Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 21
Um Sorriso Afiado


Notas iniciais do capítulo

Hello People! Aqui vai mais um capítulo.



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O céu vespertino chorava como na noite em que Otávia morrera. Massas pesadas, voluptuosas e cinza criavam uma capa sobre o horizonte, acumulando sua tristeza por quatro dias desde que Marcus desaparecera. Otávia esperava respostas a céu aberto de um dos cômodos superiores do prédio que não possuíam teto ou paredes, vendo a véspera de natal abrir suas portas molhadas para visitas pretéritas de doze anos atrás.
Sua família póstuma estava toda reunida naquele mesmo cômodo aberto para assistir os fogos de artifício que eram disparados ao céu naquela mesma época do ano. Ava e Ana, as pequenas gêmeas de sete anos corriam uma atrás da outra, brincando de pique-pega. Elas estavam vestidas com cores natalinas, uma de verde, outra de vermelho. Observando-as com cautela estava a Velha, que apesar não dizer nada, conseguia manter as duas irmãs sob sua guarda apenas com expressões.
Marcus preparava uma árvore de natal pequena e cheia de presentes que ele coletara dos vivos. Ele havia lhes falado que épocas comemorativas como a véspera de natal eram muito perigosas, pois os demônios da saudade saíam à noite e assumiam a forma de entes queridos dos fantasmas para atraí-los e devorá-los, por isso era importante que eles permanecessem no prédio, mesmo que quisessem visitar suas casas.
Para ele e para os outros, aquilo não era algo difícil de fazer, estavam mortos há décadas e suas famílias provavelmente também. Não era assim para Otávia, e também não era assim para Renato. Seu namorado estava sentado na beirada do prédio, balançando as pernas e olhando para o chão, como se fosse pular. Aquilo fizera com que Otávia ficasse nervosa. Desde que o casal morrera, foram instruídos tanto por Marcus quanto por Nepecrapto, o tutor de ambos. Os dois haviam lhes dito que as causas originais de suas mortes podiam destruir suas almas, caso ocorressem novamente. Portanto, mesmo que Renato não fosse se machucar caso caísse dali, não era algo sábio para fazer.
Ela caminhou até ele e se sentou ao seu lado, tentou segurar sua mão, porém, ele se esquivou.
— O que houve? Por que você está assim? – perguntou Otávia passando a mão em seus cabelos.
O rapaz mulato olhou para o lado e suspirou.
— Nada. Não aconteceu nada. – respondeu.
— Renato, você nunca conseguiu mentir para mim. – ela tentou segurar seu rosto com carinho.
— Não foi nada! – resmungou Renato afastando suas mãos.
Otávia olhou para o outro lado e segurou suas lágrimas. Fazia oito meses que Renato havia se jogado do alto da Torre Vermelha, o maior prédio da Universidade da Baía de São Sebastião. Desde que ele o fizera, a menina culpava-se, não por um ato dramático e carente, mas porque realmente era sua culpa. Ela havia cedido à sua marca dos divididos e provocara ilusões que levaram o rapaz a se jogar da universidade. Renato nunca havia a julgado ou recriminado, contudo, cada dia que passava ele se tornava mais distante e arisco. O amor que compartilhavam padecia pouco a pouco, e Otávia sabia que era por sua culpa. Ela havia o matado.
— Não é por isso que eu estou assim. – disse Renato como se conseguisse ler seus pensamentos. – Você não me fez nada. Já te disse isso, Nepecrapto também. Você pode ter… mexido comigo, mas fui eu quem decidiu pular. Se você tivesse me matado, teria sido consumida como ele.
— Eu quase fui… - lembrou-se Otávia. – Nepecrapto disse que amor, amor de verdade, é uma energia curativa, que reverte a marca. Você me salvou. Você sempre me salva.
Renato sorriu para Otávia e lhe beijou. Então, seu rosto se cobriu de amargura.
— Nem sempre. – Renato apoiou-se em seus braços e se levantou. – Se isso fosse verdade, você não estaria aqui.
— Renato…
— Não foi culpa sua, Otávia. – uma luz amarela se iluminou no peito do rapaz. – Foi minha. – então um símbolo parecido com um coração com duas linhas turvas em seu topo apareceu em seu esterno. – Mas eu vou consertar isso, eu prometo.

O rapaz pulou do prédio, e entrou nas névoas brancas da morte.
— Renato! – chamou Otávia em desespero. – Renato!!
— O que foi? O que ele fez? – perguntou Marcus indo até a menina.
Ela pôs as mãos sob os olhos e começou a chorar enquanto o menino segurava seu ombro.
— A marca dele… apareceu a marca dele. – fungou Otávia.
— Uma hora ou outra todos nós ativamos as nossas marcas, Otávia. Isso é normal. Não se preocupe. – Marcus tentou tranquilizá-la. – Não vai acontecer nada com vocês.
— Você promete?
Marcus sorriu e se sentou ao seu lado.
— Eu prometo. Enquanto vocês morarem comigo, não vou deixar nada acontecer com vocês.
Não era uma mentira, mas sim um engano. Marcus não fora capaz de proteger nenhum deles. Nem as gêmeas, nem Renato, nem Leonardo, e talvez nem a si mesmo.
— Onde está você? – perguntou Otávia para a chuva, saindo do passado.
Em resposta, uma borboleta apareceu diante da garota. Suas asas eram grandes e negras com detalhes rosa nas pontas inferiores. A chuva a atravessava como se ela não estivesse lá.
— O que é isso? – perguntou Charles subindo ao cômodo aberto e parando atrás da menina.
— É uma borboleta do inferno… - disse a menina, lembrando-se de um dos muitos ensinamentos de Marcus. – Elas só aparecem… quando… quando uma alma é obliterada.
Charles e Otávia se entreolharam, assustados demais com o significado daquilo. Antes que dissessem mais alguma coisa, a borboleta do inferno voou ao redor deles e foi até a porta do cômodo, diante da qual a Velha estava parada. Assim que a mulher viu a borboleta, entendeu seu significado e começou a chorar silenciosamente, e logo Charles e Otávia seguiram-na em seu luto pesado e frio como as nuvens da tempestade.

— Boa tarde! Bem vindo ao Secrerinto, como podemos te ajudar? – perguntou um atendente alto, pálido com trajes negros.
Heitor olhou ao redor antes de responder o rapaz. Todos os corredores da loja estavam separados por prateleiras altas que iam até o teto, dando ao lugar uma aparência de labirinto. Perto da entrada, onde o garoto estava, havia um caixa com funcionários que observavam diversas câmeras para garantir que nada do labirinto de artefatos ocultistas estava sendo roubado, ou que qualquer outra coisa ilegal estava sendo feita no recinto.
— Onde eu acho a sessão de jogos? – perguntou Heitor. – E a de livros?
— As duas ficam no fundo da loja. Você pode se guiar por aqui. – o atendente entregou uma folha de papel negro com o desenho do mapa da loja e a localização de suas várias sessões. – Se você perder o papel, tem sempre um mapa desenhado na parede.
— Ok. Obrigado.
O garoto analisou o mapa e adentrou o labirinto de prateleiras. Não demorou muito para que chegasse às sessões inferiores e encontrasse várias prateleiras com diversos livros. Desde que decidira que não estava louco, que Charles e outros espíritos realmente estavam fazendo contato com ele, Heitor passou a se interessar por ocultismo e pesquisou sobre os lugares mais confiáveis para se informar sobre o assunto. Em suas pesquisas a loja Secrerinto sempre foi citada e muito bem recomendada.
Contudo, não era apenas para se informar mais que o menino havia ido ali naquele dia chuvoso. Era véspera de Natal e ele queria comprar um presente para Charles e Otávia, um que os três pudessem usar mesmo na situação em que se encontravam. Então, após escolher um livro sobre o zodíaco dos mortos, Heitor foi para a sessão de jogos e pegou um tabuleiro de xadrez cujas peças tinham formas de pedras tumulares, sendo lápides simples as mais fracas, e anjos e monstros as mais fortes.
— Mais alguma coisa? – perguntou uma funcionária enquanto registrava o valor dos produtos para a soma da compra.
A menina tinha cabelos brancos e usava lentes amarelas. Ela era tão baixa, que mesmo de pé ela parecia estar sentada. Discretamente, Heitor esticou-se para confirmar que a menina não estava sentada e viu um gato negro com uma penugem branca no peito e olhos vermelhos aos seus pés. Por um segundo, o felino o encarou e pareceu a Heitor que ele estava sorrindo.
— Esse é o Ringo. – disse a menina de cabelos brancos. – É o protetor da nossa loja.
— Claro… - disse Heitor com um frágil ceticismo.
Normalmente ele descartaria qualquer possibilidade da menina estar falando algo real, porém, ali estava ele comprando um jogo de xadrez para jogar com seu “melhor amigo” morto.
— Você é a dona dele? – perguntou o rapaz.
— Melhor dizer que ele é o meu dono.
Heitor riu juntamente com a menina e então esticou sua mão.
— Prazer. Heitor. – apresentou-se.
— Mirela. – disse a menina apertando a mão de Heitor antes que o rapaz pagasse as compras e saísse da loja.
Após sair da loja, Heitor olhou para trás e viu Ringo, o gato de Mirela, parado à porta olhando para ele. O animal moveu a cabeça para os lados, como se reprovasse alguma coisa. Heitor resolveu ignorá-lo e voltou a seguir seu caminho. Ele levantou o capuz de seu casaco, tentando amenizar as consequências de estar andando sob a chuva que assolava Assobiador, um dos bairros mais ricos da Baía de São Sebastião, cidade onde morava. O lugar ficava a apenas algumas estações de Nagameiro, então ele não demoraria muito para chegar ao prédio de Charles.
Heitor atravessou a rua e começou a se dirigir para a estação de trem que ficava a alguns quarteirões dali. Ele estava muito próximo quando sentiu algo esquentar em seu estômago. O rapaz olhou para o lado. Diante da entrada de um beco, havia um homem parado com uma face grotesca. O tom de sua pele era bem escuro, porém seu rosto estava branco como giz. Sangue escorria de seus olhos.
— O que…?
Heitor largou a sacola com suas compras e olhou para baixo. O homem deslizava a lâmina de um canivete, abrindo um sorriso profundo em seu abdômen. Seu sangue começou a fugir em cascatas, desaguando nas poças de chuva. Sua boca tremeu ao procurar palavras, mas não havia pensamentos ou forças para coordená-las.
O garoto caiu no chão, começando a perder a consciência. Sua visão tornou-se vertiginosa e turva, mas ainda assim seu olhar prendeu-se a seu atacante em uma última tentativa de entender o que havia acontecido. O rosto de seu atacante mudou, perdendo sua cor branca e voltando ao normal. Ele soltou a faca e caiu de joelhos no chão, pondo a mão sobre os olhos e gemendo de dor e desespero. Ao seu lado, uma figura se fez visível. Um homem alto de pele alva com olhos completamente negros que choravam sangue. Estava vestido com um sobretudo e segurava uma bengala em uma mão, e uma cartola em outra.
— Feliz… Natal… - congratulou Nepecrapto, sem conseguir conter uma risada deleitosa ao ver os olhos de Heitor fechando-se.

— Charles! – berrou Otávia, correndo até o garoto.
Ambos ainda estavam sob a chuva no cômodo aberto, ainda chorando por Marcus quando de repente o menino caíra no chão, sentindo uma imensa dor em seu peito. Seu esquizograma brilhava como nunca fizera antes.
— O que aconteceu? – perguntou Otávia desesperada, olhando para a marca como se fosse uma ferida aberta da qual precisava manter-se distante para não piorá-la.
— Não sei… - ofegou Charles. – Algo está errado… algo com… com…
O nome lhe veio à cabeça, mas antes que chegasse a língua, tudo ao seu redor se desfez. A névoa que envolvia o prédio deslizou para o seu topo e envolveu Charles e Otávia, levando-os para outro lugar. Quando suas brumas se afastaram, eles não estavam mais no prédio, mas sim em um beco escuro. Charles arregalou os olhos, reconhecendo o lugar da visão que a Velha havia lhe dado uma semana atrás. Na ocasião, ele vira alguém segurando uma faca diante de um corpo caído, porém, não conseguira ver a identidade da vítima.
Podia vê-la agora.
— Não… ele não… - sussurrou Charles correndo até o corpo estirado.
Duas ambulâncias estavam diante da entrada do beco, e dois grupos de paramédicos analisavam dois indivíduos. Um estava se debatendo no chão enquanto cobria seus olhos com as mãos e berrava em agonia e desespero. O outro estava jogado no chão sob uma larga poça de sangue que ficava cada vez maior.
— Ele não está acordando. – disse um dos paramédicos que apertavam um pequeno balão ligado à uma máscara respiratória presa ao rosto do rapaz esfaqueado.
— Hipóxia… o cérebro deve ter ficado sem oxigênio por algum tempo antes de chegarmos. Ele entrou em coma. – disse o outro. – Temos que manter o fluxo dele ativo até chegarmos ao hospital.
Heitor foi posto cuidadosamente em uma maca e levado para dentro da ambulância. Charles não pensou duas vezes antes de segui-lo, entrando no veículo. Ninguém poderia ouvi-lo ou vê-lo, contudo, ele não queria fazer barulho, temia que qualquer som que fizesse estivesse carregado de emoções ruins e fosse nocivo para o rapaz. Então se manteve em silêncio ao seu lado enquanto a ambulância completava seu percurso com urgência.

Otávia retornou ao prédio e foi para a Sala dos Desenhos. Ela olhava para as imagens de todos os moradores do prédio rabiscadas em uma parede. A Velha, que apesar de ser doce e traquila, trazia apenas ruína em seus presságios mudos. As meninas Ava e Ana que haviam sido consumidas pelo fogo dos anjos jamais voltariam. Leonardo que havia se perdido no Mundo Morto talvez nunca voltasse também. Charles que era o único que permanecera, tornava-se cada vez mais distante e sombrio. Renato, sobre o qual um xis havia sido marcado, nunca seria aceito de volta, ou sequer desejaria voltar. E quanto a Heitor… não havia como saber o que seria dele. Uma foto sua estava presa à parede, o único membro vivo daquela família de espíritos. Foi tolice ter achado que ele não seria tragado para aquilo, para o destino amargo daqueles que possuíam Nepecrapto como tutor.
— AH!!! – vociferou Otávia batendo a mão na parede, sobre a sua própria imagem, e então acariciando a imagem de seu namorado.
A garota apoiou a cabeça na parede e chorou, suas lágrimas descendo por apenas um de seus olhos, já que o outro havia sido danificado ao ser torturada pelos anjos. Ela não estava com Charles, mas pode sentir sua dor em sua própria alma. Otávia também amava e sofria por Heitor, contudo, havia sofrimentos ainda maiores e mais antigos dentro de seu coração. Maiores do que qualquer sentimento que ela nutria por qualquer outra pessoa.
A garota se afastou da parede e olhou para o único desenho que a trazia confusão. Um menino gordinho e baixo. Marcus… Otávia sabia que o conhecia, mas aos poucos estava começando a esquecê-lo, logo não conseguiria mais se lembrar do que o garoto significava para ela, ou sentir o que um dia sentira por ele. Era isso que acontecia quando uma alma era obliterada, ela deixava de existir até no coração das pessoas.
Otávia voltou seu olhar para a foto de Heitor, e então para o desenho de Charles.
— Isso acaba agora… - ela usou sua energia e fez com que uma pequena pedra levitasse, como se alguém a segurasse.
Então fez com que a pedra se fincasse na imagem de Marcus, abrindo rachaduras que se alastraram por todos os desenhos de sua família.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo. (22- A Mão Que Afaga)



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