Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 16
A Ágora de Cinzas


Notas iniciais do capítulo

Hello people! Se vocês leram até aqui, acredito que estejam gostando da história. Portanto, continuarei postando capítulos periodicamente. Espero que gostem :)



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…Agora.
Luz verde trouxe em seus lampejos a revelação do passado. Décadas se passaram em segundos pelos olhos de Charles e Leonardo, mostrando-lhes os eventos que motivaram Marcus a trair Vivian Obá e sua legião. Assim que o lampejo verde se dissipou, Charles soltou o amuleto que jazia sobre o corpo falso de Marcus. A corrente de madeira amoleceu e se transformou em barro.
— É falso. – disse Leonardo vendo a corrente de barro se transformar em lama e escorrer até o chão.
Ambos os fantasmas respiraram fundo por alguns segundos, o que lhes pareceu muito estranho, já que estavam debaixo d’água. Charles olhou ao redor, vendo novamente os desenhos entalhados no chão de barro. Muitos deles referiam-se a momentos do passado de Marcus que agora Charles compreendia, assim como ele também entendia o porquê do desespero de seu amigo em relação ao amuleto ser devolvido para Vivian Obá. O feitiço contido no amuleto falso não apenas lhe mostrou o que acontecera, mas também o fez sentir parte do que Marcus sentira na época, o que deixara Charles muito mais abalado e transtornado do que ele já estava.
— Não sei o que pensar sobre tudo isso. – disse Charles apoiando a mão no pé do corpo falso de Marcus. – Não sei se quero continuar com isso. Talvez seja melhor…
O menino de cabelos encaracolados não terminou de falar, mas estava claro para Leonardo o que queria dizer. Mesmo sem entender muito bem o que Vivian havia feito exatamente com aquele amuleto, ele não podia deixar de sentir que devolver o objeto a ela era o mesmo que deixar que ela torturasse crianças por mais décadas, séculos, milênios, ou sabe lá até quando. Será que valia a pena salvar Marcus? O próprio dissera que não, protestando contra o acordo de Charles. Porém, não se tratava mais de Marcus. Charles havia dado sua palavra à bruxa, e se lhe faltasse com ela…
“Não seria muito bom, não é mesmo?” – uma voz ressoou na mente de Leonardo, a voz de Aman.
O fantasma asiático sentiu seu rosto arder no local onde o gato feiticeiro o havia arranhado. Algo gelado se apossava de suas veias e avançava até seu olho esquerdo.
— O que foi? – perguntou Charles vendo o amigo cair de joelho no chão e apertar a mão contra o próprio rosto. – Mas o que…?
O olho esquerdo de Leonardo havia se tornado púrpuro e tomado uma forma felina larga e cintilante. A metade esquerda dos lábios do rapaz se curvou em um meio sorriso seco enquanto a outra se contorcia de dor.
— Olá crianças. – disse Aman através de Leonardo.
— O que está fazendo? Saia do Leonardo! – exigiu Charles irritado.
— Não. Gatos não gostam de água. – declarou Aman. – Além do mais, vocês precisam de mim agora mais do que nunca.
— Eu juro que vou te dar um bom banho depois disso. – ameaçou Leonardo, usando apenas a metade direita da boca. – Mas não vai ser com água…
O único olho que Aman controlava se moveu para o lado, como se ele estivesse olhando para Leonardo.
— Parece que o feitiço de Marcus foi bem efetivo. – prosseguiu Aman voltando a olhar para Charles. – Creio que ele pretendia dissuadir qualquer um que quisesse encontrar o amuleto. Ele usou magia de empatia, mas ao invés de compartilhar sua morte, compartilhou seu ponto de vista. Uma arma perigosa. Mesmo a legião de Vivian Obá provavelmente desistira do objeto após ver o que ela faz com ele.
— Duvido que isso fosse impedir aquela velha. – disse Leonardo se levantando com esforço.
— Não precisaria. Ela é uma submortal, tira energia da morte, mas está viva. – explicou Aman. – Os vivos não podem ir para onde o amuleto está, nem mesmo Vivian Obá.
Charles franziu o cenho, farto de todo aquele assunto, então ele deu as costas para Aman e para Leonardo e empurrou o corpo falso de Marcus para o lado, revelando o alçapão que vira nas lembranças do menino.
— Bem, eu não estou vivo. – Charles segurou a alça do alçapão, pronto para puxá-la, mas foi impedido.
Leonardo segurou seu braço com força.
— Acho que você já tomou decisões impulsivas demais por hoje. Desacelera. – disse seriamente.
Charles encarrancou seu rosto, insatisfeito e irritado, então soltou a alça.
— Onde esse alçapão dá, pulguento? Fala de uma vez. – resmungou Leonardo entredentes.
— Vocês parecem conhecer muito pouco do Mundo Morto, são como bebês aqui, então prestem atenção. Imaginem o topo de uma ampulheta. – silêncio. – Imaginaram?
— Sim. – respondeu Leonardo com a voz arrastada de tédio.
— Esse é o Mundo Vivo, a superfície da ampulheta, é onde a névoa fica, e onde a maioria dos fantasmas permanece. Contudo, ao contrário do que muitos pensam, o Mundo Vivo não é a origem de tudo, mas sim o fim. Agora me digam, se o topo da ampulheta é o fim, onde é o começo?
Silêncio.
— Na base. – respondeu Charles.
— Errado. – respondeu Aman imediatamente. – A base e o topo foram criados ao mesmo tempo, o que significa que a origem de ambas é…?
— O centro… ok. E daí? – irritou-se Leonardo.
— Há milhares de milhares de milênios atrás, apenas o centro da ampulheta existia, uma massa de pura energia. Porém, em algum momento, essa energia “vazou” do centro e se espalhou pela superfície, assim criando o Mundo Vivo. Como reação oposta, nas profundezas foi criado o Mundo Morto, e nele habitam os Lordes da Morte. Estão acompanhando até aqui?
Charles já havia ouvido falar sobre os Lordes da Morte em pedaços de conversas, porém, nunca entendera de verdade o que eles eram.
— Muito bem. – continuou Aman. – Retomando: Temos uma ampulheta, o topo é o Mundo Vivo, onde estamos agora. O centro é a origem dos mundos, é lá que fica o que vocês chamam de “Céu e Inferno”, mas não vamos falar disso agora. E a base da ampulheta é o Mundo Morto, é nele que estão os Lordes da Morte, e é lá que Marcus escondeu o amuleto, especificamente no lar de um dos Lordes.
“Há vários detalhes sobre isso tudo que são irrelevantes agora, mas eis o que precisam: - continuou Aman. – Um dos Lordes da Morte mais antigos é o Holocausto, o Lorde dos Corpos. Ele é responsável por todos os corpos dos mortos, e os mesmos estão ligados a ele. Por isso, em cada templo de cada fantasma há uma passagem que leva até a Ágora de Cinzas, o lar de Holocausto. Foi lá que Marcus escondeu o Amuleto de Moloque, e é para lá que o alçapão leva.”
Charles e Leonardo ficaram em silêncio por alguns segundos, processando toda a informação nova que haviam ouvido. Desde que morrera, Charles vira coisas cada vez mais insanas, e mesmo que a explicação de Aman intencionasse dar algum sentido a tudo aquilo, ele apenas se sentia mais confuso, o que o deixava ainda mais frustrado. Novas perguntas se formavam em seus pensamentos com a mesma velocidade que a vontade de não saber as respostas. Se pudesse, deitaria em uma cama e se enfiaria debaixo de grossas cobertas e dormiria por meses, isolando-se de tudo e de todos, mas nem sequer podia dormir.
— O que mais de útil você sabe sobre esse lugar? – perguntou Leonardo, quebrando o silêncio.
O rapaz paulista piscou seu olho esquerdo, e quando o abriu ele já não estava mais púrpuro.
— AH! Mas que gato maldito! – vociferou Leonardo com ódio. – Alguma barraquinha vai ter carne extra pra fazer churrasquinho depois disso.
Então seu olho esquerdo piscou novamente, retomando uma cor púrpura e aspectos felinos.
— Nossa conexão está acabando. Serei breve. – disse Aman com o olho arregalado. – Não deixem que os ocos os toquem. Voltem por onde entraram. E acima de tudo não confiem em…
O olho esquerdo de Leonardo piscou mais uma vez, dissolvendo a conexão com Aman e voltando a seu estado normal. Antes que tivessem tempo de processar as últimas instruções do gato, Charles liberou um pouco de magia de empatia para a mão de Leonardo que o segurava, fazendo com que o garoto sentisse como se alguém tivesse batido em sua mão com uma marreta.
— AH!!! – gemeu Leonardo soltando Charles e balançando a mão no ar. – Mas que merda, Charlie!
Charles puxou a alça do alçapão e abriu o portal, revelando uma esfera densa e negra. As cores de tudo que estava ao seu redor pareciam estar sendo distorcidas e sugadas aos poucos pela esfera, e ao mesmo temo cuspidas de volta pela mesma.
— Vamos. – disse olhando para a esfera negra. – Não temos mais o que fazer aqui.
Leonardo segurou a mão machucada e olhou para Charles. O menino estava cabisbaixo e sério. O doce jovem, gentil e carinhoso que Marcus e Otávia haviam trago para o prédio abandonado estava aos poucos desaparecendo, e Leonardo não fazia ideia de quem iria tomar o seu lugar.
— Ok. Vamos. – concordou Leonardo se reaproximando de Charles e segurando sua mão. – Juntos.
O menino de cabelos encaracolados acenou com a cabeça em concordância. Então os dois fantasmas pularam para dentro do portal, sendo tragados pela esfera negra.
Leonardo sentiu como se estivesse dentro de um oceano completamente negro, o que era irônico, já que estava dentro d’água antes de entrar no portal e não sentira nada. A sensação era extremamente gelada, de forma que se estivesse vivo, morreria de novo. Após alguns segundos, a situação se inverteu, tornando tudo ferventemente quente e seco. Era tão luminoso que Leonardo ficou sem enxergar por vários minutos. Quando finalmente recuperou a visão, preferiu ter continuado cego.
Ambos os fantasmas estavam em um corredor largo e escuro. Uma cúpula invertida pendia no teto como um pequeno lustre, era feita de pedaços de vidro e cristais vermelhos que refletiam feixes de luz pelo corredor, dando certa iluminação ao lugar.
As paredes e o chão não eram feitas de pedra, metal, ou qualquer outro tipo de material inorgânico, mas sim de ossos. Fileiras e fileiras de esqueletos estavam empilhados uns em cima dos outros, dando forma a estrutura do corredor. Próximo a Leonardo e Charles, havia um esqueleto pequeno com ossos bem gastos e finos. Em sua boca havia uma esfera negra igual a do portal pelo que passaram, porém sete vezes menor. E em suas mãos jazia uma corrente de madeira, o verdadeiro Amuleto de Moloque.
— Marcus… - sussurrou Charles olhando o esqueleto. – Esse é o verdadeiro corpo dele… se isso é possível.
— Vamos pegar o amuleto e ir embora. – disse Leonardo tirando o amuleto das mãos do cadáver.
Os fantasmas se colocaram de pé e olharam para baixo. Através dos espaços dos ossos, podiam ver que abaixo dos esqueletos também havia corpos com menores níveis de decomposição. Um dos lados do corredor levava a mais corredores, e o outro levava a uma abertura larga e semicircular. Charles se aproximou da abertura, sentindo os ossos sob seus pés gemerem, e então viu o que havia além. Eles estavam em uma espécie de desfiladeiro. Duas enormes faces se erguiam, ladeando um caminho de terra a centenas de metros abaixo de Charles. As faces do desfiladeiro tinham como base corpos ainda não decompostos, e seguiam para cima conforme o nível de deterioração aumentava. Para que lado que olhasse, não conseguia ver o fim do desfiladeiro e nem o começo.
— Charles, melhor deixarmos esse lugar enquanto podemos. – disse Leonardo se aproximando.
Charles olhou para trás, para ver Leonardo, então o puxou pelo braço e se jogou com ele para fora do corredor, caindo pelo desfiladeiro. Como eram espíritos, não morreram com a queda, mas sentiram ondas de dor espatifando todos os seus ossos astrais.
O céu acima deles era feito de nuvens escuras e cinzentas da quais cinzas eram salpicadas como neve. Trovões vermelhos se acendiam e se apagavam em sua massa escura, revelando momentaneamente o que havia ao redor. Leonardo olhou para os lados e viu inúmeras aberturas nas imensas faces do desfiladeiro. Não havia mais como saber qual era a de qual vieram. Estavam perdidos.
— Por… quê.…? – perguntou Leonardo com esforço enquanto seus ossos se recompunham.
Charles ficou em silêncio deitado no chão de terra, olhando para cima. Quando finalmente haviam se recuperado, ele se levantou e disse:
— Tinha alguém atrás de você.
— Como assim tinha alguém atrás de mim? – resmungou Leonardo se levantando também.
— Não sei explicar direito. – disse Charles olhando ao redor. – Era um… corpo, eu acho. Mas… diferente.
— Você não está falando coisa com coisa.
Charles arregalou os olhos e puxou Leonardo pela jaqueta de couro, então apontou para frente.
— Ali… foi aquilo que eu vi.
Leonardo seguiu sua indicação e viu um ser estranho andando ao longe no caminho de terra. Ele parecia um esqueleto, mas ao redor de seus ossos havia uma membrana translúcida e azulada que lhe dava uma silhueta humana. O ser translúcido saiu do caminho de terra e entrou em algum lugar na face esquerda do desfiladeiro. Atrás dele, vieram outros seres. Alguns destes eram como o primeiro, esqueletos envoltos pela membrana azulada, outros tinham apenas órgãos dentro da membrana, ou possuíam pele e carne em algumas partes de seu corpo.
— Que ótimo. – disse Leonardo rindo de nervoso. – Isso é mesmo fantástico.
— O que foi? – perguntou Charles sem tirar os olhos da trilha de seres translúcidos.
— Temos menos de dois dias para entregarmos o amuleto àquela velha, e aqui estamos: em um mundo bizarro feito de corpos, com coisas estranhas que eu não faço ideia do que são, e sem saber onde fica a saída. Por que eu não trouxe uma garrafa de cinquenta e um?
— Eu sei como chegar à saída. – disse Charles com um sorriso seco enquanto mantinha seu dedo apontado para a fila de seres.
Leonardo franziu o cenho e apertou os olhos enquanto começava a entender o que Charles queria dizer.
— Não… não, não, não. Nós não vamos seguir essas coisas. Não mesmo!
— É o único caminho. – Charles abaixou a mão. – Elas estão entrando em algum lugar, e uma delas estava no nosso corredor, se as seguirmos talvez consigamos voltar para ele.
— Isso é bem arriscado. Você já notou o tamanho desse lugar? Podemos…
— Léo, eu estou indo. Você pode ficar aqui e tentar escalar os corpos se quiser.
Dito isso, Charles deu as costas ao amigo e começou a seguir o caminho de terra. Leonardo cerrou os punhos com raiva e o seguiu.
— Ok. Mas vamos tomar cuidado. O gato disse para não deixarmos “os ocos” nos tocarem. Não sei se ele estava falando dessas coisas, mas de qualquer jeito vamos manter distância.
— Que seja. – Charles deu de ombros.
Os dois fantasmas andaram sorrateiramente pelo caminho até estarem bem próximos da fileira dos seres translúcidos. Eles se dirigiam para uma entrada na face esquerda do desfiladeiro parecida com a abertura da qual Charles e Leonardo haviam caído, porém feita de corpos nus e recém-mortos. Olhando para os seres de perto, Leonardo notava que eles não tinham rostos, apenas duas cavidades fundas no lugar das narinas. Um deles, que possuía um rim e apenas a parte inferior de seu esqueleto, virou a cabeça na direção dos fantasmas e dilatou as narinas, como se estivesse sentindo o seu odor.
Leonardo pegou na mão de Charles e o puxou para trás, afastando-se do ser translúcido até que ele perdesse seu rastro. A criatura então ficou parada olhando ao redor até que fosse a última da fila que não havia entrado na abertura do desfiladeiro, quando se deu por vencida, seguiu suas companheiras.
— Vamos. – disse Charles avançando.

Os meninos seguiram a fila de criaturas pelos corredores de corpos durante horas. De vez em quando, a fila achava uma escada, também feita de corpos, e subia por ela, chegando a novos corredores feitos por corpos mais decompostos. Eles continuaram nessa marcha até finalmente chegarem ao nível de esqueletos.
— Será que estamos muito longe? – perguntou-se Leonardo. – Demos tantas voltas que nem sei.
— Temos que subir mais. – disse Charles tateando os ossos do chão. – Esses esqueletos estão muito conservados, o de Marcus estava bem gasto, afinal, ele morreu há mais de sessenta anos.
— Então vamos continuar… - bufou Leonardo.
Os dois continuaram a seguir a fila de criaturas. Esta por sua vez entrou em um compartimento completamente diferente dos outros. Ao invés de mais um corredor, ou escada reta, os seres translúcidos começaram a subir por uma escadaria espiral de esqueletos. Havia espaços nas paredes da escadaria que lembravam janelas, e dentro de cada um deles havia uma pira de terra e fogo. Charles e Leonardo esperaram mais até que as criaturas estivessem bem mais distantes deles, pois naquele ambiente, seria mais fácil para elas sentir o seu cheiro.
Quando quase não podiam mais vê-las, os dois fantasmas começaram a subir.
— Acho que subimos demais. – disse Leonardo olhando ao redor. – Só há ossos negros e queimados aqui. Já passamos do “andar certo”.
— É esse o caminho, fazer o quê? Vamos continuar subindo.
— Vou te bater.
Depois de mais algumas horas, Leonardo e Charles finalmente chegaram ao fim da escadaria. Os degraus terminavam ao chegar ao topo do desfiladeiro, em sua imensa vastidão de ossos negros e finos. O lugar estava completamente coberto de cinzas que caíam de nuvens bem próximas dali.
— Eu vou realmente te bater, Charlie. – resmungou Leonardo olhando ao redor.
A extensão do lugar era imensurável e eles estavam tão longe do caminho que ficava entre os lados do desfiladeiro, que este nem podia ser visto. Quilômetros à esquerda, Leonardo conseguia ver um inclinação das nuvens de cinzas, como se estivessem descendo do céu. Todos os relâmpagos vermelhos pareciam vir da inclinação e percorrer o resto do horizonte.
— Que estranho. – disse Charles olhando para si mesmo. – Estamos cobertos de cinzas. Não era pra essas coisas atravessarem a gente?
— O pulguento disse que aqui é o Mundo Morto. Talvez não sejamos intangíveis aqui. – supôs. – achei que você já tivesse notado isso depois que nos fez espatifar no chão.
— É… não reparei. Tinha tanta coisa acontecendo. – Charles olhou para si mesmo. – Isso não é bom.
— Até que enfim você falou algo com sentido. – Leonardo olhou ao redor. – Que merda é essa?
Em vários lugares ao seu redor havia aglomerados de criaturas translúcidas Formavam círculos ao redor de algo, mas Leonardo só conseguia ver direito o círculo mais perto. Um poste de ossos com dez metros de altura estava no meio das criaturas, e em seu topo havia alguém preso por cordas feitas de cabelo. Assim que Leonardo olhou para o prisioneiro, caiu de joelhos.
— Vó…? - disse ele vendo uma mulher idosa e asiática em roupas pretas sorrindo para ele.
— Pai…? – disse Charles ao lado de Leonardo, o que fez com que o rapaz paulista olhasse para ele.
— “Pai”? Aquela é minha avó, não seu pai. – disse Leonardo.
— Não é não. Aquele é o meu pai. – contrariou Charles.
— Por favor, ajudem-me. Libertem-me. – disse a avó de Leonardo chorando.
— Temos que tirar meu pai dali. – disse Charles olhando para a imensa quantidade de seres translúcidos que se reuniam ao redor do poste.
— Já disse que… - Leonardo se conteve, discutir não seria útil. – Ok, Charlie. Vamos tirar seu pai dali.
Filas e mais filas de criaturas saíam de diversos lugares diferentes e se uniam ao círculo. Os corpos bizarros pulavam desesperados tentando alcançar a avó de Leonardo, mas não conseguiam. Não havia muito que ser feito por ela. Não sabiam do que aqueles seres eram capazes, mas Aman alertara-os para não tocá-los, o que tornava a magia de empatia pouco eficaz, e mesmo que não fosse o caso, os seres estavam saindo de dezenas para alcançar centenas. Não tinham como enfrentar tantos.
— Temos que distrai-los. – disse Charles dando um passo à frente. – Eu vou primeiro, quando eles sentirem o meu cheiro, vão vir atrás de mim, aí você corta as cordas.
— Charles… - Leonardo estava pronto para trazer sensatez à discussão, mas o garoto imprudentemente começara a correr.
Assim que se aproximou, metade dos seres bizarros olhou para trás, dilatando as narinas enquanto sentia o cheiro de Charles. Eles esticaram os braços para frente como crianças pidonas e começaram a correr atrás do garoto.
Leonardo massageou suas próprias têmporas, tentando controlar a raiva que sentia do menino naquele momento, então se concentrou no que estava à sua frente. O grupo de seres havia perdido três quartos de sua população, deixando apenas algumas poucas dezenas. Leonardo esticou o braço e se lembrou do momento em que fora atropelado, o que causara sua morte. Deixou que as lembranças revivessem sensações e que as sensações fluíssem por seu corpo.
Após alguns segundos, seu braço estendido começou a se parecer com estática de televisão, tremeluzindo e chiando. Leonardo então fez com que toda aquela energia se concentrasse na palma de sua mão, criando uma pequena esfera ovalada. A massa de energia estática se agitou até estourar, lançando toda a energia para frente como uma lufada de vento. A magia de empatia de Leonardo atingiu as criaturas e o poste, fazendo com que todos sofressem o mesmo que ele ao ser atropelado.
Vários seres caíram no chão e tiveram seus corpos esmagados, o que estourou suas membranas, deixando o que estava em seus interiores jogado sob o chão de esqueletos negros. O poste de osso e as cordas de cabelo se partiram, derrubando a avó de Leonardo no chão ósseo.
— Pai!! – berrou Charles que ainda corria das criaturas. – Vá para dentro!!
Leonardo viu sua avó se erguer e correr em sua direção para a entrada da escadaria.
— Vó… - começou a dizer Leonardo, mas foi interrompido por uma tapa na cara deferida pela velinha.
— Acorde! Eu não sou sua vó, humano. – disse a velhinha com um timbre gutural. – Vamos, acorde!
Leonardo piscou os olhos várias vezes até que a imagem de sua avó se desfez. No lugar dela havia uma criança negra com traços tribais e romanos. Ela tinha o queixo e a testa pintados com lama branca, e tinha negra ao redor dos olhos. Vestia uma toga de seda negra com bordados dourados e usava um colar de cabeça de sementes. Seus olhos pareciam ser feitos de um horizonte avermelhado.
— Vamos, temos que sair daqui. Acorde! – disse a criança.
Leonardo balançou a cabeça e olhou para Charles.
— Ele está perdido, deixe-o. – pediu o menino puxando o braço do fantasma.
— Não. É você que eles querem. É você que eles vão ter. – disse Leonardo irritado. – Aqui! Charles, aqui! Vem pra cá!
— Se me ajudar a fugir dos ocos, eu levo vocês aonde quiserem. – ofereceu o menino.
— Então comece a correr. – disse Leonardo vendo Charles se aproximar dele com uma multidão de ocos enlouquecidos em seu encalço.
Assim que Charles os alcançou, os três entraram na escadaria, mas ao invés de descê-la normalmente, Leonardo pegou o menino no colo, segurou a mão de Charles e se jogou no vão redondo no centro da escadaria espiral. O impacto fez com que o chão de ossos se partisse e que a queda continuasse até que pisassem em corpos que ainda possuíam carne. Os corpos sobre os quais os fantasmas e o menino caíram estouraram como balões, deixando que suas entranhas podres se espalhassem por cima dos outros corpos que compunham o chão. Acima deles, as várias paredes de ossos que perfuraram se emendaram, reformando magicamente as estruturas dos corredores.
— Acho que isso é o suficiente. – disse Leonardo arfando.
— Não, não é. Eles ainda podem sentir o meu cheiro. Vão demorar, mas vão achar um caminho até aqui. – disse o garoto.
— Pai! É você mesmo? – perguntou Charles abraçando o menino.
Leonardo os separou, sorriu e chutou o rosto de Charles com força.
— Como prometido. – declarou satisfeito.
Antes que Charles pudesse ficar irritado, ele olhou de novo para o menino, vendo-o da forma como ele era de verdade.
— Curumim!! – berrou Charles apontando para o menininho.
— Até que enfim acordaram. – disse o menino. – Sou Verlael, o Demônio da Saudade. Prazer em conhecê-los, humanos. Obrigado por me libertarem.
— Explique-se. – disse Leonardo irradiando magia de empatia na palma de sua mão e apontando para o rosto do demônio. – O que são aquelas coisas, por que você estava preso, o que elas queriam com você e por que vimos nossos entes queridos?
O menino olhou ao redor, ouvindo o barulho de passos.
— Essas coisas são “ocos”, corpos que sentem falta de suas almas então saem à procura delas. Demônios da Saudade têm perfumes muito potentes, por isso o Lorde dos Corpos nos aprisiona e nos usa como isca para atrair os ocos e impedir que eles o incomodem. Quanto ao que vocês viram ao olhar para mim… bem, meu perfume faz com que humanos vejam aqueles de quem tem mais saudade. Sinto muito pela decepção.
— “Demônios da Saudade”? Existe mais de um de você? – perguntou Charles.
— É claro. Eu sou feito de milhares de milhares. Somos todos um só, porém divididos, assim como é com todos os outros demônios. – explicou Verlael.
— Que seja. Você disse que me ajudaria a chegar onde eu quisesse se eu te ajudasse. Está na hora de cumprir a sua promessa, senão… - Leonardo aproximou ainda mais a palma da mão do rosto do demônio.
— E aonde vocês querem ir? – perguntou Verlael.
— Embora. – respondeu Leonardo. – Queremos que ache o corpo de onde viemos.
O curumim fechou os olhos e respirou fundo, como se estivesse se concentrando em algo.
— Marcus… Santana… Almeida. – disse o demônio abrindo os olhos. – É esse o nome do corpo?
— Sim. Sabe onde está? – questionou Charles.
O demoniozinho fez que sim com a cabeça e pediu para que os dois o seguissem. O novo caminho se prolongou por mais algumas horas, seguindo uma marcha que ascendia pelos corredores até que finalmente chegaram ao nível certo.
— Estamos quase lá. – disse Verlael.
Ele os liderou até que chegassem ao final de um corredor. Ao invés de mais entradas, ramificações ou bifurcações, havia uma porta de osso em seu fundo. O pequeno curumim puxou-a e a abriu.
— É aqui. – disse o menininho.
Aquele certamente não era o caminho correto. Leonardo estava pronto para usar sua magia de empatia contra o demônio, mas antes que pudesse fazê-lo, viu sua avó no lugar do menino.
— Não machuque meu pai! – vociferou Charles segurando o braço de Leonardo.
— Não vou… - disse Leonardo confuso. – Não vou…
Os dois fantasmas seguiram o demônio e atravessaram a porta. O Leonardo e Charles se viram no que parecia ser o centro daquele lugar. Estavam novamente no caminho que ficava entre as duas faces do desfiladeiro. O seguimento de terra havia se encurvado para cima até alcançar seu topo, onde altas torres de chaminés feitas de mosaicos coloridos de vidro se erguiam. Alternando suas alturas, tendo sempre uma torre mais alta ao lado de uma mais baixa, as estruturas formavam uma imensa circunferência. De suas fendas saíam fumaças densas que davam origem as nuvens de cinzas que cobriam todo o desfiladeiro de corpos.
O Demônio da Saudade continuou a guiar os espíritos. Diante dos três havia uma torre mais alta que todas as outras. Havia uma abertura semicircular em seu centro pela qual o caminho de terra avançava. Verlael entrou pela passagem, seguindo o caminho de terra, e os dois fantasmas vieram atrás. Dentro do círculo de torres, havia um átrio perfeitamente redondo também feito de mosaicos de vidro de todas as cores. Acima deles, as nuvens de cinzas comportavam-se como um vórtice, sendo jogadas para todos os lados e deixando uma área central completamente vazia. Nela podia se ver uma forte luz vermelha alaranjada que batia como um coração, lançando relâmpagos vermelhos pelas nuvens.
O lugar era tão extenso que lembrava Leonardo um estádio de futebol. Ele continuou seguindo o pequeno demônio, entorpecido pelo seu perfume angelical. Conforme se aproximavam do centro, estátuas de barro e terra se revelavam com formas que não eram parecidas com nada que o rapaz já tivesse visto em vida ou em morte. Quando finalmente chegaram ao centro do lugar, Leonardo parou de se mover, sentindo seu sangue ser substituído pelo próprio medo.
O caminho de terra terminava quando vários degraus circulares começavam. Eles se elevavam em trezes níveis no centro exato do átrio. Em cima dele havia um homem de costas com vestes índigas e tranças crespas e brancas que iam até o chão. Ele se virou para os três e revelou um rosto tão negro quanto o vácuo do espaço. Suas narinas eram muito abertas, assim como sua boca era muito grossa e carnuda. A esclerótica de seus olhos era tão negra quanto sua pele, e suas íris eram safiras brutas.
. A tensão que assolava o coração do fantasma ascendera a novos e desconhecidos patamares. Leonardo não precisava que ninguém lhe dissesse quem o homem era
— Ora, ora… - disse o homem com um timbre grosso, grave e imponente. – Tenho visitas afinal.
Apenas um tipo de ser poderia causar tamanho temor com apenas sua presença.
— Bem vindos à Ágora de Cinzas, minha humilde casa. – disse Holocausto.
A presença de um Lorde da Morte.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor me deixe saber para que eu continue motivado a escrever esta história. Até o próximo capítulo (17- Os Contos de Alquebrar)!



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