Deixo - Ernesto e Ema escrita por Anne Liack


Capítulo 2
O Nascer do Sol


Notas iniciais do capítulo

Quem conhece a música (Deixo) sabe que a história deveria ter acabado no capítulo anterior, mas "infelizmente" eu tenho um faniquito com finais súbitos e sem explicações. Então lá vamos nós...



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Ema abriu os olhos, o feixe de luz que escapava na fresta da cortina denunciando que já era dia. O coração doendo angustiado no peito e as mesmas lágrimas sobre a face. Toda manhã, o mesmo estado: angústia, saudade e arrependimento. Solidão. Os móveis do quarto em madeira rústica escura, as paredes num tom escuro de verde, tudo tão opaco, tão sem vida. Ela passara a ter certa aversão ao sol quando percebeu que ele era o responsável por afastá-la de Ernesto, porém ele era a única coisa vivaz naquele quarto, e ela precisava de energia. Levantou-se e abriu as cortinas deixando o maldito invadir todo o espaço. Mirando pela janela o bosque ainda quieto. Os pássaros já não mais cantavam em harmonia. Cada um em seu ritmo e à distância que suas asas podiam impô-los uns dos outros.

Engoliu seco, enxugou as lágrimas e foi para ao toucador, não dava para fugir, o dia começara.

Desceu as escadas da velha mansão do parque, e como era quase rotina lá estava o marido, largado no sofá de entrada. Simplesmente ignorou-o e passou para a sala de jantar. Os outros já estavam presentes.

— Bom dia! - cumprimentou ela. Ao que a família respondeu, ela sentou-se.

— Conseguiu acordar seu marido? - perguntou-lhe o almirante. - Eu poupei-me do trabalho de tentar. - acrescentou.

— Fiz o mesmo que o senhor. - respondeu ela.

— O que houve com Edmundo? - perguntou Rômulo. 

— Não viu o seu irmão largado dormindo no sofá da sala? - perguntou o almirante.

— Não! - estranhou Rômulo. - Você percebeu? - perguntou ele a Cecília que constrangida, provavelmente pela amiga, apenas balançou a cabeça em negativa.

Ema acreditava piamente nos dois. Divagou enquanto servia-se de chá... Rômulo e Cecília eram tão apaixonados que muitas vezes quando estavam juntos perdiam a noção de tempo e espaço. Às vezes ela tinha a impressão que para eles eram só os dois no mundo. Uma cumplicidade que ela jamais sonhara em ter na vida. Mas que tivera um dia. A cumplicidade de conhecer alguém apenas com o olhar, de conversar com os olhos e de esquecer-se de tudo ao redor. Parecia algo até divino. 

— Fani! Mande alguém levá-lo para cima! - disse o almirante à empregada que estava parada ao seu lado. - Podemos receber visitas a qualquer momento, e seria um ultraje tal visão.

— Sim, senhor! - ela disse, e saiu para obedecê-lo.

Ele pigarreou.

— Você não pretende fazer nada a respeito? - perguntou-lhe ele.

— Perdão? – disse Ema, quando percebeu que ele se dirigiu a ela. 

— A situação de seu marido. - completou, altivo. - Isso não é admissível, Ema! Esse casamento deveria ajeitar as coisas.

— Lamento almirante, mas o senhor por certo errou o alvo! - ela falou no mesmo tom dele. - Quem deve ajeitar-se é seu filho e não eu a ele.

— Ora... Mas, é você a esposa dele, não é?

— Sou a esposa e não a mãe. Muito menos o pai! - a tensão se instalou e o almirante pareceu um tanto abismado com a acusação da nora. - Também o seu filho já é maior de idade, e deve saber bem o que anda a fazer. Por que haveria eu de me preocupar com isso?

— Porque seu marido passa as noites na alcova, se embebedando e comprando prostitutas...

— Papai! - reclamou Rômulo. 

— Não se envergonha disso? - continuou o almirante, visivelmente frustrado e irritado.

— Ele deveria se envergonhar! Fiquei imune ao falatório do povo quando meu marido escandalizou nossa festa de casamento agarrando um das irmãs de sua própria cunhada, praticamente a vista de todos. Depois disso almirante, creio que nenhuma vergonha possa atingir-me mais. - disse, porém evitou olhar Cecília e Rômulo, os olhares de piedade despertavam nela a maior vergonha de todas, vergonha dela mesma. Terminou o seu chá num único gole. - Vou fazer umas visitas hoje. Com licença! - anunciou e saiu em seguida. Deixando a mesa num silêncio lamentável. 

Eram assim seus dias. Quando não os passavam enfurnada no quarto sufocante, saía sem rumo pelo Vale. Sim, sem rumo. Falara ao almirante que não se envergonhava, não mentira, porque não se envergonhava do marido, mas se envergonhava dela própria, sempre. Então, quem haveria de visitar? O simples fato de seu passear pela cidade era acompanhado de olhares, sussurros e comentários. As suas melhores amigas estavam morando em São Paulo. Assim, seus dias eram imensamente entediantes, até porque eram sempre acompanhados de uma tristeza e uma saudade infinita. Então ela saía por aí em prol de encontrá-lo em qualquer lugar daquele Vale que a todo canto a lembrava dele, e isso com certeza era melhor que nada.

Ela se viu diante da cachoeira, passou a manhã ali, olhando o lago, sentada no maldito tronco. Lembrando-se. Lembrando-se dele. Com o coração aos pulos, como um prisioneiro desesperado encarcerado numa cela apertada, perto de perder a sanidade. E era assim aonde quer que ela fosse. Tudo o lembrava. E nessas lembranças ela sentia-se miseravelmente feliz, pois era apenas onde podia senti-lo. Depois da cachoeira tomara o caminho que tinha feito em seu sonho em direção ao topo do Vale. Tão igual. Às mesmas árvores do bosque, exatamente iguais ao da noite anterior. Mas, não tinha o cheiro, ela fechava os olhos tentando, suplicando para sentir o cheiro amadeirado, misturado com o da relva, mas este não lhe vinha. Seus olhos encheram-se d'água. Os dias eram torturantes.

E ali parada na frente daquele precipício, que nunca lhe parecera tão convidativo como agora. Lembrou-se dele mais uma vez.

"Sabe o precipício que Elisabeta sugeriu?" - perguntou-lhe ele. - "Podemos pular juntos, de mãos dadas!" - Ela podia ouvir a voz rouca em seu ouvido, tanto que se arrepiou. Podia ver a intensidade do olhar dele, lhe dizendo: “Você tem a mim.” 

Maldita! Maldita a hora em que ela não se atirou junto com ele no bendito precipício, com ele ela sabia que voaria. Agora, se o fizesse só lhe restara espatifar-se nas margens da ferrovia. E pra que? Tanto morta quanto viva, não ia fazer diferença. Morta, porém, deixaria de sentir. Deixaria de sofre. Só lhe faltou o que sempre lhe faltara, coragem! Ela sentia o vento açoitar-lhe o rosto secando suas lágrimas. Era o máximo de alento que teria ali.

Tomou o caminho de volta e foi-se em direção a fazenda. Fazenda Ouro Verde que não era mais dela, ao longe desde o pasto observou a casa grande. Conhecia aquela casa como a palma de sua mão, fora lar de suas meninices e das descobertas de sua juventude. Em sua mente, caminhou até seu antigo quarto, e mais a frente observou seu primeiro beijo, e ele lá novamente, perambulando por sua mente. Aquele beijo. Ela não precisava da imagem de seu quarto para vê-lo, estava cravado em sua mente, e não apenas na mente, em seus lábios: era doce, suculento... aquelas sensações ninguém, nunca poderia tirar dela. Seu peito mais uma vez em brasa e saudade... O que tinha feito a sua vida?? 

Não suportando mais sua tortura voltou para casa. Sabia que não teria descanso de seus sentimentos lá também, mas ela precisava distrair-se ou enlouqueceria. Cecília muitas vezes o fazia conversando ou contando-lhe uma resenha do último livro que lera, enquanto Ema tricotava qualquer coisa. Aprendera a gostar das conversas com a ela, era o único que a salvava da solidão, e ela agradecia imensamente a presença da cunhada. Demorou, demorou muito, mas caíra à noite quando deixaram o alpendre da casa e voltaram para dentro. Era o momento do dia que Ema sentia uma ponta de felicidade. 

— Fora anunciado a data do casamento de Mariana e Brandão! Creio que você já estava sabendo, cunhada! - disse Edmundo à mesa do jantar. 

— De fato sabia que era para logo, mas ainda não tinham decidido a data! - respondeu Cecília.

— Pois bem, já se decidiram. - continuou ele. - Daqui a um mês! 

— Creio que esperaram já tempo demais - comentou o almirante. - Daqui a pouco sua irmã iria ficar falada, tanto tempo de "namoro". – disse a Cecília, e fez as aspas com as mãos à menção da palavra namoro. 

— Creio que minha irmã não estivesse se importando com o falatório. - interveio Cecília, que aprendera a se colocar diante das empáfias do sogro. - E sim no tempo certo para ela. Pôs como vêem, o tempo certo chegou.

Rômulo sorriu orgulhoso. E Ema recordou-se de certa conversa sobre o tempo em seus sonhos:

"Mas, de que importa o tempo agora? Está vendo o nascer do sol? É constante. Não importa o que fazemos durante as vinte quatro horas do dia, sabemos que no final, ou talvez no começo, ele estará lá. Assim deve ser o amor, baronesinha. Constante. Confiante. Ter fé. Fé no amor. Que não importa o que passe em nossa vida, o amor sempre será o nosso final, ou talvez o nosso começo."

Seria assim para Mariana, não importava o tempo, o amor estava sendo seu final. Não, estava sendo seu começo. Pensou, enquanto não via à hora do dia acabar, ou começar. Não via a hora de se esconder nos cobertores de sua cama fria e mergulhar na realidade abrasadora onde tinha Ernesto e o amor dele.

— Ao que parece será uma grande festa, muitos convidados... - continuou Edmundo. - Como você não está à frente disso? - perguntou a esposa. - Quando a conheci ainda tinha a fama de casamenteira, não precisa se aposentar só porque encontrou seu par ideal. - sorrindo meio debochado, ele enrolou o dedo num dos cachos de cabelos dela, lhe causando embrulho no estômago. 

— Se Mariana precisar de ajuda poderá contar comigo, obviamente. - respondeu simplesmente.

— Sei que ela precisará - disse Cecília. - Havia me falado em sua última visita! Mas, adianto que com duas de nós em São Paulo, por certo teremos trabalho dobrado.

Ema sorriu fraco, pensando que em outros tempos estaria esfuziante. Cecília a acompanhou, compreensiva!

— Será divertido! – incentivou ela. - Além do mais com o casamento poderemos rever os queridos. Por certo virá uma comitiva de São Paulo.

Ema sorriu novamente. Mas, não se animou.

— Mal posso imagina a alegria de sua mãe. Agora só faltará Lídia! 

— A que mamãe achou que seria mais fácil, tornou-se a mais difícil. 

— Como soube de tal notícia tão intima que nem Cecília estava sabendo? - perguntou Rômulo ao irmão.

— Ouvi de um soldado de confiança do coronel. Aonde? Não me pergunte, pois não convém! - respondeu emborcando o cálice de vinho.

Ele nem precisava dizer onde, todos sabiam que provavelmente soube na noite anterior, em alguma casa de alcova. 

— Pois bem, quando Mariana solicitar me avise Cecília, terei muito gosto em ajudar. - disse Ema. - Agora, se me permitem a licença, vou recolher-me.

— Mas, tão cedo? – perguntou-lhe a cunhada, preocupada. - E você mal comeu, Ema?

— Acho que tomei sol demais hoje, estou enfadada e um pouco enjoada! - levantou-se.

— Se precisar de alguma coisa, avise Ema! - solicitou Rômulo.

— Agradecida! Mas creio que não precisará. Com licença! 

— Desse jeito ela acabará ficando doente! 

Ela saiu da sala a tempo de ouvir Rômulo comentar, o sogro ainda falou mais alguma coisa, mas ela não se importou, se encaminhou para seu quarto, porém antes de fechar a porta fora impedida pelo marido que a havia seguido.

— Não está se sentindo bem? - perguntou ele, adentrando no quarto, esbanjando um ar de propriedade sobre o recinto.

— Só estou cansada! 

Ele se aproximou dela.

— Quão cansada? - ele lhe acarinhou a face e Ema engoliu seco a bili em sua garganta.

— Muito cansada! – foi enfática.

— Justamente hoje, que eu havia decidido não sair está noite?! - o coração dela inquietou-se.

Afastou-se dele, dando-lhe as costas.

— Ema, eu sei que combinamos um casamento de aparência, mas...  - ele aproximou-se dela novamente, Ema sentia a respiração dele em sua nuca. - Mas, somos casados. Isso é imutável - a voz dele era óbvia. - Estaremos casados para sempre. Uma hora ou outra você vai precisar de...

— Das minhas necessidades cuido eu, Edmundo! - ela afastou-se novamente. - Cuide das suas que já é o suficiente!

— É o que eu estou tentando fazer! - ele suspirou um sorriso tanto debochado. - Você é como uma doce e linda flor, ou uma fruta saborosa e suculenta que eu não ousaria tocar para não perder seu encanto, mas... - o coração de Ema estava disparado, medo e reconhecimento. Medo do marido. Reconhecimento de uma lembrança de Ernesto e de seus beijos, ela jurara que ninguém substituiria o gosto dele em seus lábios. -  Ainda é minha esposa. - pontuou Edmundo. - Estamos casados há quase um ano e até então eu venho cumprindo o combinado, mas pense Ema... O nosso casamento durará, não apenas um ano ou dois. Acha mesmo que pode continuar intocada por todo esse tempo ou pelo resto da vida?

Ela engoliu seco novamente. O precipício era mais que convidativo agora. Mediu a que distância estava da janela do quarto, se fosse rápida talvez conseguisse chegar a tempo antes de ele alcançá-la. 

— Esse foi o combinado! - disse, a voz tremula.

— Ora Ema, Cecília tem seus problemas, dificilmente dará um filho a Rômulo e se um dia puder fazê-lo com certeza não será tão cedo! Meu pai já está cobrando um herdeiro. - ele explicava calmamente como se ela fosse uma leiga nas palavras. - Ele não vai mais forçar muito de Rômulo, já que sabemos o estrago que a sanidade de minha amada cunhada é capaz de fazer. - Ema o fuzilava com os olhos. - Então só resta a mim. 

— Acha que é tão simples assim? Criar um filho? - perguntou ela, tentando controlar a exasperação.

— Não se preocupe com a criação, dinheiro não faltara poderá ter quantas babás quiser, não precisara se envolver com fraudas suja ou educação. Além disso, o velho mimará ainda mais você se lhe der o herdeiro que ele tanto quer.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

"Que vocês tenham logo um filho. Um não, vários! Família grande é uma dádiva." Ouvira a voz de Ernesto falando a Jane e Camilo.

 E ela, naquela noite sonhara com os filhos deles dois, cabelos negros, todos espevitados e atrevidos, correndo numa casa com quintal, escalando a macieira do jardim.

— E eu ouso dizer que poderei fazer o mesmo, se for à boa esposa que imagino que seja! - sentiu o marido segura-lhe os braços a tirando de seus devaneios.

— Solte-me, Edmundo!

— Por que fugir do inevitável, Ema?!

— Solte-me ou vou gritar!

— Não se atreveria.

— Você pretende me forçar, é isso?! - ela arregalou os olhos, crispando para ele, o pânico tentando se apossar dela.

— Jamais! Posso ser um 'bon-vivant', mas não um desgraçado.

— Então me solte e, por favor, saia do meu quarto! - as lágrimas já escorriam em sua face.

— Tudo bem - ele a soltou estendendo os braços em rendição. - Tudo bem, trataremos desse assunto outra hora. Quando você estiver menos... cansada! Tenha uma boa noite, querida! Que eu partirei para esbórnia, e mais feliz ainda que com a sua autorização. - ele lhe soltou um aceno no ar e saiu.

Ema largou-se na cama, num choro descontrolado. Infeliz realidade! Maldita realidade a que escolhera para ela. Em prol de quê? Por quê? Aprendera que não podia se responsabilizar por tudo e por todos. Ernesto tinha razão: "Você não acha que está se dando importância demais? Quem perdeu o dinheiro de sua família foram o seu avô e seu pai, por incompetência nos negócios. Não por causa de sua promessa por mais honrosa que ela seja!" Ele lhe dissera, na época brigara com ele, agora ela viu que ele estava certo! E maldito era o seu arrependimento. Porque seu pai estava casado com Julieta, retomando então os negócios da família, e seu avô, já havia lhe escrito dizendo que planejara comprar de volta a Fazenda, estaria mais feliz impossível quando o fizesse. Enquanto ela estava ali, desgraçadamente infeliz, e sem perspectiva de um dia sê-lo novamente.

Levantou-se, trancou a porta do quarto, se trocou e apagou as luzes, encolheu-se debaixo dos cobertores na esperança que as lágrimas pesassem mais seus olhos e com isso o sono viesse mais depressa. Ela passou a orar pelo sono. Orava todas as noites para que ele viesse rápido, que não a fizesse esperar tanto. Ela só queria dormir. Era só o que queria. Dormir e não mais acordar. Dormir e que o sol não nascesse. Dormir e tê-lo. E enquanto enfim, lentamente  ia perdendo a consciência, tudo nela sorria, o coração acelerava... Ele estava próximo! 


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Notas finais do capítulo

Infelizmente é mais ou menos assim que enxergo a vida da nossa "baronesinha" se tomar a decisão errada! Desculpem a depressão!!

Continuei tentando me basear na música para esse capítulo...
Espero que continuem acompanhando e me dizendo o que estão achando!
Vejo vocês no próximo!
Bjo ♥



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