Deus dos Erros escrita por Dramoro


Capítulo 14
O Oceano Afogado


Notas iniciais do capítulo

Hello people! Se vocês leram até aqui, acredito que estejam gostando da história. Portanto, continuarei postando capítulos periodicamente. Espero que gostem :)



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Às vezes a força era como uma nuvem. Em um momento estava em determinado lugar, de determinada forma. No outro já havia se mudado, ou encolhido, ou até se dissipado. As pessoas podiam ser tão fortes em certos momentos, e tão fracas em outros… era algo imprevisível. Charles se questionava quais seriam seus momentos de força, pois, até então, só havia sido fraco e inútil. Ele esticou a mão direita e a viu tremer como estática, assim como Leonardo fizera ao enfrentar os necranis dias atrás. O menino havia tentando recriar o mesmo ato. “Empatia”. Fora assim que o ensinaram. A habilidade de um fantasma de passar os traumas de sua morte para outro ser. Ao ver sua mão em estado estático, Charles sentia que podia enfrentar qualquer um, a energia que se concentrava em seus dedos era empolgante. Mas, assim como as nuvens… desaparecia. Quando ele finalmente teria poder?
— Quanto tempo? – perguntou Leonardo que assistia Charles do outro lado do estacionamento.
— Dez segundos. - respondeu Charles. – Desta vez.
— Continua uma merda. – comentou Leonardo com sinceridade. – Você está avançando tão devagar que eu nem chamaria de avanço.
— Obrigado pela motivação. – agradeceu Charles olhando para trás.
A hora de colocar seus planos em prática estava próxima. Os dois fantasmas estavam no estacionamento do prédio abandonado, assim como Otávia e a Velha. Leonardo estava sentado no chão ao lado de um barril de metal preenchido com lixo e chamas. A Velha fitava as chamas como se elas falassem com ela, e visto que ela era uma espécie de profetiza, talvez estivessem falando mesmo. Otávia por outro lado estava oculta nas sombras de uma das pilastras. Longe das chamas, ela olhava para o chão, ancorando a mente em outro lugar e tempo. Um comportamento que virara hábito desde que soubera sobre o julgamento de Marcus. Algo a incomodava ainda mais que aos outros. Entretanto, os quatro esperavam por mais dois membros daquele mórbido clã. As duas últimas peças para sua ousada façanha.
— Eles estão subindo. – disse Otávia levantando o rosto.
Duas pessoas entraram no espaço através da entrada para escada de incêndio. Não estavam mortos como resto, apesar de um deles cheirar como um cadáver. O Maquinista, o indigente que morava no prédio com os fantasmas, chegara ao estacionamento e não estava sozinho. Heitor vinha ao seu lado, carregando sacolas cheias de fast food e refrigerante.
Charles sentiu-se feliz e triste ao ver seu melhor amigo. Por mais que seu coração regozijasse com sua presença, seus olhos não podiam deixar de se afligir com sua aparência. Heitor estava magérrimo, com olheiras profundas e pupilas dilatadas. Marcus uma vez contara a Charles que interagir com os mortos tinha o seu preço para vivos comuns. Toda vez que Heitor contatava Charles e os outros, parte de sua energia era levada para aquele mundo de névoas. Como um sangramento espiritual. Heitor não admitia, mas Charles sabia que ele estava usando drogas para aliviar o processo. Nenhuma pessoa conseguiria estar na presença da morte com tanta frequência em seu estado normal.
Até mesmo o Maquinista seguia essa regra. A única razão que o fazia aguentar morar ali sem falecer era o acidente que sofrera quando era mais novo. Otávia contara que o menino tentara escapar da polícia subindo em um vagão de trem, mas foi eletrocutado pelas linhas de energia e caíra nos trilhos. O espírito do menino vagara por Nagameiro durante um dia, durante o qual ele conhecera Marcus e os outros fantasmas do prédio. Mas assim que esse dia acabou ele milagrosamente acordou, embora sem escapar de cicatrizes e árduas sequelas. O acidente lhe rendeu o apelido de Maquinista, e desde então ele passou a morar naquele prédio de assombrações.
— Você se lembra do que tem que fazer? – perguntou Heitor apontando para a fogueira.
— Sim. – respondeu o Maquinista olhando para as sacolas de comida. – Chamar. Ardina.
— Isso. – confirmou Heitor colocando a mão em seu ombro. – Você consegue. Vai lá.
Nepecrapto dissera que apenas os protegidos de Ardina poderiam encontrá-la, mas Charles suspeitava que isso se aplicasse apenas aos mortos. Talvez o Maquinista pudesse fazê-lo. Ele se aproximou da fogueira para começar o rito. Normalmente, quando o Maquinista invocava um dos fantasmas do prédio, ele precisava acender uma vela e dizer a última coisa que a pessoa fez antes de morrer. Mas como não conhecia a tutora de Marcus, muito menos sabia como ela morrera, precisaria de um sacrifício maior. O rapaz tirou um canivete do bolso e abriu um pequeno corte na mão. Derramou seu sangue no fogo e recitou:
— Ardina. Ardina. Ardina…
O fogo pulou para fora da lixeira e subiu ao teto, apagando-se no mesmo segundo. Então um brilho pálido se formou. Nas trevas do estacionamento, uma silhueta branca se aproximou. Heitor não conseguia vê-la, mas podia sentir sua presença com muito mais intensidade que sentia as dos outros. O Maquinista por sua vez via apenas um borrão branco perto da lixeira, e todos os outros a viam perfeitamente. Uma mulher pálida como neve com cabelos loiros que eram tomados pelas formas de tranças a partir da altura da orelha até a das costas. Seus olhos estavam cobertos por um tom amarelado, e suas íris eram brancas e circundadas com vermelho, como se ela houvesse sido estrangulada até suas veias oculares estourarem.
Apesar disso, a mulher trazia uma sensação primaveril. Usava um vestido branco que lhe cobria até os joelhos. Seu tecido estava salpicado de flores campestres que apreciam e desapareciam na parte inferior do vestido. Uma cinta de espinhos negros apertava-se ao redor de sua cintura. Assim que começou a andar, o concreto sobre seus pés tornou-se vermelho, como se estivesse manchado de sangue, e voltou ao seu tom original ao estar distante da mulher.
— Você é Ardina? – perguntou Charles. – Você é a tutora de Marcus?
Ardina sorriu como uma mãe que pensava saudosamente em seus filhos, olhou pra todos que estavam ali e então se entristeceu.
— Não mais. – disse com uma voz que parecia um sussurro delicado do vento. – Marcus cortou nosso laço há muitos anos.
— Isso é possível? – quis saber Otávia com uma inquietude repentina.
— Não de verdade. Mas ele me pediu para deixá-lo, e eu respeitei sua decisão. – explicou Ardina. – Nunca o esqueci, apesar disso.
Otávia voltou a ficar cabisbaixa. Decepcionada com a resposta. Charles entendia o porquê. Se Otávia pudesse cortar sua ligação com Nepecrapto, seria a primeira coisa que faria.
— Então você ainda se importa com ele? – perguntou Leonardo.
— Claro. – respondeu Ardina olhando para Heitor e para o Maquinista. – E mesmo que não me importasse, é meu dever protegê-lo.
Os dois vivos não podiam vê-la, mas podiam ouvi-la.
— Então nos ajude. – pediu Charles. – Ele foi preso por Vivian Obá, e o único jeito de salvá-lo é…
— Devolvendo o Amuleto de Moloque. – completou Ardina. – Eu sabia que esse dia chegaria. Marcus me procurou assim que fugiu da legião. Pediu que eu o aconselhasse.
— Então você sabe onde está o amuleto? Sabe onde ele escondeu? – perguntou Leonardo.
— Sei onde ele pretendia escondê-lo. – a chama da lixeira começou a retornar em pequenas labaredas. – Eu lhe disse que o lugar mais seguro para se esconder algo, era no seu próprio necrotério.
Leonardo, Otávia e Charles se entreolharam.
— Marcus morreu afogado. – disse Otávia. – Ele nunca foi enterrado. Como vamos achar esse lugar?
— Ele se afogou em um rio há sessenta e sete anos. – a imagem de Ardina começou a desaparecer conforme as chamas aumentavam. – Na época, o rio ficava perto de um aglomerado de barracos em Teópolis. Procurem por lá. E por favor… - sua imagem desapareceu, deixando suas palavras como um adeus. -… salvem meu menininho.

Os fantasmas se prepararam para partir. Não havia muito que dizer depois daquilo. Sabiam onde procurar, restava decidir quem participaria da busca.
— Os vivos não podem entrar em necrotérios, não são uma opção. – disse Otávia olhando para Heitor que dava comida para o Maquinista, o menino estava tão faminto que chorava ao comer.
Leonardo olhou para Heitor e depois para Charles, então disse:
— Concordo. Mas e você, Otávia? E é claro que a Velha não pode ir, mas e você, Otávia?
— É claro que eu vou. – Otávia enrijeceu a postura e ergueu o queixo. – Qualquer coisa por Marcus.
— Isso seria tolice e descuido. – disse outro alguém que até então não havia sido notado.
Vivos e mortos olharam para a lixeira em chamas. Um gato negro saíra das sombras e entrara na luz. Seus olhos eram púrpuros.
— Você… - rosnou Charles reconhecendo o gato que fizera parte do julgamento de Marcus.
— Meu nome é Aman Jaques, prazer. – apresentou-se o gato. – Antes que me perguntem, estou aqui para auxiliá-los em sua busca. Devo alguns favores a Marcus então…
— Mentiroso! Você ajudou a condená-lo. – bravejou Charles.
— Charles, ele esteve aqui antes dos mascarados acharem Marcus. Não se lembra? Esse gato provavelmente tentou avisá-lo. – interveio Leonardo. – Como você pode nos ajudar?
— Para começar, impedindo que vocês levem mais alguém nessa missão. – continuou o gato. – Restam três dias para que vocês entreguem o amuleto, assim que o conseguirem eu vou levá-los até Vivian Obá. Contudo, ela conhece apenas vocês dois. Se vir mais algum protegido de Marcus… bem, ela é imprevisível. Pode usar isso contra vocês de alguma forma.
— Isso parece paranoia. – comentou Charles.
— Não é. Não é mesmo. – disse Otávia com uma certeza sólida. – Marcus me contou muitas histórias sobre essa mulher. Melhor nós termos cuidado extra com esses detalhes.
— Exatamente. – concordou Aman. – Acredito que isso encerre o seu debate. Vamos de uma vez.
— Claro. – disse Leonardo indo até Charles e apoiando a mão em seu ombro.
Como sempre, Charles tinha muitas perguntas sobre tudo aquilo, mas achou melhor seguir o fluxo das decisões de seus amigos.
— Tudo bem. – disse ele andando em direção às escadas de emergência. – Vamos…
Antes que desse mais um passo, a Velha correu até ele e segurou sua mão. Charles sentiu como se estivesse caindo, um frio o puxava pelo estômago enquanto tudo começava a mudar ao seu redor. O estacionamento e todos que estavam nele derreteram como manteiga aquecida. As cores do mundo se mesclavam e se separavam, reorganizando-se para o nascimento de um novo cenário.
Charles não conseguia mais olhar para si mesmo, era como se ele fosse apenas uma presença no novo local. Vozes sussurravam-lhe vindas de todos os lados, mas ele não conseguia compreendê-las, então prendeu sua atenção aos acontecimentos. Ao invés do interior de um prédio, o espaço agora era em um beco urbano. Chovia muito e a luz solar tentava penetrar o estreito espaço, porém conseguia apenas chegar à sua entrada. Alguém estava à espreita no limite da escuridão, alguém segurando uma faca cheia de sangue. Havia um corpo jogado sob a luz, seu sangue começava a invadir o beco, e quando Charles estava prestes a descobrir sua identidade, tudo mudou novamente.
O menino agora presenciava outra situação. O local era uma praia. As luzes crepusculares do final de um entardecer banhavam a areia e carregavam suas cores rapidamente para o outro lado do mundo. Havia vários esqueletos jogados no chão, mas algo chamou a atenção de Charles de imediato. Não muito longe do limite da maré, ele podia ver um menino de cabelos encaracolados em tons de castanho claro. Estava de costas, mas Charles sabia que estava vendo a si mesmo. O menino da visão estava sendo abraçado por alguém, porém seu rosto estava coberto por uma máscara de osso com um olho de cristal quebrado. Quando tal indivíduo soltara o garoto e estava prestes a retirar sua máscara, o tempo de uma nova visão chegou.
Charles não via mais uma praia, mas sim um quarto fechado cuja única iluminação era feita por um círculo de velas. No interior do círculo, olhos completamente brancos encaravam Charles de igual para igual, como se fossem dois expectadores, um olhando para o outro, sem fazer parte da cena de verdade. Charles queria perguntar quem ele era e o que estava acontecendo, mas antes que o fizesse, as velas se apagaram e a escuridão tomou uma nova forma.
Desta vez, o menino conseguia ver a si mesmo. Ele estava em cima de uma colina de areia e terra que tinha o formato de um rosto adormecido muito parecido com o seu. A face abriu os olhos e a boca de maneira brutal. A terra começou a ser sugada para as duas crateras que eram seus olhos. Ao mesmo tempo, ratos, insetos, vermes e cobras saíam delas. A boca se abrira até rasgar suas bochechas, criando rachaduras horizontais no chão. E chamas explodiram a cima do rosto. Charles tentou recuar para longe daquele semblante monstruoso, mas foi engolido por sua boca e voltou a se ver no estacionamento. A Velha o largara.
Todos estavam muitos chocados para falar alguma coisa, contudo, a velha profetiza não havia terminado seu trabalho. No espaço de chão que a separava de Charles, seis versos foram delineados como rachaduras. Todos se aproximaram para ler, exceto Charles. O menino por sua vez se afastara e sentara em um dos degraus da escada de incêndio, ainda processando tudo que vira.
— Ela te mostrou, não foi? – disse Aman se aproximando com o olhar estreitado. – Está gravado na sua mente, não está?
Charles tapou os olhos com a mão e acenou a cabeça em confirmação. Finalmente entendera os sussurros, eles cantavam em sua cabeça como uma música-chiclete que se recusava a se calar.
— Àquele que crê, veias abertas. Ao que não vê, a morte certa. – enquanto falava as visões repassavam em sua mente. – O toque amigo quer consolar; Mas seu destino é lhe roubar; Na alma tumular, faz seu enterro; Para subjugar um deus dos erros.
— Isso… muito bem. – disse Aman voltando seu olhar para a Velha. – Ela lhe deu uma oportunidade, rapaz. Coisas terríveis estão para acontecer assim que sairmos daqui, somente ela as conhece, mas só você pode mudá-las.
— Eu? Eu?! – raiva e frustração elevavam a voz de Charles. – Sou a pessoa mais inútil desse lugar. Tudo o que eu fiz até agora foi atrair o perigo e ver as pessoas com as quais eu me importo pagarem o preço, mesmo depois morto isso não mudou. Como eu poderia fazer alguma coisa?
— Não sou responsável por aliviá-lo de suas frustrações e feridas emocionais. Apenas estou contando o que sei. A profetisa não passa os versos para outra pessoa à toa. Reflita sobre o que você viu e ouviu, preste atenção a tudo que acontece e tente não decepcioná-la.

Aos poucos a vida de um morto, ou seja lá como aquilo pelo que passavam se chamava, afetava uma pessoa como a luz do sol afetava a pintura dos carros. Aos poucos ela se destruía, deixando camadas cruas de seu âmago à mostra. Leonardo podia ver isso acontecendo com Charles. Há quase dois meses o menino se juntara àquele grupo de mortos, de início, ele era amável, dócil e gentil. Mas cada dia que passava, Leonardo podia senti-lo amargando. Agora, o fantasma de cabelos encaracolados estava mais fechado e irritadiço do que nunca. Leonardo nem tentara fazê-lo falar sobre a profecia por muito tempo. A primeira de suas perguntas já havia sido respondida com um grande insulto e uma declaração firme de que o menino não iria comentar sobre o assunto. Depois disso, Charles saíra de imediato do prédio e entrara nas névoas.
Como nenhum deles nunca havia ido a Teópolis, tiveram que pegar o caminho normal dos vivos. Entraram em um trem, depois em um ônibus e por fim chegaram à comunidade. O lugar era bem diferente do que Ardina o fizera parecer. A favela de Teópolis podia já ter sido apenas um aglomerado de barracões, mas isso era passado. Vários edifícios brancos e residenciais de altura média se organizavam em fileiras retas. Cada prédio possuía uma espécie de loja ou comércio em seu primeiro andar, de modo que toda a comunidade se transformara em um grande centro comercial.
Ladeando sua extensão, alguns conjuntos de casas mais simples, ainda com tijolos descobertos, porém coloridos, se apertavam uns nos outros. A favela seguia um fluxo de subida por muitos quilômetros, e depois despencavam em vastas e numerosas escadarias. Não havia nenhum barraco por perto, ou sequer um rio. Então tiveram que vasculhar o lugar. Leonardo, Charles e Aman andaram por horas, e quando o céu começava a se tornar alaranjado, encontraram algo.
— Só pode ser aqui. – disse Leonardo olhando adiante.
Os três estavam parados em uma calçada. Uma pequena ponte ondulada erguia-se sobre uma faixa de água suja e enegrecida repleta de lixo e com margens infestadas de ratazanas.
— O rio se tornou um valão. Como tudo nesse estado. – resmungou Leonardo. – Que saudades de São Paulo.
— Você não é do Rio de Janeiro? – perguntou Charles de forma apática, como se ao mesmo tempo em que estivesse curioso, também estivesse completamente desinteressado.
— Conversem depois, rapazes. – disse Aman atravessando a rua. – O rio está encoberto pelos pavimentos. Tornou-se parte do esgoto. Mas ainda podemos encontrar o lugar.
— Como? – questionou Leonardo. – Ele morreu há quase setenta anos, se sobrou alguma coisa dele, já deve ter parado no mar, ou pior.
— Obviamente. Mas não precisamos achar o corpo. Quando uma pessoa morre nas águas e seu corpo de perde, seu templo passa a ser no local onde ela teve seu último segundo de vida. – explicou Aman. – Está aqui em algum lugar debaixo do bairro.
— Vamos ter que nadar então. – disse Charles avançando pela ponte e pulando na água venenosa.
Leonardo arregalou os olhos de surpresa e tirou os óculos escuros, espantado com a imprevisibilidade instável de Charles. Ele sentia pena do garoto, queria poder ajudá-lo mais a passar por tudo aquilo, mas sabia que boa parte dos fatores que levavam Charles a ter mais dificuldades em se adaptar àquele mundo, era o fato de ainda estar em contato com os vivos. Ele não havia aprendido a se desapegar deles. Enquanto não fizesse isso, estaria sempre em uma batalha interna, lutando para estar em ambos os mundos, o que era basicamente a definição de todos aqueles que cederam ao esquizograma. Aquilo não se chamava de marca dos divididos sem motivo.
— Você… bem, hã…
— Gatos não nadam. Esperarei aqui. – informou Aman coçando a orelha. – Tome cuidado. Marcus passou décadas conosco. Ele sabe uma coisa ou outra de magia. Deve ter protegido o lugar. Agora desça aqui.
Leonardo se agachou e então Aman arranhou sua bochecha esquerda.
— Ai! Por que você fez isso? Gato maldito!
Aman fechou os olhos e deitou no asfalto ainda aquecido pelo dia, não daria nenhuma resposta. Sem mais opções, Leonardo saltou da ponte e imergiu nas águas do valão. Se estivesse vivo, o empuxo de Arquimedes retardaria sua queda e tentaria mantê-lo na superfície da água, mas como Leonardo não possuía corpo… ele foi direto para o fundo. Seus pés tocaram um terreno pedregoso e arenoso. Havia diversos tipos de objetos espalhados pela água, muitos deles apodrecidos. Mesmo para os mortos aquele era um lugar nocivo, pelo menos para seus bem-estares.
Charles não parecia querer ficar na inércia. Leonardo olhou ao redor até encontrar o fantasma de cabelos encaracolados andando pelo canal de água poluída, a procura de algum rastro ou pista que os levassem ao templo de Marcus. Ele andou até o menino como se a água não tivesse poder nenhum sobre ele, o que de fato não tinha, uma vez que apenas estava ali apenas em espírito.
— O gato falou para termos cuidado. Marcus pode ter protegido o local com magia, ou algo assim. – disse Leonardo, mas Charles o ignorou.
— Quando seguimos Marcus pela névoa, você conseguiu sentir a energia dela formando um caminho. Acha que consegue fazer isso de novo? – questionou Charles olhando ao redor.
— Não sei. O rastro de Marcus estava fresco, mas ele morreu aqui há sessenta e sete anos, não deve ter sobrado nada da energia dele. – tentou explicar. – Sinceramente não sei como vamos achar esse lugar. Tudo que podemos fazer é vasculhar toda a extensão do rio.
— Não. – disse Charles com uma confiança inédita. – Ele deixou um rastro. Tenho certeza.
— Como pode ter certeza?
— Se ele escondeu o amuleto no rio, então não faz sessenta e sete anos que ele veio aqui. E eu não me lembro de ter visto nenhuma máscara de chacal no prédio. Acho que Marcus a tinha escondido aqui também. O que significa que ele pode ter pegado a máscara daqui e depois voltado para as linhas de trem, e isso não faz nem uma semana. Tem de haver um rastro.
— Mas nós seguimos o rastro dele naquela noite, ele foi direto para as linhas de trem. – revidou Leonardo.
— Sim, mas ele chegou lá bem antes de nós. E se ele tiver vindo aqui depois de ter escolhido o local no qual queria lutar, pegado a máscara e depois voltado para as linhas de trem? Nós nem saberíamos, porque quando chegamos às linhas de trem, Marcus já havia voltado e não precisávamos mais segui-lo.
— É possível. – concordou Leonardo com a lógica na hipótese de Charles. – Bem, de um jeito ou de outro, vamos ter que dar uma de Procurando Nemo. Vamos.
Leonardo e Charles começaram a andar. O canal parecia ser estreito quando visto do lado de fora, mas ali embaixo era um panorama diferente. Havia uma vasta extensão de água venenosa que se esticava para todos os lados. Metros e metros de distância dos dois fantasmas, a água encontrava grandes canos e se misturava ao esgoto. Leonardo esperava ter acabado com a busca antes de chegar a tais lugares.
O rastro de Marcus viera como uma sensação familiar. Leonardo fechara os olhos para se concentrar, e então sentira. Uma memória veio-lhe a mente. Marcus conversava com Otávia e Renato, o namorado de Otávia que já vivera no prédio há anos atrás. Leonardo se absteve da conversa, como era de seu repertório solitário. Não achava que alguém se importava com sua distância, mas ainda assim, encontrava o olhar de Marcus enquanto o menino falava com os outros. Era algo leve e sutil, mas incisivo e penetrante. Uma forma de dizer “Não pense que eu me esqueci de você. Eu estou de olho.” Algo quase paternal. Era essa a sensação que Leonardo tinha na presença do garoto, era o que sentira quando o seguira pela névoa, e o que sentia agora.
A teoria de Charles não demorou a se provar verdadeira. Leonardo seguiu a “sensação”, caminhando para locais nos quais ela era mais presente até que enfim ela se tornou gritante. Havia achado o lugar.
— É aqui. – disse Leonardo olhando para o nada que havia entre ele e uma entrada para o esgoto.
— Não vejo nada, como pode ser aqui? – questionou Charles.
Como se o próprio valão o respondesse, uma silhueta brotou diante dos fantasmas. Era como se fosse uma miragem, linhas de luz fazendo com que a água ficasse mais clara em algumas partes, como se estivesse tocando alguém. A silhueta lembrava Charles a um menino baixo e gordinho que estava se debatendo dentro da água, até ser tomado pela inércia e cair até o fundo.
— Vamos. – disse Leonardo segurando a mão de Charles e o puxando em direção à silhueta.
Assim que a tocaram, tudo mudou. Uma vibração de liberou no ar e desfez a imagem do rio submerso. Ainda estavam na água, porém, não era suja e venenosa como antes, mas limpa e cheia de vida. Pequenos peixes nadavam por ela. Charles olhou ao redor e arregalou os olhos com a surpresa. O Templo de Marcus era completamente diferente do seu. O chão era feito de barro que se elevava em vários pontos criando uma mobília. Mesas, cadeiras, sofás. Todas espalhadas e cheias de objetos por cima, em sua maioria fotos. Elas retratavam momentos da vida do menino. Ele com outras crianças, com alguns adultos. Sorria naquelas nas quais estava brincando no meio de árvores, perto de um rio, e ficava emburrado em todas nas quais estava diante de um complexo de barracos.
O chão também possuía informação. Estava repleto de desenhos, como os que crianças deixam no barro usando gravetos. Eles pareciam contar uma história, como hieróglifos, mas Charles não conseguia entender qual. Porém, uma chamara muito sua atenção. Um menino de palitos estava de braços abertos ao lado do que deveriam ser cachorros. Atrás dele havia o desenho do rosto de um gato. Pequenas ametistas foram forçadas para dentro do chão, dando uma cor violeta aos olhos do felino.
— Esse deve ser aquele gato fedido. – disse Leonardo sentindo o arranhão que Aman fizera em seu rosto coçar. – Parece que Marcus o defendeu.
— É, parece. – concordou Charles. – Temos que procurar pelo amuleto.
Charles voltou a olhar ao seu redor. O Templo de Marcus era completamente estranho. Ao longe, podiam ser vistas grossas colunas brancas que se erguiam de dois lados e se encurvavam até se encontrar em um ponto bem no alto. Em cada lado, havia uma espécie de membrana translúcida quase triangular. Depois de algum tempo, Charles percebeu que aquelas eram as formas de pulmões dentro de uma caixa torácica. Pulmões inundados de memórias e águas.
— O corpo dele está ali. – disse Leonardo apontando para algo.
Logo abaixo do esterno, o osso central da gigantesca caixa torácica, uma cama de barro tinha o corpo de um menino como hóspede. O corpo de Marcus, preservado naquele templo exatamente como era quando tivera sua alma tomada pela morte. Charles e Leonardo se aproximaram do corpo. Nas mãos do menino estava um colar feito de elos de madeira negra com um pingente de material semelhante que lembrava um bebê em posição fetal.
— Algo está errado. – disse Leonardo. – Está fácil demais.
— O amuleto. – disse Charles esticando a mão. – Vamos pegá-lo.
— Espera Charlie!
Leonardo segurou a mão de Charles, tentando impedi-lo de segurar o amuleto, mas o menino já havia o tocado, e assim que o fez, um lampejo verde saiu do amuleto e envolveu os dois fantasmas, aprisionando-os em algum feitiço antigo e poderoso.


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Notas finais do capítulo

Se você gostou por favor me deixe saber para que eu continue motivado a escrever esta história. Até o próximo capítulo (15- Os Filhos da Água)!



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