Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 2
Caminhos na Névoa


Notas iniciais do capítulo

Helo people! Meu nome é Vinícius Dramoro e eu sou escritor amador de terror fantástico. Vou deixar semanalmente capítulos deste original por aqui. Espero que gostem!



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Há um perigo em notícias inesperadas. Prevê-las ou desejá-las é um preparo para o que estar por vir, e ,mesmo que cheguem fortes como meteoros, seu impacto é amortecido. As regras haviam mudado, e novos movimentos haviam sido pensados. Uma miragem confortável que não aparece nos desertos do inesperado. Neles não há preparo, não há pensamento, não há conforto. Apenas o impacto seguido pelo incrédulo desespero.
Não era possível que Charles estivesse morto. Estava ali – olhou para o garoto no leito do quarto. Estava ali – olhou para baixo. Suas mãos não estavam translúcidas. Sentia a rigidez de sua própria carne ao se mover, sentia o ar entrar em seus pulmões, sentia, sentia. Então como? Como estaria morto quando continuava tão vivo?
— Não é real. – disse Nepecrapto observando o menino olhar para si mesmo em busca de respostas. – Sensações são apenas o modo como você percebe a si mesmo. Um dia isso irá passar. Um dia. Mas não se engane, garoto. Você não tem um corpo.
Charles colocou as mãos na cabeça e olhou para o leito. Nada daquilo fazia sentido. Nada. Não podia estar morto, mas se não estava, então o que estava acontecendo? Quem era esse homem de cartola? Quem era o garoto no leito? Onde estavam? Por que Charles estava ali? Não era ali que deveria estar… era?
— Tente se lembrar Charles. – disse o ser bizarro. – Você sabe o que aconteceu. Diga-me… como você morreu?
— Eu não morri! – retrucou Charles. – Não morri.
— Como você morreu, Charles?
— Já disse que NÃO MORRI! – berrou Charles com lágrimas nos olhos.
Nepecrapto deu um passo para frente, fincando a bengala no chão com um forte barulho.
— Como, Charles? Como?
— Eu não…
— Como, Charles. Lembre-se! COMO?
O tom do observador embebeu-se em um timbre gutural e pestilento. Ele continuou a se aproximar e a questionar, somando quilos ao ar a cada batida da bengala.
— Você já se lembra, Char-r-les. Apenas diga. Como? Você sabe. Diga! COMO?
— Não! NÃO! – Charles ajoelhou-se no chão e tampou os ouvidos enquanto chorava, mas a voz de Nepecrapto era alta e clara como seus próprios pensamentos. Impossíveis de se ignorar.
O homem parou a um passo de ultrapassá-lo.
— Eles… eles fizeram isso. – disse o garoto trêmulo e ofegante.
— Quem? Quem fez isso? – perguntou Nepecrapto.
Charles olhou para cima e viu o sangue escorrer pelos olhos do observador, assim como fizera naquele momento. No segundo que abraçara Heitor.
— Não sei quem eram. Mas estavam lá… nos olhando. Eles… eles… - Charles ofegou.
— O que fizeram? – Nepecrapto apoiou as duas mãos no topo redondo da bengala e fez uma cara de pena. – O que fizeram com você, Cha-ar-les?
Charles olhou para o corpo no leito. Sabia o que tinham feito. Podia sentir todos os golpes, todos os socos, chutes e pontapés.
— Não paravam. – disse Charles olhando para o rosto inchado e suturado do corpo. – Não queriam parar. Tinham tanta raiva. Tanta…
— Por quê? O que você fez a eles, Charles? – questionou Nepecrapto.
— Não fizemos nada! – vociferou Charles, levantando-se com revolta. – Nada! Eles nos atacaram sem motivo! Não era para isso ter acontecido. Não era!
— Mas aconteceu. – disse Nepecrapto andando até o leito. – E aqui estamos.
O peito de Charles arfava com indignação. Não podia mais negar. Seja lá o que ele fosse agora, vivo, ele não era. Ou era?
— Se eu estou morto, por que não estamos em um necrotério? – indagou Charles olhando para as máquinas que apitavam no quarto. – Por que estou em um quarto de hospital?
— Seu corpo funciona, mas está tão vivo quanto as máquinas ligadas a ele. – explicou Nepecrapto.
— Mas… eu ainda… eu ainda posso acordar. Eu posso voltar.
— Não. Não pode. – contrariou. – Uma vez aqui, não há volta. Seu corpo será mantido até que não o queiram mais, mas você… Já choram por você. Já há luto, mesmo que não admitam.
As palavras de Nepecrapto doíam como um segundo espancamento, não no corpo, mas na alma. Charles ficou parado diante de seu próprio corpo, observando-o respirar por meio de tubos. Seja lá quem havia o atacado, conseguira destruí-lo. E Charles não fora seu único alvo.
— Heitor… - disse erguendo o rosto agoniado. – O que aconteceu com ele? Onde ele está? Onde?!
Nepecrapto olhou para o lado, fitando pensamentos conhecidos apenas por ele. Então, sem virar seu rosto, encarou Charles com olhos trêmulos, o sangue em sua face regredia de volta para seus olhos.
— Isso você tam-bém sabe. – disse o bizarro. – É só ir até ele.
Ele saiu de perto do leito e foi até a porta do quarto, atravessando-a como se fosse apenas uma imagem. Charles o seguiu. Tentou pegar a maçaneta da porta, mas sentiu sua mão arder ao tocá-la.
— Não consigo passar. – disse o menino.
— Imagine que você consegue. – disse a voz de Nepecrapto como se nunca houvesse saído do quarto.
Charles tentou pegar a maçaneta mais algumas vezes, mas foi repelido em todas. Então resolveu seguir a sugestão do bizarro. Fechou os olhos e imaginou a porta se abrindo. Quando voltou a olhá-la, ela já estava aberta. Passou por ela entrando em um corredor, olhou para trás e viu que a porta nunca havia realmente sido aberta. Charles apenas “passara por ela”, como fizera Nepecrapto antes dele.
— É fácil, não é? – disse Nepecrapto encostado à parede ao lado da porta. – Mas não precisa fechar os olhos para imaginar. Você não tem olhos.
Charles ignorou seu último comentário e olhou ao redor. Estavam em um corredor branco que não levava a lugar algum. Ambas as direções, esquerda e direita, estavam forte e densamente enevoadas, e não se podia ver o que havia nelas.
— Onde está Heitor? – perguntou Charles mais uma vez, a preocupação esmagando seu peito.
O pescoço de Nepecrapto tremeu como se ele estive tentando estalá-lo. Algo parecia o incomodar demais.
— Sempre que quiser ver alguém, basta andar pela névoa. – disse entredentes. – Mas cuidado. A névoa só o leva a lugares onde você já esteve, e a pessoas que se lembram de você. Se procurar alguém que já te esqueceu…
O bizarro completou a frase com um sorriso maníaco e mais tremores de pescoço.
Charles não duvidou nem por um segundo que Heitor ainda o tinha em sua memória, e sem hesitação avançou pelo caminho à direita. A névoa o cegava completamente e fazia-o se lembrar da viagem que fizera até a Terra das Pedras, uma cidade serrana nos limites da Baía de São Sebastião. Lá era tão alto que as nuvens tocavam o chão, mas não era possível sentir mais do que a fria umidade ao passar por elas. Aquela névoa era bem diferente de nuvens serranas. Eram pesadas e difíceis de serem transpassadas. Charles movia os braços como se estivesse afastando folhas na mata, mas eram movimentos inúteis. Andava, mas não conseguia avançar.
— Concentre-se, Charles. – disse Nepecrapto como se estivesse ao seu lado. – Foque-se em… nele.
E foi o Charles fez. Concentrou-se em Heitor, lembrando-se dos ótimos momentos que tivera com seu amigo, e, enquanto o fazia, a névoa começou a se dissipar. Logo estava em um corredor muito parecido com o que de onde saíra. Lados enevoados de um corredor e uma porta de um quarto. A única diferença era uma menina parada ao lado da porta, mas Charles a ignorou. Ainda estava no hospital. E essa conclusão acelerou seu coração e seu passo. Ele imaginou a porta do quarto se abrindo e passou por ela rapidamente.
— Não… - disse Charles ao entrar.
Havia três pessoas ali. Heitor estava deitado em um leito hospitalar. Havia hematomas em seus braços e em seu rosto, e seu tórax estava enfaixado, mas ele estava ligado apenas a aparelhos de monitoramento e a um soro. Estava respirando por conta própria, e isso era um alívio. Em um largo banco embutido na parede lateral, um casal estava sentado. Uma alta mulher negra com cabelos muito curtos e enormes brincos dourados, e um homem negro baixinho de barba grande vestido com roupas de igreja. Maria e Hélio, os pais de Heitor. Charles os conhecia muito bem, eram sua segunda família.
Maria sempre fora uma chorona, mas as lágrimas vinham dos olhos de Hélio. Ela mantinha-se altiva e concentrada na respiração de seu filho, não deixando escapar nenhum movimento. Os dois davam as mãos em busca de força em sua união.
— Sinto muito. – disse Charles aos dois, mas eles não o ouviram.
Charles sentia que era sua culpa. De alguma forma ele fora o responsável por aquilo. Se tivesse feito algo diferente… se fosse diferente… Mas não era. Pelo menos Heitor sobreviveria. Mas o que isso significava? Charles não sobrevivera, e ninguém o veria, ouviria-o ou falaria com ele. Estava preso em caminhos de névoa com um estranho de cartola e bengala.
O garoto começou a andar para trás. Sentia a agonia apertando-o, oprimindo-o. Queria ajuda. Mas a quem pediria. Charles olhou para trás e atravessou a porta. Caminhou para a névoa de onde viera. Não houve resistência para criação do caminho, a fumaça abria alas para seus passos, sua mente sabia exatamente quem buscava. O garoto chegou a largas escadas cinza. Desceu-as até chegar a um grande salão. Médicos, enfermeiras e pessoas comuns passavam de um lado para o outro. Charles avançou por eles, desviando de seus caminhos mesmo sabendo que não precisava, até que enfim o avistou.
No fundo do salão havia fileiras circulares de cadeiras, muitas pessoas estavam sentadas ali, seu pai estava entre elas. Júlio sempre fora um homem triste, sofrera muito com a perda da mãe de Fábio, e ainda mais com a de Charles, seja lá o que tenha acontecido com ela, Charles nunca soube. Entretanto, o peso sobre Júlio nunca fora tão imensurável. Ele estava curvado, olhando para o chão. Não chorava no momento, mas havia largos traços de lágrimas secas em seu rosto e sua barbicha estava molhada.
Charles parou ao seu lado e se agachou. Seu pai quase não piscava e não havia mais vida em seus olhos. Era como se fosse outro fantasma, ainda mais morto se possível.
— Pai… - ele disse tentando tocar em seu ombro, queria muito abraçá-lo.
Imaginou que fosse ser repelido, como ocorrera com as maçanetas, mas o que aconteceu foi muito pior. Júlio o sentiu. Não sua mão, mas sua presença. Olhou para cima na direção do rosto de Charles, mas não conseguia vê-lo. Então começou a chorar desesperadamente. Charles afastou sua mão de imediato, esperando consertar o que fez, mas foi inútil. Então ele também começou a chorar.
Ver aquilo doía mais que a própria morte. Era muito mais do que podia suportar. Sem exatamente controlar seus pés, ele andou para longe das cadeiras e foi até duas enormes portas de vidro, a entrada do hospital. Do lado de fora havia uma nova névoa esticada por todos os cantos da visão. Apenas a lua podia ser vista. Um redondo astro cheio com um brilho fantasmagórico de prata. Parecia mais perto do que nunca.
Charles mergulhou no mar de névoa e caminhou por ele sem um destino. Queria que tudo fosse um pesadelo, e que logo acordasse seguro em sua casa. Casa. Ansiava por sua casa. O branco da névoa começou a esvanecer com aquele desejo, e logo Charles se viu diante da porta de sua casa. Atravessou a porta e entrou na cozinha. As coisas estavam fora do comum por ali. Havia dois pratos sujos na pia e mais dois na mesa, um destes estava meio vazio, e o outro completamente cheio.
— Eles me esperaram… - disse Charles para si mesmo vendo o prato de comida à sua espera.
Mas Charles não voltaria nunca mais. Ele andou pela casa, foi à sala, aos corredores, aos banheiros. Observou todos os detalhes de seu lar, detalhes que nunca fizeram a mínima importância para ele, e agora que eram inalcançáveis aprisionavam sua atenção. Então foi até os quartos. Não precisou passar pela porta, pois já estava aberta. Sua cama estava do jeito que havia deixado, com tudo bagunçado e jogado em cima.
Do outro lado, Fábio estava deitado em sua própria cama, provavelmente irritado com Charles por ter feito tanta bagunça. O garoto se perguntava o que seu pai teria dito a ele. O que ele achava que havia acontecido com seu irmão mais velho? Provavelmente haviam mentido, pois Fábio mexia tranquilamente em seu celular, lendo postagens e vendo fotos em redes sociais. Charles se sentou ao seu lado na cama. Fábio estava olhando para foto que tirara de seu irmão naquela manhã.
— Não se preocupe, Binho. – disse Charles esticando a mão para tocá-lo, mas se impedindo no meio do caminho. – Eu não vou deixar vocês… Nunca.
— Melhor não fazer isso. – disse Nepecrapto aparecendo na porta do quarto.
— O que você quer? – perguntou Charles cansado e enraivecido. – Por que não vai embora? Eu não preciso de você.
Pela primeira vez o semblante do homem estava completamente ameno. Sem risos psicóticos, ou espasmos epiléticos no pescoço. Nenhum sinal de brincadeira, loucura ou ironia. Apenas olhos negros no mar gelado de leite que era sua pele.
— Há muitas lições aqui. Eu vou ensiná-las a você, e você vai aprendê-las. – disse Nepecrapto. – Mas essa eu vou deixar que você aprenda sozinho, Charles.
— Que lições? Do que você está falando? – questionou Charles.
— Não pôde viver com eles antes, e não vai poder agora. – disse Nepecrapto andando em marcha ré para fora do quarto. – A morte não pode viver. Saia antes que você machuque alguém.
— Saia você! Vá embora! – vociferou Charles. – Eu vou ficar com a minha família! Ninguém vai me impedir! Ninguém!
Nepecrapto abraçou o silêncio e desapareceu na escuridão. Charles então voltou seu olhar para Fábio. O garoto havia guardado o celular e começava a tentar dormir. Estava bem. Nada aconteceria.

A noite também morreu, e os dias eram sacrificados um após o outro. E logo chegara a vez do décimo primeiro. Era quarta-feira e o sol já começava a baixar. Charles estava sentado na cozinha observando a luz ígnea entrar pelas janelas. Júlio havia sido dispensado por alguns dias de seu trabalho e passava quase todas as horas trancado em seu quarto. Charles não se atrevia a chegar perto dele, não depois do que acontecera no hospital.
Tudo que conseguia fazer era observá-los, especialmente Fábio. O menino reagira muito mal ao estado de seu irmão. Desde que recebera a notícia esteve tão fechado quanto o pai, e ambos mal se falavam. Tudo que Charles queria é que eles sorrissem de novo. Ele ergueu o olhar. Fábio entrara na cozinha e não estava sozinho.
Acompanhando seu irmão encapuzado estava uma garota negra de cabelos alisados e repicados que parecia estar muito desanimada.
— Me dá as suas coisas. – disse Fábio pegando a mochila da menina e levando-a para dentro do quarto.
A garota se sentou à mesa e Charles continuou a observá-la.
— Ágata. – disse Charles reconhecendo a amiguinha de seu irmão. – Ótimo. Mais uma deprimida da vida.
De início os dois estavam muito silenciosos, os dois prepararam um lanche sem muitas palavras e foram para sala assistir televisão.
— Que tal “As Branquelas”? – sugeriu Ágata.
— Eu odeio “As Branquelas”. – respondeu Fábio com uma carranca no lugar do rosto.
Ágata o ignorou e selecionou o filme. Fábio retorceu os lábios durante algum tempo, olhava para o lado fingindo não gostar do filme, mas não conseguiu segurar uma risada ao ouvir uma piada sobre leite-em-pó.
— Eu disse que era legal. – comentou Ágata dando uma cotovelada no ombro de Fábio.
Implicâncias foram trocadas, e houve uma pequena guerra de comida e até que Fábio não conseguir mais parar de rir. Aquilo realmente deixou Charles feliz. Ele se aproximou dos dois, queria estar próximo daquela energia calorosa, queria rir com eles. Mas então, as palavras de Nepecrapto ressoaram em sua memória. “A morte não pode viver”.
Charles então começou a sentir que aquela energia não era calorosa apenas no modo de dizer. A sala começou a esquentar drasticamente e apenas ele parecia sentir. A pele do fantasma ardia.
— Não… não… - disse Charles olhando para si mesmo.
Sua cor começou a ceder, perdendo sua opacidade. Ele saiu da sala às pressas, mas era inútil. A energia viva de Ágata e Fábio inundava todos os cantos da casa como o Sol cobrindo a Terra.
— Não! Por favor… - implorou Charles sentindo-se derreter, mas era inútil.
De pouco a pouco, o fantasma começara a desaparecer.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor me deixe saber para que eu continue motivado a escrever esta história. Até o próximo capítulo!



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