o luxo de voltar andando pelo portão principal nos jardins, atrasada pelo frio e dificultada pela neve. Abri o alçapão e desci com cautela os mais de duzentos degraus até a estreita passagem que me levaria à estátua de Gunhilda de Gorsemoor, no corredor do terceiro andar.

Após uma hora, ou mais, adentrei o corredor de acesso ao Salão Comunal da Sonserina nas Masmorras. Estava exausta, física e psicologicamente, mas ainda devia enfrentar a consequência do meu iminente sumiço, após o ocorrido na noite anterior. Como eu havia previsto, ele parecia nervoso. O cabelo imaculado molhado pela neve que começava a derreter devido ao calor da lareira. As vestes estavam cobertas de lama, os lábios um tanto arroxeados pelo frio. Os olhos tão negros que eu quase não conseguia diferenciar as íris e as pupilas.

Ele se levantou da poltrona rijo, apertando os dedos com força. Os outros poucos alunos que restaram para o feriado perceberam a abrupta mudança de energia no ambiente e saíram tão rápido que nem pude cumprimentá-los pelo Ano Novo. Tom engoliu seco.

— Onde você estava? - perguntou autoritário.

Suspirei.

— Fui dar uma volta. - respondi, entregando o folhetim comprado mais cedo na Regent's Street. - Fora daqui.

Tom arregalou os olhos e seus lábios se descolaram um pouco. Ele parecia fascinado e, ao mesmo tempo, enfurecido. Olhou a data e o local do jornal e apontou com os dedos o título Ano novo para quem?

— Você saiu de Hogwarts? Como?

— Não vou te dizer.

— Valery...

 - Achei que confiasse em mim. Eu lhe dei várias vezes o meu voto de confiança, desde que te conheci. - interrompi, me aproximando dele ferozmente. - Não precisava me drogar para saber ao meu respeito, eu era um livro aberto para você. Era só me perguntar.

— Não é fácil para mim, depois de você me afirmar que não possuímos as mesmas ideias, não compactuamos com as mesmas coisas...

— E? Isso justifica você violar minha confiança?

— Você sabe tudo sobre o que fizemos aqui. Tive receio que estivesse insegura e nos entregasse. Seria difícil desmenti-la, afinal, você conseguiu sua posição de destaque e te asseguro que para isso em nada dependeste de mim.

— E por quê eu o faria? - questionei um pouco alterada. - O que eu ganharia delatando você, senão sua fúria e rejeição?

— Você sabe perfeitamente que não teria nem uma, nem outra. - sibilou, cerrando os olhos para mim, encarando-me com tanta profundidade que me senti afogar.

Meus olhos subitamente encheram-se de lágrimas.

— Eu não sei nada disso, Tom. Eu mal conheço você.

— Ah, não, você sabe.— ele disse, quase suavemente, passando as mãos pelos meus braços envoltos no casaco macio e pressionando o local. - Você percebe cada sinal, cada suspiro que dou, e você sabe como eu me sinto em relação a você, mesmo que eu tente muito me enganar sobre isso. Foi só você desaparecer algumas horas e tudo o que eu pude fazer foi te procurar e esperar, quase agonizando, pelo seu retorno. Eu quase não suporto isso.

— Você gosta de mim. - afirmei sorridente, insana, pois aquela revelação era, na melhor das hipóteses, meu caminho mais seguro para o fim.

— E você gosta de mim. - rebateu ele, diminuindo a distância entre nossos corpos. - Sinto seu coração, num ritmo frenético quando me aproximo, assim como você me vê tremer quando me toca. Não dá pra simplesmente ignorar isso, Valery... eu nunca tentei.

— Então por quê...

— Eu quase não suporto isso. - repetiu ele. - Eu estava convicto de que você ficaria amedrontada, diante do histórico de violência sofrido pela sua família, e logo me abandonaria. Sua última frase, contudo, mudou minhas perspectivas.

— Agradeço a consideração! - balancei a cabeça, sarcástica, tentando me livrar de seu aperto.

— Você não entendeu. — ele disse, tão baixo que eu o escutava apenas pela nossa proximidade. - Foi o que me fez perceber o equívoco no seu julgamento. Você gosta de mim. E enquanto gostar, não importa o que eu fizer, você estará lá.

— Sim.

— E mesmo que não compactue nas ações, você vai assistir a mim.

— Sim.

Tom me abraçou, soltando todo o ar carregado de seus pulmões para pousar a cabeça gelada no vão do meu pescoço.

— Era só isso que eu precisava saber.


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