Fragmentos do Mar escrita por Akiel


Capítulo 2
Parte II




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Encontre-me no baile. O dono dos olhos da cor do mar transforma as palavras em um pensamento intenso, indeciso entre o pedido e a imposição. Nenhuma resposta é dada com a voz do vento, nenhum sussurro é trazido pelo perfume das ondas, mas o ondular das águas parece quebrar a barreira de carne, sangue e osso e alcançar o coração do capitão, envolvendo-o em um abraço acalentador que murmura a semente da ansiedade no peito de Kaleb. Um passo é dado para trás e o choque que nasce nas marcas deixadas pelo toque do raio faz com que o movimento seja sentido como a libertação de uma corrente, do controle do mar. No baile. Há mais força no pensamento dirigido às ondas, implorando para que seja levado pela brisa até a sombra que dança longe do olhar da cor do mar.

Os passos sobre a areia são lentos e envoltos em uma tranquilidade ausente desde o momento em que o capitão deixou a presença do rei. O som e o movimento do mar acompanham Kaleb por todo trajeto de retorno ao lar como uma canção que ecoa na mente silenciosa e é cantarolada pelos lábios finos. O senso de dever – de atender ao pedido do soberano a quem jurou lealdade – antes sentido ao ouvir o pedido para comparecer ao baile é substituído por uma ânsia que faz o sangue transbordar e a respiração ameaçar cessar. O pedido feito para as ondas permanece como um peso sobre o peito do capitão, uma carga valiosa, frágil ao toque e ao balançar do caminhar, mas que carrega consigo a inquietação acerca de sua aceitação. O baile organizado pelo Rei Feiticeiro poderá mesmo atrair as primeiras crianças do mundo, entre elas aquela que carrega em si a vida e a soberania do mar?

E a chuva? Aime também estará presente no baile? Com o mesmo olhar de tempestade e toque de garoa? Os questionamentos silenciam a música do mar na mente do capitão e temperam a ansiedade com o medo. O ar escapa por entre os lábios finos carregado com o temor do pedido que pode ser negado, da ausência e do silêncio e a música das ondas é substituída por uma antiga canção, conhecida por todos aqueles que se atrevem a pisar no convés de um navio, uma prece e um aviso, a história que assombra os sonhos de todos aqueles que vivem no mar.

Rainha do mar

Nascida do mundo

Diga-me o devo fazer

Para servir a você

As palavras são familiares para a mente, tão naturais quanto o ato de respirar é para os pulmões. Aprendidas juntamente com a habilidade de falar, elas são as tatuagens que o capitão carrega na alma, as marcas de uma vida ofertada ao mar sem medo. Os passos sobre a trilha de terra e pedra se perdem em meio ao som da vida do reino e a canção murmurada não atinge os ouvidos de ninguém além daquele que a canta, mas o movimentar dos lábios atrai a atenção de diferentes olhares, de corações ambiciosos e românticos, que desejam para si a voz e a boca do jovem capitão.

Em meio as ondas, você vive

O mar é seu reino

E eu sou seu humilde servo

Oh, minha rainha,

Conceda-me a proteção que necessito

Para viver com você

Os distantes trovões retumbam através das nuvens, como se quisessem oferecer à própria voz como eco às palavras sussurradas pelo dono dos olhos da cor do mar. O vento assopra os beijos de brisa perfumados com o cheiro do mar como um incentivo para que a canção continue sendo cantada em meio ao caos de sons que marcam o final da tarde no reino. Para o capitão, existe somente a própria voz, o ressoar dos trovões e o suave perfume do mar. Com a mente presa no próprio universo, os passos são dados através da memória até alcançarem a rua que leva ao lar.

Você que nasceu das lágrimas

Da Terra e da Lua

Deixe-me navegar em suas águas

Viver nas ondas do seu reino

Uma fraca e suave garoa começa a acompanhar a carícia do vento, uma nova voz para acompanhar a canção do capitão. O toque úmido faz a pele formigar e os olhos da cor do mar piscam lentamente, como se a mente estivesse despertando de um profundo sono. Uma memória recente emerge à consciência trazendo consigo a voz da chuva fazendo uma prece para a Senhora do Mar. Com as familiares palavras na mente, a canção continua nos lábios finos, os passos acompanhando o ritmo da música e abafando o som da porta sendo aberta.

Oh, minha rainha,

Minha lealdade, eu ofereço

Assim como minha vida

E minha morte

Rainha do mar,

A você, eu oro

E a você, eu adoro

— Já faz muito tempo que não ouço essas palavras. – a voz de Cassandra ecoa pela casa silenciosa e captura a atenção do capitão, roubando-a dos trovões e da garoa, deixados sozinhos do lado de fora.

As palavras da antiga governanta fazem com que um suave sorriso se desenhe nos lábios finos e os olhos da cor do mar sejam atraídos para a mesa da sala, onde Cassandra termina de arrumar um belo arranjo de flores. Entretanto, quando a mente reconhece as pétalas tocadas pelos dedos delicados da governanta, o sorriso estremece e enfraquece. Sob o atencioso e cuidadoso toque de Cassandra, se encontra uma orquídea tão branca quanto aquela pedida para ter sua cor descrita pelo Rei Feiticeiro. Sem pensar, Kaleb se aproxima, as pontas dos dedos logo encontrando a suave maciez das alvas pétalas.

— O que o rei desejava? – Cassandra questiona terminando de misturar fios de coco à terra do vaso.

— Minha presença no baile desta noite. – o capitão responde com o olhar da cor do mar ainda hipnotizado pela beleza da orquídea. Os dedos brincam com as macias pétalas, contornando-as e se colocando entre elas em uma carícia que denuncia a admiração sentida pelo coração. Por um motivo que Kaleb não consegue compreender completamente, a beleza da orquídea traz calma e serenidade à mente até então conturbada, afastando a ameaça da tempestade e apaziguando o medo e ansiedade que dominavam o coração.

— Um convite em pessoa? – a antiga governanta questiona, o tom de voz deixando claro a surpresa sentida e expressada no olhar escuro que se ergue para observar o jovem capitão.

— Sim. – o dono dos olhos da cor do mar responde afastando a mão das brancas pétalas, mas ainda não retribuindo o olhar de Cassandra – Este baile será especial e o rei Eric insiste que eu esteja presente.

— Por quê? – há uma ordem na voz que faz a pergunta e Kaleb reconhece nas palavras o tom que não admite mentiras ou recusas de resposta.

Os olhos da cor do mar procuram pelos olhos da governanta e os encontram firmes no aguardo por uma resposta. Incapaz de negar a demanda silenciosa de Cassandra, o jovem capitão respira fundo antes de responder:

— Porque este baile será em honra das primeiras crianças do mundo.

— E você serve a uma delas. – a governanta complementa – Com uma lealdade que não conhece limites, tão intensa que se encontra ignorante de si mesma. – as palavras da antiga governanta fazem com a surpresa se desenhe na face do capitão, os olhos da cor do mar exibindo um questionamento sem voz – Mas não é essa a verdade? Você adora o mar, porém não é a ela que você pede proteção? Não é para ela que você canta? – Cassandra ergue a mão e toca a lateral direita do rosto do dono dos olhos da cor do mar, as unhas arranhando os fios dourados em um suave carinho – Ah, Kaleb, você pode ter mantido sua lealdade como um segredo, mas apenas de si mesmo.

A voz da governa invoca as lembranças das palavras de Aime e do Rei Feiticeiro. A personificação da chuva e o soberano destacaram as intenções e o interesse da Senhora do Mar no jovem capitão, mas Cassandra viu a vontade inconsciente com que Kaleb se doa para a aquela que governa as ondas e a mostrou para os olhos da cor do mar, para o coração que se contrai sob o peso da revelação. Todos esses anos, desde aquela noite de tempestade, o capitão tem se deixado levar através do balanço do mar para o caminho desejado pela Senhora que nele reina. Cada oração sussurrada na noite, cada sonho relembrando a voz que concedeu passagem, cada passo dado na direção da sombra na água... Tudo foi uma tentativa desesperada de encontrá-la, de vê-la... O que o coração verdadeiramente deseja é que o corpo possa se ajoelhar diante dela, que ele possa conhecê-la.

            - Eu preciso me arrumar para o baile. – Kaleb diz e, sem esperar por uma resposta, caminha para a escada, subindo rapidamente para o quarto.

            Quando a porta do aposento se fecha, o capitão se permite sentir o coração que bate desesperadamente no peito, a respiração que expande os pulmões até o limite e os esvazia como uma árvore que perde todas suas folhas de uma única vez. As pálpebras se fecham sobre as írises da cor do mar e, privada da visão, a mente consegue captar o perfume da garoa que penetra através da janela entreaberta. Respirando fundo e tentando controlar o próprio corpo, Kaleb se dirige até o guarda-roupa e procura pelo traje de gala deixado guardado. A atenção é intencionalmente afastada da presença da chuva e focada no ato de se vestir, de arrumar o tecido sobre a pele, fechar os botões e colocar alguma sombra de ordem nos fios dourados que emolduram a face jovem.

            O branco das vestes e o azul escuro e dourado do casaco contrastam de modo equilibrado com a face bela e jovem. Um toque sobre a âncora carregada ao redor do pescoço é tudo que Kaleb se permite antes de se libertar da própria imagem e se retirar do quarto. Os passos sobre a escada são rápidos e descuidados, a ansiedade queimando sob a pele junto com o desejo e o receio do baile. O escuro olhar da antiga governanta acompanha os movimentos do jovem capitão e quando os olhos da cor do mar percebem a atenção que ao seu dono é dirigida, encontram nos olhos de Cassandra o reconhecimento e a compreensão de cada sensação e sentimento que atormentam a mente inquieta, mas que por ela não são compreendidos.

            Um hesitante sorriso é a despedida oferecida por Kaleb e que tem como resposta um sorriso calmo e gentil, compreensivo. Na suave e breve mesura oferecida por Cassandra, o capitão encontra a força – a permissão— para seguir o próprio desejo, para ter esperança de que o pedido feito será atendido. Na face da antiga governanta, o dono dos olhos da cor do mar encontra segurança para sonhar e perseguir a voz e a sombra que há anos assombram a memória.

            Com uma última e breve mesura, Kaleb se dirige para a porta, a abrindo e sendo recepcionado pelo intoxicante perfume da chuva. As írises da cor do mar são elevadas para o cinzento céu de tempestade e o vento assopra como se sussurrasse um convite que desafia o capitão a enfrentar o chuvoso anoitecer. Mas para a mente dominada pelo desejo pelo mar, o desafio não passa de uma brincadeira, de um jogo há muito dominado.

            Os passos do capitão seguem o conhecido caminho para a morada do rei. Entretanto, em meio às sombras que ameaçam a chegada da chuva, outros passos acompanham o caminhar de Kaleb. Passos conhecidos e desconhecidos, ligados a faces que sorriem com uma máscara invisível. Lábios que se esticam em sorrisos educados, sedutores e que se escondem atrás de belos leques para sussurras as palavras que atravessam as ruas e os muros, se perdendo em meio aos corredores do castelo, encontrando refúgio em outras bocas e pensamentos.

            É uma guerra de sussurros, a corte que rodeia o Rei Feiticeiro. E o capitão sabe que são tolos aqueles que confundem a cegueira para cores de Eric com uma surdez para as palavras murmuradas dentro de seu reino e de sua casa. Feiticeiro. Traidor. Ladrão de coroa. Há muitos que, na segurança do anonimato e do silêncio, acusam o atual soberano da morte do anterior, que o enxergam como um usurpador de título e de lugar, um traidor não merecedor da honra do trono e da coroa. Para todos esses, Eric sorri com falsa ignorância e uma naturalidade que nunca deixam de surpreender o dono dos olhos da cor do mar. O Rei Feiticeiro sabe como jogar a guerra de sussurros. Se não soubesse, não teria permanecido tantos anos no trono.

            As luzes das velas dançam no salão do trono, dispersadas e apoiadas em altos candelabros colocados em pontos estratégicos do aposento, compartilhando uma iluminação que compete com o brilho dos relâmpagos pelo direito de iluminar o esperado baile. Em silêncio e com um sorriso nos lábios finos, o capitão caminha em meio aos cortesãos e cortesãs, consciente dos olhares que o observam e acompanham, retribuindo cumprimentos e mesuras quando oferecidas. Em meio às faces sorridentes e maquiadas, a rápida visão de lábios arroxeados e írises azuis acinzentadas captura a atenção e o interesse do dono dos olhos da cor do mar.

Kaleb procura pela visão de Aime em meio ao oceano de pessoas e a encontra a poucos passos do lugar onde o capitão está. Entretanto, o achado dura apenas um breve momento, o suficiente para que um sorriso seja oferecido pela personificação da chuva antes que ela desapareça uma vez mais. O dono dos olhos da cor do mar caminha na direção em que a bela mulher foi vista, mas antes que um terceiro passo possa ser dado, uma mão forte e firme sobre o braço esquerdo do capitão interrompe o trajeto. A intensidade do toque faz com que fogo corra pelas veias e desperte as marcas deixadas pelo raio nas pernas. A face jovem se contorce com a dor sentida e os olhos procuram pelo dono do ardente contato.

O que as írises da cor do mar encontram são olhos de um azul escuro misturado com o cinza que lembra o brilho dos relâmpagos de uma tempestade. Olhos como os de Aime, emoldurados por ondulados fios negros que caem sobre a face masculina. Lábios rosados se esticam em um sorriso cheio de divertimento e o braço de Kaleb é libertado, o estranho seguindo caminho por entre os corpos que preenchem o salão. Confusa, a mente do capitão é logo capturada pelo silêncio que se espalha, os convidados se colocando em profundas mesuras. O motivo não demora a ser identificado pelo capitão, que também oferece uma longa reverência ao soberano recém-chegado.

Mesmo com o tronco inclinado, Kaleb ergue o olhar da cor do mar para a figura sentada no trono. Há algo nos olhos de cinzas, um ansioso brilho nas írises inquietas que varrem o salão como se estivessem procurando por alguém em especial. Curiosidade nasce no peito do capitão. Assim como o dono dos olhos da cor do mar, Eric também espera encontrar uma das primeiras crianças do mundo no baile? Talvez aquela cujo nome o rei tem sido conectado desde que apareceu no reino, cuja menção faz com que a raiva e o ressentimento ressoem na voz normalmente calma? Afinal, é natural para um feiticeiro carregar a marca da Bruxa da Floresta.

Quando todos os corpos se erguem, Kaleb percebe que o olhar de cinzas se aquieta e a atenção do soberano parece ser depositada em um dos convidados. As írises da cor do mar seguem a linha que leva até o objeto de foco do rei e a imagem que encontram faz com que o coração falhe uma batida no peito. Uma mulher de intensa beleza se destaca da multidão, caminhando com passos lentos e decididos na direção do trono. Longos e brilhantes fios de bronze emolduram a face jovem como ondas que se espalham até alcançarem a cintura fina. Lábios pintados de um suave tom de verde, semelhante àquele que colore a água do mar, sorriem de modo calmo e relaxado. Olhos da cor da terra brilham como se roubassem a luz das velas para si a cada passo dado e quando a bela mulher faz uma reverência para o soberano, a barra do longo vestido se acumulando sobre o chão e destacando o esverdeado dégradé do tecido, apenas uma palavra aparece na mente do capitão.

Odete.

— Você nos honra com sua presença, minha senhora. – o Rei Feiticeiro diz fazendo uma respeitosa mesura.

— É você quem nos honra com este baile, meu rei. – a bela mulher responde a voz carregada de respeito e Kaleb sente como se outro raio o tivessem atingido. A voz que viaja pelo salão... É a aquela voz, a mesma voz.

“Pelos seus olhos, eu os concederei passagem” As palavras, marcadas com fogo na memória ecoam na mente do jovem capitão, acelerando ainda mais o já desesperado bater do coração. O objetivo do rei foi atingido, pelo menos em parte. Há crianças do mundo no salão, misturadas no meio dos convidados. E a única a se destacar até o momento é justamente aquela cuja presença Kaleb requisitou. O pedido feito para o mar foi atendido, o desejo do dono dos olhos da cor do mar se encontra dentro do castelo, a poucos passos de distância, tão perto que faz o coração doer. Por um breve momento, o olhar do capitão se encontra com as írises de cinza do soberano e um sorriso estica os lábios finos de Eric. 

— Que esta noite traga o desejo do seu coração, minha senhora. – o Rei Feiticeiro deseja com o sorriso ainda presente e a voz colorida com divertimento.

— E que lhe traga paciência, meu rei, pois o desejo do seu coração já se encontra aqui. – a bela mulher responde com um sorriso próprio nos lábios da cor do mar. Choque e surpresa duelam com a ansiedade no olhar de cinzas que procura, de modo pouco sutil, por entre os convidados já presentes.

Com uma última mesura, a bela mulher se afasta do soberano e caminha de modo confiante até o capitão. Cada passo que apaga a distância entre o Kaleb e Odete faz com que a força com que o coração do capitão bate se torne mais forte, mais intensa, se tornando insuportável e roubando o ar dos pulmões, o aprisionando na garganta, sob o peso da voz que não consegue se manifestar. O sorriso nos lábios da bela personificação do mar se modifica, se tornando mais suave e sendo pintado com um carinho que parece ser exclusivamente dirigido ao dono dos olhos da cor do mar. Dedos longos são erguidos e unhas afiadas contornam o rosto do jovem capitão, arrepiando a pele e fazendo tremer os músculos sob o toque. Lábios esverdeados se aproximam e sussurram um convite contra a boca fina:

— Concede-me essa dança, capitão?

Somente quando as palavras da Senhora do Mar são ditas, Kaleb percebe a música que se espalha pelo salão do trono, convidando a todos a dançarem sob seu ritmo envolvente. Entretanto, o dono dos olhos da cor do mar não se sente atraído pela suave melodia nem pela imagem dos diferentes corpos que começam a dançar, para o jovem capitão existem apenas os olhos da cor da terra, o corpo bem moldado que se movimenta com o suave ondular das ondas e os lábios da cor do mar que sorriem em um convite impossível de resistir. Sem realmente perceber ou controlar, Kaleb envolve a cintura de Odete com um dos braços, a puxando contra o próprio corpo. A bela mulher se deixa levar pelo movimento, as mãos tocando o pescoço envolto pelo branco lenço em um apoio que se manifesta em um toque exploratório.

Sentindo-se incapaz de reagir, o capitão permite a curiosidade da Senhora do Mar, sentindo o caminho que os dedos macios desenham a partir do pescoço, seguindo a linha da mandíbula e repousando sobre os lábios finos. Olhos da cor da terra, intensos como uma tempestade, observam com fascinada atenção as írises da cor do mar. Lentamente, como se tivesse sido libertado de um feitiço, Kaleb solta o ar até então preso na garganta contra a mão que permanece sobre a boca rosada e o coração se acalma no peito, mas ainda bate intensamente, dominado pela vontade de envolver a personificação do mar. Sem fugir do olhar da cor da terra, o jovem capitão envolve a mão que o toca e a afasta o suficiente para que um beijo seja depositado sobre os dedos finos.

Certeza e força começam a substituir a surpresa nos olhos da cor do mar e Kaleb dá o primeiro passo da dança que sucumbe ao convite da música. Odete segue o capitão sem questionar, o corpo próximo e o rosto repousando sobre o ombro coberto pelo uniforme. O capitão sente a maciez do cabelo da cor do bronze contra a face e o perfume que envolve os longos e ondulados fios invade o olfato e impregna a mente do dono dos olhos da cor do mar. Por um momento, Kaleb sente como se tivesse sido transportado para o abraço das ondas, o suave aroma se intensificando e dominando os sentidos, a dança se transformando no movimento do próprio mar.

Odete levanta o rosto e há algo impossível de nomear nas írises da cor da terra. É uma poderosa emoção, uma tentação tão profunda quanto o mar. Com um toque suave, os longos dedos contornam os olhos do capitão e a Senhora da Mar se deixa envolver pela certeza de estão finalmente perto das írises que por tantos anos foram o objeto de distante admiração. O toque do capitão cai para a cintura fina, impondo a força das mãos que seguram a personificação do mar como se quisessem confirmar a presença da bela mulher sem permitir que ela escape. Olhos da cor do mar observam a luz e as sombras que bailam no olhar da terra, a emoção sem nome ganhando força e brilho no olhar da primeira criança do mundo.

— Obrigado por atender ao meu pedido. – Kaleb diz em um suave sussurro, as palavras fazendo com que um largo sorriso se desenhe nos lábios esverdeados.

— Não o faço sempre? – Odete questiona em resposta, a voz carregando uma divertida provocação.

A pergunta desperta uma recente lembrança na mente do capitão. Por que a Senhora do Mar protege você? O questionamento de Aime ecoa na mente de Kaleb e faz com que a dúvida e o medo nasçam no coração que ainda bate com toda força no peito, a satisfação por um desejo realizado e o temor pelo motivo que o realizou duelam com a intensidade da tempestade que começa a cair sobre o reino. Os lábios finos se entreabrem, entretanto demora longos segundos para que a voz consiga ser convocada e a incerteza expressada:

— Por que tenho a sua proteção? – as palavras do jovem capitão fazem nascer a sombra da confusão nos olhos da cor da terra.

— Por que a pergunta? – Odete questiona com divertimento na voz – Não se considera digno da minha proteção? – os olhos da Senhora do Mar analisam a face e os olhos de Kaleb, encontrando marcas familiares na incerteza que instabiliza a postura do capitão – Ou, por acaso, foi a Chuva quem plantou a dúvida na sua mente? – seriedade substitui o prazer na voz da personificação do mar, seu peso surpreendendo e intimidando o dono dos olhos da cor do mar.

— Como pode saber? – surpresa colore as palavras que deixam os lábios do jovem capitão e conquista uma breve risada da Senhora do Mar.

— Eu conheço Aime. – Odete responde – Sei que minha conexão com os marinheiros a intriga. Minha irmã não compreende como alguns de nós podem se tornar tão próximos das crianças que vieram depois de nós.

— Sua irmã, minha senhora?

A pergunta traz consigo o término da dança. Mesmo que a música continue a ser tocada e cantada, a Senhora do Mar impõe uma pausa a todo movimento, as mãos sobre o peito do capitão. A mesma intensa emoção de antes retorna aos olhos da cor da terra e um sorriso diferente se forma nos lábios da cor do mar. Por um momento, Kaleb se sente invadido pela certeza de estar diante de uma das primeiras crianças do mundo, a natureza e o poder de Odete a envolvendo em uma aura invisível que demanda reconhecimento e respeito de qualquer um que cruze o caminho da personificação do mar. E ainda assim, a emoção nas írises escuras é o que conquista a atenção do dono dos olhos da cor do mar. Há carinho no olhar de Odete, mas também há sabedoria e imponência. Para o capitão, a bela mulher é realmente a rainha do mar.

— Venha. – a Senhora do Mar pede oferecendo a mão direita – Vamos conversar.

Kaleb aceita o convite, os dedos repousando sobre a palma estendida, mas logo sendo deixados para que a mão de Odete possa envolver e segurar o braço do capitão. O dono dos olhos da cor do mar sente um sorriso esticar os lábios com o movimento da acompanhante. Entretanto, quando a personificação do mar começa a guiá-lo em direção à saída do salão, o olhar da cor do mar se volta para a multidão ainda presente no baile. As írises seguem um caminho conhecido, procurando pela silhueta pertencente sobre o trono, mas encontram o assento vazio e nenhum sinal do soberano.

— Não se preocupe com Eric. – Odete diz, percebendo a inquietação que nasce sob a pele do capitão – Ele tem um desejo a realizar esta noite.

— A Bruxa da Floresta? – o capitão questiona recordando o objetivo por trás do baile e a raiva velada na voz do rei ao falar sobre a bruxa.

— Ela. – Odete confirma com um sorriso nos lábios.

O caminho para os portões do castelo é feito sob um intrigante silêncio. As palavras da Senhora do Mar pesam no ar e jogam a sombra do temor sobre o coração do capitão. Kaleb se questiona se o rei estará seguro no baile, sozinho com aquela que o marcou com fogo, cuja presença parece jamais deixar a mente ou as palavras do soberano. Há mais de uma razão a justificar o medo que a Bruxa da Floresta inspira em todos os reinos e em especial àqueles que nascem da Floresta e da Lua, com a magia cantando intensamente no sangue.

Entretanto, o som dos portões sendo abertos pelos guardas traz a mente do capitão de volta à realidade e os sentidos de Kaleb são invadidos pelo perfume e pelo cantar da tempestade. Surpresa brilha nos olhos da cor do mar, a presença da intensa chuva completamente esquecida pela consciência. Sem parecer se importar com as pesadas gotas d’água ou com a luz dos relâmpagos, Odete continua a guiar o jovem capitão pelo caminho que se abre a partir da entrada do castelo. O movimento encontra obstáculo na resistência que Kaleb exibe em enfrentar a tempestade.

— Está com medo da chuva? – Odete questiona, o toque deslizando do braço para a mão do capitão.

— Não. – o dono dos olhos da cor do mar responde sem hesitar, mas o olhar é elevado ao céu escuro e tempestuoso, para os relâmpagos que iluminam a noite com sua intensa luz. Os trovões ecoam através das nuvens e arrepiam a pele do capitão que, inconscientemente, dá um passo para trás, o movimento sendo parado pelos dedos que ainda o seguram.

— Não se preocupe. – Odete diz com suavidade, algo na voz da Senhora do Mar soando familiar para Kaleb, como os sussurros que aplacaram a dor causada pelo toque do relâmpago – Não há nada a temer. Os gêmeos não irão machucá-lo.

— Gêmeos? – o capitão repete voltando a atenção para a personificação do mar e perdendo a voz diante da imagem que encontra.

As gotas d’água caem sobre a pele de Odete, a molhando como o toque das ondas. O brilho dos raios encontra reflexo no olhar da cor da terra e é como se as profundezas do mar fossem finalmente tocadas pela luz. O sorriso nos lábios finos e esverdeados é como uma joia escondida em meio às ondas e revelada pela tempestade. Os longos e molhados fios de bronze emolduram a face que, para Kaleb, é a mais perfeita expressão da beleza do mar. É a admiração pela beleza de Odete que faz com que o capitão desperte para o toque frio da chuva sobre a pele, as pesadas gotas molhando o uniforme, deixando-o mais pesado, e fazendo com que a franja dourada grude como uma cortina ao redor dos olhos da cor do mar.

— Eles são gêmeos, as crianças que formam a Tempestade. – a Senhora do Mar explica com calma e compreensão na voz – Aime, a Chuva; Renei, os Raios e os Relâmpagos e Thyron, os Trovões. – os lábios esverdeados se esticam em um provocativo sorriso -  Você conheceu dois deles.

— Eu conheci Aime. – Kaleb responde com confusão colorindo a voz e o olhar.

Ainda sorrindo, Odete começa a caminhar, a mão envolvendo os dedos do capitão e o guiando por um caminho conhecido apenas pela Senhora do Mar. Kaleb segue a liderança da personificação do mar sem questionar ou sequer pensar. Os trovões retumbam no firmamento e os relâmpagos dançam em meio às nuvens, a chuva cai pesada sobre a terra e sobre a pele. A Tempestade mostra sua força e seu poder sem medo ou hesitação. Entretanto, sob o poder da chuva, dos relâmpagos e dos trovões, o capitão e a manifestação do mar não percebem nada além um do outro. Com um toque firme e passos cada vez mais rápidos, Odete guia Kaleb através da água e da escuridão.

— E você viu Renei no baile, sentiu o toque do relâmpago, não sentiu? – a Senhora do Mar questiona com divertimento brilhando no olhar da cor da terra.

A pergunta invoca a lembrança do rapaz encontrado no salão, do toque que parecia despertar a dor das marcas deixadas pelo raio. Embora tenha sido um breve momento, o capitão se recorda dos olhos de tempestade e do sorriso de satisfação. Então, aquele desconhecido era Renei?

— Todos nós temos nossos Reinos favoritos, as terras nas quais nós sentimos que pertencemos, que chamamos de lar. – Odete diz, a voz sobressaindo ao barulho da chuva e dos trovões – O meu, é este. – pela primeira vez, a Senhora do Mar solta o capitão. A liberdade é dada para que a personificação do mar possa abrir os braços como se quisesse envolver o local em que ambos se encontram.

É apenas nesse momento que Kaleb percebe onde os passos de Odete o levaram: o porto. O som das ondas quebrando na praia chega até os ouvidos do capitão e apaga todo e qualquer som que possa nascer da tempestade. Os olhos da cor do mar observam a satisfação que marca a face da Senhora do Mar, a alegria nos olhos da cor da terra e nos lábios esverdeados. Sentindo um sorriso se formar nos próprios lábios, Kaleb cruza os poucos passos que o separam da personificação do mar, tocando a cintura coberta pelo verde e molhado vestido com uma mão e, com a outra, o belo rosto daquela que governa as ondas.

— A Tempestade também tem esse reino como lar? – o capitão questiona, os dedos traçando um suave caminho pela lateral do rosto da manifestação do mar.

— Eles têm. – Odete responde, erguendo a mão e contornando os lábios do dono dos olhos da cor do mar – Do mesmo modo como Ileanna e Iverith têm o Reino do Sul e Lathia e Fenris, o Reino do Norte. – o sorriso nos lábios esverdeados se intensifica, ganhando uma curva de provocação – Qual é o seu reino, capitão?

— O mar. – Kaleb responde de imediato e sem pensar.

No momento em que as palavras ganham voz, arrependimento nasce e queima a garganta do capitão. O medo do insulto brilha nos olhos da cor do mar, mas não é o ultraje ou a raiva esperada o que Kaleb encontra no olhar da cor da terra. O que o capitão vê nas írises da Senhora do Mar é afeição, carinho e esperança. A última é o que mais intriga o coração do capitão. Pelo que a Senhora do Mar poderia esperar? Uma vez mais, o toque de Odete encontra os olhos do capitão, o olhar escuro observando atentamente as írises da cor das ondas.

— Você é o mar, sabia? – as palavras que deixam os lábios esverdeados plantam a semente do protesto na garganta de Kaleb, mas o toque dos dedos finos impede que ela cresça – Seus olhos... Desde a primeira vez que os vi... – a intensa emoção antes vista nos olhos da personificação do mar retorna e se manifesta na voz que se torna pesada e se arrasta, se perdendo no silêncio das emoções violentas – O que eu vi foi o mar. Meu mar, meu reino nos olhos de uma criança do mundo. Como poderia ser? E em olhos tão belos...

— Então, meus olhos me garantiram a sua proteção? – há raiva e mágoa queimando nas palavras e no peito do capitão, mesmo que a mente não compreenda a presença desses sentimentos.

— No começo, sim. – Odete responde – Mas você cresceu. Você se tornou um homem forte, habilidoso e tão leal. – o sorriso nos lábios da Senhora do Mar cresce e se intensifica – Ninguém é mais leal à Eric do que você. Ou a mim.

— E o que isso significa? – o fogo queima o peito de Kaleb do mesmo modo como as palavras do Rei Feiticeiro o fizeram, ameaçando roubar a mente e a vida do dono dos olhos da cor do mar em um único golpe.

— O que você quiser. – é a simples resposta oferecida pela Senhora do Mar – Você mesmo disse: o mar é o seu reino. Conquiste-o ou o abandone, a escolha e sua. – a esperança antes encontrada nos olhos da cor da terra volta a brilhar com a intensidade dos raios que ainda iluminam a noite – Mas saiba que eu sempre virei por você.

Você é meu mar. O sussurro com a voz do vento permanece entre Odete e Kaleb com o peso das gotas de chuva que ainda caem, incerto sobre qual coração o pronunciou. Ainda sorrindo, a Senhora do Mar deixa que o próprio toque caia para a nuca do capitão, o forçando a abaixar a cabeça até que as testas se encostem, fios de ouro e bronze se misturando sob o poder da tempestade.

— Odete. – o nome deixa os lábios de Kaleb sem que a consciência possa perceber ou controlar.

— Kaleb. – a personificação do mar responde com a sombra de uma risada colorindo a voz.

Os braços do capitão envolvem o corpo bem moldado da Senhora do Mar, o puxando para o mais perto possível de si. Sob as mãos e contra a própria pele, o dono dos olhos da cor do mar sente a força e o poder daquela que reina em meio às ondas. As pálpebras se fecham sobre as írises claras e a mente se deixa dominar pelo som da água tocando a areia, as ondas se quebrando com a mesma força com que a tempestade desfaz o céu. O perfume do mar que impregna a pele de Odete entorpece os sentidos e faz com que apenas o desejo do coração permaneça, a vontade de estar e continuar a estar na presença da Senhora do Mar, sob o toque o envolve sem impor controle. Sem pensar, Kaleb aproxima mais o rosto, os lábios tocando suavemente a boca esverdeada.

— Chame e eu virei. – as palavras são sussurradas sem distância pelos lábios esverdeados, roubando o lugar do beijo que não chegou a se concretizar.

Os olhos da cor do mar se abrem para assistirem a bela Senhora do Mar sorrir um sorriso de despedida, a boca bem desenhada mostrando o divertimento que encontra reflexo nos olhos da cor da terra. Com passos lentos, Odete se afasta, recuando em direção ao mar sem para ele se virar, a atenção ainda completamente focada no capitão. Diante do egresso da personificação do mar, Kaleb sente o peito pesar e o coração bater com desespero, implorando para que o movimento seja parado e a Senhora do Mar seja trazida de volta para os braços.

Entretanto, apesar do desejo bater intensamente no peito, o corpo não se move, permanecendo paralisado sobre a areia. Algo parece invadir o interior do capitão, colocando um feitiço sobre os músculos e os impedindo de acatarem a vontade do coração. Os trovões ecoam na distância e os batimentos do coração perdem força sob o peso da força invisível que mantém o corpo imóvel. Nos olhos da Senhora do Mar, Kaleb vê o conhecimento sobre o que está acontecendo com ele. Entretanto, Odete apenas sorri, o sorriso permanecendo nos lábios esverdeados até a bela mulher desaparecer em meio às sombras da noite e o balançar das ondas.

No mesmo instante, o dono dos olhos da cor do mar cai de joelhos com uma força que o obriga a apoiar as mãos abertas sobre a areia para que impedir que o corpo todo caia sobre a superfície do praia. O ar escapa por entre os lábios entreabertos de modo descompassado e intenso, a mente só então percebendo a perda de controle sobre a respiração. O peso invisível desaparece e o capitão volta a sentir o domínio sobre o próprio corpo, mas a ausência da misteriosa força traz consigo um intenso cansaço, como se Kaleb tivesse passado horas carregando um esqueleto de ferro.

As ondas balançam com o soprar da tempestade e cada gota d’água que toca a pele do capitão é como um beijo de fogo que queima a pele e aumenta a força que implora para que o corpo se abandone sobre a areia. Um relâmpago brilha no firmamento e o raio cai sobre o mar, a luz cegando os olhos da cor das ondas e despertando a dor que hiberna nas marcas deixadas nas pernas do capitão. As chamas da chuva penetram através das marcas e seguem caminho pelas veias e artérias, fazendo o ar nos pulmões entrar em combustão. A mente arde, presa na armadilha de fogo e água e a consciência luta para permanecer. Outro trovão ecoa, mais alto e mais forte, o som encontrando eco no coração que bate desesperado no peito. Medo e confusão brigam nos pensamentos desconexos de Kaleb, que sente cada vez mais o corpo pulsar com o ritmo dos trovões.

Perdoe-me se permito. As palavras são como sussurros distantes na mente do capitão, ditos com a voz do vento e o timbre de Odete. Perdoe-me se desejo. Mas você é o mar que encontrei em terra, é a personificação da beleza e do poder do meu reino. Perdoe-me se eu desejo o seu coração. As palavras se tornam cada vez mais fracas e distantes, até que não resta nada além do toque gelado da garoa, a aspereza da areia sob o corpo e a escuridão da inconsciência.

A manhã chega, trazendo consigo o ameno toque do sol. É o suave calor da luz matinal que desperta Kaleb, as pálpebras tremendo sob o soprar da brisa matutina e revelando as vítreas írises da cor do mar. Demora alguns poucos momentos para que a consciência reconheça o lugar que a cerca, a memória lenta em reconhecer o porto tão familiar. Uma noite sob o toque da garoa e sobre o cobertor de areia faz com que os músculos protestem contra qualquer movimento que ameace ser feito.

Os braços tremem tentando sustentar o peso do corpo, as pernas rígidas tentando se acostumar com o despertar. Aos poucos, os sons do ancoradouro penetram na mente do capitão, auxiliando na localização e no retorno à realidade. Uma mão pousa pesadamente sobre as costas, dedos firmes envolvendo o ombro e puxando o dono dos olhos da cor do mar para que fique de pé. O movimento causa uma breve tontura, mas Kaleb respira fundo e consegue se firmar sobre os próprios pés.

— Capitão? – uma voz familiar chama, atraindo a atenção das írises da cor do mar para os olhos escuros do conhecido marinheiro.

— Joseph. – Kaleb diz e internamente se questiona quantas vezes mais o marinheiro o encontrará fora de si e da realidade.

— O senhor está bem, capitão? – Joseph questiona com preocupação na voz forte e grave – Quer que eu o ajude a chegar em casa?

— Não. – a resposta é dada de um modo mais afirmativo e intenso do que o planejado pelo capitão, a palavra escapando por entre os lábios finos como se fosse expulsa por uma força interna – Leve-me para o navio. Nós vamos para o mar.

— O senhor tem certeza disso, capitão? – o marujo pergunta, as palavras sendo pintadas com ceticismo.

Antes que uma resposta possa seja dada, os olhos do capitão são dirigidos para as ondas que se quebram calmamente no mar. As palavras sussurradas pelo vento com a voz de Odete retornam à mente de Kaleb juntamente com o desejo do coração de correr e encontrar a Senhora do Mar. Entretanto, a imagem do balançar das ondas, mesmo tranquila e suave, faz nascer o medo na mente do capitão. O medo da dor e do fogo, do poder da tempestade.

— Eu tenho, Joseph. – a força presente na voz do capitão surpreende o marinheiro. Nem mesmo o sorriso nos lábios finos diminui a surpresa sentida, a certeza encontrada de que Kaleb é mesmo o homem das histórias que são espalhadas pelo reino, o poder entrelaçado às palavras ditas é sentido mesmo que o marujo tenha que ajudar o capitão a caminhar até o navio.

Quando os pés tocam o convés, Kaleb sente o peso da noite e do temor se desentrelaçar dos ossos e dos músculos. O coração se acalma e a mente encontra equilíbrio no suave balançar da embarcação. O capitão respira fundo, sentindo o perfume do mar invadir os pulmões e fazer renascer a força roubada. Afastando-se de Joseph, Kaleb caminha para seu lugar de direito, as mãos segurando firmemente o leme e a garganta sentindo o pedido da voz para ser libertada na forma de ordens à serem gritadas para o vento e acatadas por cada homem que se diz parte da tripulação d’O Corvo.

 Sentindo um sorriso esticar os lábios, o capitão sucumbe ao desejo sentido e liberta a voz, as ordens sendo carregadas pelo navio e respondidas com prontidão e entusiasmo. Vendo o líder parecer retornar ao costumeiro jeito de ser, Joseph sorri e oferece eco às palavras de Kaleb, sua autoridade já reconhecida e estabelecida entre os marinheiros. Não demora para que o Corvo se veja de volta entre as ondas, as velas abertas o máximo contra o vento e a tripulação cantando as canções que o mar conhece de coração.

Embora as írises da cor do mar permaneçam focadas no caminho à frente, nas ondas sendo desfeitas e no horizonte ainda marcado pelo cinza da tempestade, a mente do capitão se encontra muito longe e, ao mesmo tempo, muito perto do mar. A memória se mantém presa à lembrança de um olhar da cor da terra e lábios da cor das ondas, de uma voz que sussurra com o vento e pede perdão por um ato que não é compreendido.

A recordação das palavras da Senhora do Mar desmancha o sorriso nos lábios de Kaleb e desperta a confusão mantida entorpecida pela dor sentida na noite anterior. Por que Odete pediria por perdão? Perdoe-me por permitir. Permitir o quê, exatamente? A pesada paralisia que foi imposta ao capitão por uma força invisível e desconhecida? Perdoe-me por desejar seu coração. Por que tal desejo pediria por perdão? Ainda mais quando é retribuído da mesma maneira?

O encontro com uma onda mais forte rouba momentaneamente o equilíbrio do capitão, que se apoia contra o leme sem sentir o impacto do contato. Tudo que a mente registra é a recente realização de que Kaleb deseja o coração da Senhora do Mar. O capitão quer mais do que se ajoelhar e jurar lealdade, do que pertencer àquela que governa as ondas. O dono dos olhos da cor do mar deseja que a Odete também pertença a ele. Se essa é a realidade, ele também deveria pedir perdão?

Os pensamentos são arrancados da mente do capitão quando as vozes alteradas dos marinheiros são reconhecidas como avisos de perigo. O encontro com a forte onda foi, na verdade, um sinal de aproximação de um navio familiar. As velas negras balançam contra o vento e a imagem da ninfa enfeitiçada se apresentam com a terrível imponência exibida no último encontro. A natural névoa que envolve a embarcação pirata apenas aumenta a sensação de perigo que a presença do Cila evoca em todos que encontra.

— Preparar para batalha, rapazes! – o capitão grita a ordem ao mesmo tempo em que intensifica o toque sobre o leme, forçando o navio a assumir uma posição defensiva.

— Aye, aye! – é a animada resposta dada pelos marinheiros.

Kaleb sente a tensão que antecede o combate queimar sob a pele, envolvendo os músculos em um firme abraço. O coração bate com toda força no peito e os olhos da cor do mar procuram pelo capitão inimigo, o encontrando no momento em que os dois navios se emparelham, os ganchos das duas tripulações agarrando a madeira e a quebrando em um toque violento. Não demora para que o som do choque entre espadas se espalhe, sendo ecoado pelo distante retumbar dos trovões. Gritos de dor e fúria roubam a voz do vento e a destruição se espalhada pelos dois navios.

Percebendo um ataque pelo lado esquerdo, o capitão solta o leme e rapidamente saca as espadas, bloqueando a lâmina inimiga e chutando o peito do oponente. Quando o pirata cambaleia para trás, as costas batendo contra a murada do navio, a arma do dono dos olhos da cor do mar desce em um movimento rápido, cortando o pescoço do inimigo bem abaixo da linha da mandíbula, fazendo o sangue escorrer e molhar o chão. Roubando um momento para respirar fundo, Kaleb logo volta a se colocar no combate, as espadas cruzando o ar e parando lâminas, cortando tecido e pele, defendendo a própria tripulação.

O duelo contra um dos piratas é interrompido quando um toque firme e forte envolve os curtos fios dourados, puxando a cabeça do capitão para trás e o empurrando para longe do oponente. O olhar da cor do mar procura o responsável pelo movimento e encontra os escuros e brilhantes olhos de Leviatã. Há um sorriso de deleite nos lábios machucados do líder dos piratas e o modo como a espada é girada pela mão direita denuncia a ansiedade que toma conta do pirata.

— Você é meu, capitão. – Leviatã diz, o prazer sentido com o encontro também presente nas palavras ditas.

Kaleb não oferece uma resposta, percebendo a ausência de qualquer outra saída diferente do enfrentamento direto com Leviatã. O capitão aumenta a força com que segura as espadas, sentindo o coração bater com uma intensidade que se assemelha a uma insana tentativa de escapar da prisão do peito. O pirata é o primeiro a atacar e o golpe é rapidamente bloqueado e repelido pelas lâminas do dono dos olhos da cor do mar. O som dos trovões se aproxima e as ondas se quebram com mais intensidade contra os cascos dos navios.

Leviatã ataca mais uma vez e Kaleb desvia, as próprias lâminas procurando tocar a pele do pirata. O líder inimigo é rápido e escapa do golpe, a espada desferido um arco no ar e cortando o ombro do capitão. Um silvo de dor escapa por entre os lábios finos e o dono do dos olhos da cor do mar tenta atacar novamente, uma das espadas afastando a lâmina do oponente e a outra conseguindo ferir o tórax desprotegido. Leviatã grunhe com o fogo do ferimento, mas logo um sorriso aparece nos lábios rachados. É claro o prazer que o pirata sente com o combate.

Golpe atrás de golpe se segue, tão rápida e intensamente que o capitão não consegue desviar a atenção para ver como a tripulação d’O Corvo está se defendendo. Os movimentos são rápidos e intensos e a força necessária para realizá-los começa a cobrar seu preço dos músculos de Kaleb. O capitão desvia da espada do pirata e gira o corpo, se afastando por um momento para então retornar com mais força, a própria lâmina conseguindo cortar o braço de Leviatã. O pirata grita de dor e, com a espada em punho, ataca, cortando o rosto do capitão em um golpe com a força de um soco e o fazendo cambalear. O dono dos olhos da cor do mar recupera o equilíbrio e retorna para a luta. Entretanto, o movimento que almejava o pescoço do pirata é interrompido pela lâmina de Leviatã, que é cravada no peito de Kaleb.

O gosto do sangue invade a boca do capitão e, por um momento, tudo cai no silêncio. As írises da cor do mar veem o sorriso nos lábios do pirata aumentar, o contentamento e o deleite quase palpáveis no ar. Com um movimento do punho, Leviatã faz com que a lâmina afunde ainda mais no peito do capitão, quebrando osso, rompendo músculos e cortando o coração. A dor é tão intensa que paralisa o corpo e ensurdece a mente para os gritos da tripulação, que chama desesperadamente por seu capitão. Nem os trovões são ouvidos, a consciência permanece entorpecida até mesmo para o gelado toque da chuva que começa a cair.

Impondo mais pressão sobre a lâmina, Leviatã faz com que Kaleb cambaleie alguns passos para trás até que borda do convés seja alcançada. Entretanto, isso não impede o pirata, que continua a conduzir o dono dos olhos da cor do mar até forçar o último passo no ar, o corpo do capitão se libertando da espada e caindo sobre as ondas.

— Que a Senhora do Mar o leve em segurança, capitão.

As últimas palavras do pirata não são nada mais do que distantes ecos para a mente do dono dos olhos da cor do mar. Com um último fio de consciência e através da água, Kaleb vê a chegada da tempestade. As pesadas gotas de chuva penetram as ondas e se perdem na agitação da água. Os relâmpagos iluminam o céu e o capitão vê quando um raio atinge diretamente um dos navios, o fogo se alastrando em alta velocidade. Mas as pálpebras começam a ficar pesadas e, em meio ao gelado toque do mar, Kaleb sente um suave e firme abraço a envolvê-lo. Fios de bronze se espalham pela água e um último pensamento, uma última oração nasce na mente do capitão.

Perdoe-me, minha Senhora. Minha vida e minha morte são suas.

Por um longo momento que se assemelha a um sonho, há apenas escuridão e uma voz distante que canta em uma língua esquecida e desconhecida. O gelado toque do mar parece penetrar através da pele e invadir o sangue, envolver o coração machucado e remendá-lo com seu carinhoso cuidado. É difícil para os pulmões respirarem, mas a falta de ar não causa dor ou incômodo. A voz que canta evoca conforto e segurança e a sensação de que, por toda eternidade, mais nada é preciso.

— Capitão! Capitão! Capitão!

As vozes, altas e cheias desespero, capturam a consciência em meio ao mar da escuridão e a puxam de volta para casa. Com dificuldade, as pálpebras se abrem e as írises da cor do mar encontram vultos parcialmente iluminados pela luz dos relâmpagos que cortam o céu. Os lábios se movem, mas nenhuma palavra encontra força o suficiente para ser proferida. Uma mão pousa pesadamente sobre o ombro machucado em um toque que se transforma em uma âncora para a mente confusa. O olhar do capitão se foca no dono do toque e, conforme a visão se restaura, a memória reconhece a face do marinheiro.

— O senhor realmente possui a proteção da Senhora do Mar. – Joseph diz de modo ofegante – Somente ela poderia salvá-lo.

— O que... aconteceu? – Kaleb questiona com o pouco de força que consegue reunir.

— Não sabemos como explicar, senhor. – um dos marinheiros responde.

— Quando você caiu, senhor, o caos se instalou. – Joseph começa a explicar – A tempestade caiu sobre nós com uma intensidade igual a nenhuma outra que eu já tenha presenciado. O mar se tornou revolto e começou a balançar violentamente os navios. Era como se o próprio mundo estivesse querendo vingar a sua morte. Um raio caiu no navio de Leviatã e o fogo espalhou, destruindo tudo. Mas... – o marujo faz uma pausa para respirar fundo – O mais incrível foi que a tempestade atingiu apenas a tripulação de Leviatã, nenhum de nós foi ferido por ela. Era quase como se a tempestade possuísse vontade própria.

Aime. O nome ecoa na mente do capitão como se tivesse sido invocado pelas palavras de Joseph. Os trigêmeos. Teriam sido eles a controlar a tempestade e proteger a tripulação d’O Corvo? A confusão e o questionamento se transformam em ansiedade e queimam no interior do capitão resgatado. A respiração descompassada perde ainda mais o controle e o toque de Joseph sobre o ombro do capitão se torna mais firme, o acalmando o suficiente para que questione mais uma vez:

— Onde... estamos?

— Estamos chegando na capital, senhor. – Joseph responde – Assim que o encontramos e percebemos que, por milagre, estava vivo, decidimos levá-lo de volta para casa, para que receba cuidados médicos.

— Muito... bem...

As pálpebras se fecham mais uma vez sobre os olhos da cor do mar e o movimento do navio se torna uma canção de ninar para Kaleb. A escuridão retorna, mas dessa vez fragmentada pelo contorno dos raios que a quebram como ao céu de tempestade. A respiração se acalma, recuperando lentamente o fraco controle e o duro contato com a madeira do convés é esquecido. Por um tempo indeterminado, o capitão permanece suspenso em um estado que não é nem consciência e nem inconsciência, estando entre os dois como um náufrago que o mar não consegue decidir entre salvar e afogar.

Entretanto, logo os sons do porto chegam para quebrar esse estado e despertar o capitão. Com a ajuda de Joseph, o dono dos olhos da cor do mar se coloca de pé, sentindo o quase inexistente toque da garoa sobre a pele. Com cuidado, o marinheiro auxilia Kaleb na descida do navio, os passos do capitão ainda lentos e instáveis. Acima deles, os trovões retumbam como o bater de um coração desesperado, ansioso e angustiado. As vozes dos trabalhadores do porto navegam pelo vento, gritando ordens e dando avisos do perigo no qual o mar está se transformando. As ondas quebram com uma violência ascendente contra as pontes de madeira, balançando os navios e ameaçando qualquer um que tente se aproximar da linha do mar.

— Vou levá-lo para casa, capitão. – Joseph diz, mas quando tenta guiar o líder para a trilha de saída do ancoradouro, sente o corpo ferido permanecer imóvel, a atenção dos olhos da cor do mar capturada pela única pessoa que se atreve a ficar próxima às ondas.

O negro e enrolado cabelo negro é imediatamente reconhecido pela memória de Kaleb. Aime. A presença da personificação da chuva faz com que o capitão questione se a estranha tempestade que se aproxima seria obra dela e dos irmãos. O dono dos olhos da cor do mar dá um passo na direção da conhecida mulher, mas o braço de Joseph que permanece como apoio corta o movimento, fazendo com que o capitão perceba que não está se movimentando sozinho.

— Capitão? – o marinheiro questiona não compreendendo.

— Vá. – Kaleb responde em tom de ordem, as írises da cor do mar ainda focadas na imagem da bela mulher – Leve os outros para um lugar seguro, longe do porto.

— Mas e o senhor? – Joseph pergunta, tentando impedir que o capitão continue a se mover.

— Eu tenho um assunto a resolver. – é a resposta dada com determinação.

Respirando fundo para reunir a força restante, Kaleb consegue se desvencilhar do abraço do marinheiro e, com uma última ordem, se volta para o caminho a ser percorrido até a personificação da chuva. Uma pequena parte da mente do capitão registra o som de Joseph guiando os outros para longe do porto, mas a maior parte se encontra focada na imagem à beira do mar. Os fios negros que balançam com o soprar do vento, o longo vestido molhado, a barra suja de areia e os lábios intensamente arroxeados que se movem sem que o olhar de tempestade seja dirigido aquele que se aproxima.

— Você não deveria estar aqui. – a saudação de Aime é dita em um tom de voz que carrega em si o frio da garoa.

— Foi você? – Kaleb questiona escolhendo ignorar o velado aviso para ir embora – Foi você que criou a tempestade que atacou Leviatã, mas protegeu minha tripulação? É você que está controlando essa tempestade agora?

As perguntas fazem com os olhos azuis acinzentados sejam dirigidos de modo brusco para o dono dos olhos da cor do mar O capitão percebe como as írises de Aime brilham como uma tempestade de relâmpagos. Entretanto, há uma profunda e intensa incompreensão no olhar da personificação da chuva que é mascarada com raiva e frieza. Os lábios bem desenhados se abrem para falar, mas nenhum som escapa por entre eles. Outra voz é carregada pelo vento:

— Aime! – a voz família atrai tanto a atenção da chuva quanto do capitão – Por que uma tempestade como essa? – os trovões quase abafam as palavras ditas e a garoa se intensifica, se tornando mais pesada sobre a pele.

— Odete, essa tempestade não é nossa. – Aime responde ignorando a confusão expressa nos olhos da cor do mar.

— Do que está falando? – a Senhora do Mar questiona se aproximando da personificação da chuva.

— Você sabe que há consequências para suas ações. – há uma trêmula raiva na voz de Aime, um sentimento que não passa despercebido pelo capitão – O que mais poderia acontecer a um humano desejado por um de nós?

Por um momento, as írises da cor do mar encontram o olhar da cor da terra e, no olhar de Odete, Kaleb pode ver todas as palavras sussurradas na noite anterior.

— Você mostrou seu desejo. – Aime diz – Você o salvou. – um suspiro deixa os lábios arroxeados e a voz da personificação da chuva se torna mais calma e suave – Você conhece a regra: aqueles que amamos...

— Nós amaldiçoamos. – a Senhora do Mar completa, o olhar ainda preso ao do capitão.

O quebrar de uma onda soa como o despedaçar de um vidro na mente de Kaleb. O som captura a atenção dos olhos da cor do mar e, sem que possa compreender ou controlar, o capitão se aproxima das ondas. Os trovões ainda ecoam no firmamento e a garoa se transforma em chuva, caindo pesada e friamente sobre a praia. As ondas balançam, indo até a areia e retornando, em um movimento que hipnotiza e enfeitiça. Não há mais medo no coração do capitão quando as botas tocam a água, o mar chama e o capitão atende, as ondas envolvendo o corpo em um abraço que toca a cintura e arrepia a nuca.

— Kaleb. – o sussurro de Odete se perde na voz da tempestade, a tentativa da Senhora do Mar de se mover sendo interrompida pelo toque firme de Aime, que envolve o pulso e prende o mar na praia.

O olhar da cor do mar se eleva para o céu de cinzas e a luz de um raio quebra o feitiço do mar. Um momento tarde demais, pois quando o capitão toma conhecimento do que está acontecendo, o abraço das ondas o puxa para o fundo do mar. Kaleb tenta lutar e nadar para a superfície, mas a água se torna densa e forte, o segurando abaixo das ondas. O coração bate com medo e os pulmões ardem com a vontade de respirar, mas o mar não permite que o capitão se mova nem que capture o ar.

As águas o envolvem em um abraço firme, com um toque que penetra a pele, envolve os músculos e os ossos, preenchendo os órgãos internos e brigando por espaço com o sangue nas veias e artérias. A escuridão começa a retornar à visão e à mente de Kaleb, mas dessa vez, há algo mais com ela, uma presença, um poder. A força que o paralisou na noite anterior volta a abraçá-lo, tomando conta do coração, fazendo-o bater lentamente. Sob o poder dessa força, a mente do capitão sucumbe, a consciência se desfazendo com o pensamento de um último nome.

Odete.

Horas, dias, anos, milênios se passam com a rapidez de um segundo. Distante, o som das ondas retorna e o toque sobre a pele já não é mais tão pesado, sendo mais suave e carinhoso. As pálpebras tremem e os olhos da cor do mar se abrem. A primeira coisa que as írises claras veem são pés. Muitos pares de pés. O capitão pisca tentando focalizar o olhar e encontra muitos corpos, muitas faces desconhecidas e, no meio delas, o familiar olhar de tempestade de Aime. Kaleb sente o leve deslizar de dedos sobre a face e vira o rosto, percebendo estar com a cabeça repousada sobre pernas dobradas. Olhos da cor da terra, emoldurados por longos e ondulados fios de bronze, o observam com um misto de felicidade e arrependimento.

— Perdoe-me. – a Senhora do Mar pede – Meu desejo o fez um de nós agora.

Uma das primeiras crianças do mundo. As palavras não ditas ecoam com naturalidade na mente do capitão. Todas as crianças vieram para saudá-lo? O carinho oferecido por Odete não é interrompido, continuando a seguir pela face e pelo pescoço em um toque que acalma e assegura, que faz da realidade o mais doce dos sonhos. Um pouco trêmulo, Kaleb ergue as próprias mãos, os dedos se entrelaçando nos fios de bronze e fazendo com que a Senhora do Mar abaixe e aproxime mais o próprio rosto, o longo cabelo acariciando a face do capitão.

— Minha vida e minha morte pertencem ao mar. – o sussurro é dito contra os lábios da cor do mar e antecipam um beijo roubado, retribuído com intensidade.

O primeiro de muitos a serem trocados durante os séculos que se seguem.


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Notas finais do capítulo

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