O Lobo da Bruxa escrita por Akiel


Capítulo 1
O Lobo da Bruxa




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O Lobo da Bruxa

 

Passos lentos ecoam no silêncio da noite, quebrando as folhas secas que formam o tapete que cobre a terra. As sombras dançam no atento e azul olhar, que observa com profunda atenção a trilha que se desdobra diante de si. É um caminho que muitos temem e são raros os que conseguem reunir a coragem necessária para segui-lo. Mas para o dono dos olhos azuis, não há caminho mais natural do que esse. A trilha para a Bruxa da Floresta.

A brisa o envolve em um fraco abraço, dançando ao redor do jovem sob a noturna quietude, quase como se questionasse por que ele está ali. Um sorriso nasce nos lábios tocados pela luz da lua. Ele não pode dizer o motivo que o levou a seguir a trilha da Bruxa, mas o jovem sabe que não pode retornar agora. A cada passo dado, o coração bate mais forte no peito, a adrenalina sendo como um veneno que corrompe o sangue.

Frio faz a pele pálida se arrepiar e o corpo parar. O olhar azul é dirigido para o céu, para a lua, que começa a se perder no abraço das nuvens cinzentas. Logo, geladas gotas d’água tocam a pele quente do jovem, o toque aumentando o sorriso nos lábios finos. A luz o deixou nos braços da escuridão, mas ele não tem a mínima intenção de desistir e retornar agora. Encontrar a Bruxa da Floresta tem sido o desejo do coração do rapaz por tempo demais.

O dono dos olhos azuis volta a caminhar e, escondido na música da chuva, ele consegue ouvir o baixo crocitar dos corvos. Os corvos da Bruxa da Floresta? Talvez ele finalmente esteja chegando ao coração da floresta. Os passos diminuem de velocidade e a mente procura pela origem do som dos corvos, um chamado para o lar da Bruxa. Apoiando as mãos nos troncos das antigas árvores, o jovem olha ao redor, tentando ver através da fina cortina da chuva. Um passo descuidado faz as mãos pálidas se arranharem na madeira e o corpo quase cair.

O movimento é acompanhado pelo quebrar de um galho, mas o rapaz tem certeza de que não há nenhum sob seus pés. Ele pensa por um momento e percebe que o som veio das árvores que escondem o caminho que ele já trilhou. O jovem se prepara e vira o corpo, mas no momento em que o movimento termina, ele sente dedos longos envolverem o pescoço com um firme toque, as unhas arranhando a nuca e puxando os curtos fios do cabelo negro. Entretanto, a pressão que limita o respirar perde a atenção do rapaz para os intensos e profundos olhos verdes que prendem o olhar azul com seu brilho de divertimento.

— De todas as pessoas que poderiam se perder na floresta, nós temos um príncipe. – as palavras são ditas em um sussurro que consegue derrotar a música da chuva e lábios intensamente vermelhos se esticam em um sorriso – Seus pais nunca o ensinaram a evitar o coração da floresta?

— Sim, minha dama. – o rapaz responde com dificuldade, mas ainda assim um sorriso se desenha nos lábios finos, intrigando a dona dos olhos verdes – Eles me ensinaram muito bem.

— Você tem certeza disso? – impondo mais força no toque que envolve e sufoca, ela obriga o rapaz a inclinar a cabeça para trás, deixando a garganta exposta para a afiada carícia das longas unhas – Você sabe quem eu sou, jovem príncipe?

— Você é a Bruxa da Floresta, a Dama dos Corvos. – ele responde não fugindo do atento olhar esmeralda.

— Isso está correto. – a Bruxa confirma com sorriso, diminuindo a força com que toca o jovem, transformando o toque que machucava em uma carícia que ameaça – E você é Dimitri, filho de Ulric e Luna. – o sorriso vermelho se intensifica – Diga-me, o que o neto da Lua e da Floresta procura em minhas terras?

— Você, minha dama. – o rapaz responde erguendo a mão e envolvendo o pulso fino e pálido, tocando a pele molhada e envolvendo os dedos que ferem e marcam.

O movimento e a calma que envolvem as palavras ditas paralisam a Bruxa em uma quietude repleta de hesitação. O som da chuva ecoa no silêncio e as gotas d’água formam um fino obstáculo que não impede o toque que queima as mãos unidas. As írises verdes procuram pelo olhar azul, o encontrando dominado pela sinceridade e pelo inocente prazer que é refletido no sorriso presente nos lábios pálidos. As sombras da desconfiança nascem nos olhos da Bruxa e quando ela volta a falar, uma velada ameaça, até então ausente, acompanha as palavras:

— E por que você procuraria por mim, sabendo quem eu sou?

— Exatamente por saber quem é que eu a procuro, minha dama. – Dimitri responde afastando a mão envolta em seu toque e levando-a até os lábios, oferecendo um beijo misturado com chuva – Eu desejo conhecê-la e o reino que tem sob seu comando. – o jovem príncipe se ajoelha, sem libertar a Bruxa de seu toque ou as írises verdes de seu olhar – Se tal honra me for permitida.

— E por que um príncipe procuraria por uma honra como essa? – a Bruxa liberta a mão do toque do rapaz e envolve a mandíbula fina com os dedos, as unhas arranhando e ameaçando rasgar a pele.

O príncipe não treme sob o dolorido toque e os olhos azuis não perdem a determinação com a qual observam a Bruxa da Floresta. Diante da postura destemida do rapaz, a Bruxa aumenta a força com que as unhas beijam a face pálida e as gotas de chuva se tornam fogo sobre os cortes que se abrem, guiando o sangue pela trilha da pele molhada até a grama manchada pela terra. Mesmo com a dor que faz os músculos enrijecerem, Dimitri não demonstra medo ou hesitação, permanecendo ajoelhado em uma voluntária submissão à dona dos olhos verdes.

— Por quê? – o jovem rebate com um tom de voz calmo e estável que quase se mistura ao sussurro da chuva – Porque ele cresceu vendo os entalhes que um rei mandou fazer muitos anos atrás como um aviso para que se mantivesse distância da Bruxa da Floresta. Porque ele teve os pais amaldiçoados e ele mesmo nasceu marcado pela maldição lançada por ela. Porque mesmo quando dito para se manter distante, ele não podia evitar querer encontrá-la, vê-la e conhecer o coração da bruxa que pode ser o medo e o pesadelo de muitos, mas para ele é um sonho e um desejo.

Por quê?— o sussurro incrédulo deixa os lábios vermelhos sem que a dona dos olhos verdes possa perceber e faz com que um sorriso estique os lábios pálidos do jovem príncipe.

— Permita-me conhecê-la, minha dama. – ele responde – E talvez nós dois possamos encontrar a resposta para essa pergunta.

O crocitar dos corvos assusta a ambos e os retira momentaneamente um do outro. As unhas da Bruxa da Floresta afundam ainda mais na pele do jovem príncipe e o sangue goteja sobre a grama, assim como a chuva cai sobre a terra. Um fraco e baixo gemido consegue liberdade da boca do rapaz e um fogo frio parece dominar o olhar esmeralda. A Bruxa afasta a mão da face do jovem príncipe, o atento olhar procurando por algum sinal de mentira e manipulação nos olhos azuis e encontrando apenas um firme e sincero pedido.

Permita-me.

Por um longo momento, a Bruxa da Floresta permanece em silêncio, dividida entre a curiosidade e a hesitante desconfiança, entre aceitar e negar o pedido feito pelo rapaz. Na face de Dimitri, a Bruxa encontra a mesma força e resolução que fez Ulric superar o próprio trauma e desafiá-la em benefício de Luna. Entretanto, as ações do Rei Lobo foram feitas em nome da feiticeira enquanto as do príncipe são feitas por ela, a Bruxa. O jovem príncipe quer alcançá-la, conhecê-la. Ela deveria permitir?

— Você pode permanecer em minhas terras, se esse é o seu desejo. – a Bruxa finalmente responde – Mas se você fizer algo contra mim ou meu reino, eu mostrarei a você como seu pai conseguiu as cicatrizes que possui.

— Eu agradeço, minha dama. – Dimitri diz se levantando e exibindo um largo sorriso de satisfação.

— Venha. – a Bruxa comanda, escondendo o desconforto que sente a cada sorriso oferecido pelo príncipe – Essa parte da floresta ainda está dentro dos domínios de Fenris.

— Fenris? – o rapaz questiona com confusão colorindo a voz – A Floresta? Ele é real? – as palavras de Dimitri arrancam uma divertida risada dos lábios vermelhos da Bruxa.

— Você é filho de uma Criança da Lua e da Floresta. – ela diz sorrindo – Mas não acredita em Lathia e Fenris? – a Bruxa dá um passo na direção do rapaz, a curiosidade brilhando intensamente nos olhos verdes – Você acredita em mim, mas não acredita neles?

— Eu conheço as histórias sobre minha mãe e sei o que elas acabam dizendo sobre mim. – Dimitri responde observando a sincera curiosidade presente nos olhos da Bruxa – Mas minha mãe não sabe se deveria acreditar nessas histórias. Ela acredita em você, foi criada e amaldiçoada por você. Meu pai e meu avô foram amaldiçoados por você. Sua presença no meu mundo é mais intensa do que a de Fenris e Lathia. Para mim, você é mais real do que antigas histórias e contos. Você é mais real do que eles.

Por um momento, a incredulidade domina o olhar da Bruxa da Floresta, mas logo é substituída por uma honesta satisfação, que transforma o sorriso nos lábios vermelhos, retirando toda a malícia e deixando apenas o contentamento. Tal mudança é observada com profunda fascinação por olhos azuis que se recusam a perder qualquer detalhe da bela face da Bruxa. Internamente, o jovem príncipe questiona a origem das histórias que descrevem a Bruxa como alguém cercado por mentiras e jogos, dissimulações e manipulações. Dimitri consegue ver apenas uma poderosa mulher, cautelosa como qualquer outra pessoa com as próprias emoções.

— Siga-me. – a Bruxa ordena, dessa vez com um tom de voz mais suave.

O rapaz assente, caminhando ao lado da Bruxa. Os atentos olhos azuis continuam a observar a bela mulher, mas também são atraídos pela sombria beleza da trilha que seguem. As copas das árvores se entrelaçam e os longos galhos formam intricados arranjos, a grama se torna mais densa, acariciando os tornozelos com um carinho que ameaça prender e derrubar. A garoa nubla um pouco a visão e o céu dominado pelo cinza desaparece atrás das densas copas.

— Como ele é? – Dimitri questiona com um leve tremor de hesitação na voz – Fenris? Ele realmente é a Floresta?

— Ele é. – a Bruxa responde tocando o tronco de uma antiga árvore e sentindo e madeira arranhar a pele – A floresta nasceu dele, com ele. – o olhar verde é dirigido ao jovem príncipe, brilhando com intensa atenção – Tudo que você vê aqui, cada árvore, raíz e grama, está conectado a ele, faz parte dele. Tão inseparável quanto a pele que o cobre.

— Mas você vive no coração da floresta. – o rapaz diz – Você reina no reino dele?

— Eu nasci no coração da floresta, dentro do reino de Fenris. – a Bruxa responde, voltando a caminhar e passando por cima de um tronco caído – Por isso, nós temos um acordo. Ele reina na floresta, mas o coração pertence a mim.

— O coração de Fenris pertence a você? – a pergunta de Dimitri arranca uma baixa risada da Bruxa.

— O coração da floresta pertence a mim. – ela responde – O coração de Fenris pertence a Lathia.

— A Lua.

— Exatamente. – um sorriso vermelho é oferecido ao príncipe – Quer saber sobre ela também?

— Quero. – o rapaz responde sem pensar.

O sorriso nos lábios vermelhos aumenta e os olhos verdes são dirigidos para o céu além das entrelaçadas copas e do cinza de tempestade. Por um silencioso momento, as írises claras observam o firmamento quase como se procurassem por aquela que se tornou o assunto a ser discutido.

— Lathia é.. A lua. – a Bruxa diz voltando a atenção para o rapaz – Bela, altiva, uma rainha. Ela reina no coração Fenris como a lua domina a noite. Lathia é a luz que afasta a escuridão de Mirala e ilumina o caminho daqueles que se aventuram a caminhar sob o manto noturno. A lua e a luz da noite são as manifestações do poder dela. Assim como a floresta é de Fenris.

— E Lathia e Fenris são os pais de minha mãe? – Dimitri questiona.

— De Luna e de muitos outros feiticeiros e feiticeiras. – a Bruxa responde de modo distraído – Algumas já morreram, algumas ainda nem nasceram, mas as crianças sempre existirão.

— Você as conhece? – a curiosidade ecoa na voz do jovem príncipe.

— Eu sempre as conheço. – a Bruxa responde com satisfação pesando na voz.

— Você as amaldiçoa? – o rapaz pergunta desviando de um baixo e longo galho – Como fez com minha mãe?

— Às vezes. – a dona dos olhos verdes responde e o jovem príncipe sente que não conseguirá uma resposta mais elaborada da Bruxa.

— Por que diz que as crianças de Lathia e Fenris sempre existirão? – ele decide questionar.

— Porque não importa quantas mudanças aconteçam no mundo, quantas crianças nasçam e morram, eles permanecerão. — a Bruxa responde – Nós sempre permaneceremos.

— Há outros? – Dimitri pergunta com genuína e excitada curiosidade – Como você? Como eles?

— Muitos outros. – é a resposta dada pela boca escarlate – Loras, Mirala, Renei, Aime, Kirahe, Castelli, Thyron, Odete... E até mesmo Kaleb. – um suspiro escapa pelos lábios da Bruxa – Nós somos muitos.

— Muitos nomes. – o príncipe comenta atraindo a atenção da Bruxa – Você tem um nome, minha dama?

— Tenho. – ela responde com um sorriso nos lábios finos.

— Posso conhecê-lo? – a intensa resolução retorna aos olhos azuis, mais uma vez conseguindo incomodar e desconsertar a Bruxa da Floresta.

— Se você provar que é merecedor de tal honra. – ela responde com zombaria na voz. Entretanto, o jovem príncipe apenas sorri antes de responder:

— Eu aceito o desafio, minha dama.

Em meio ao assoviar do vento e o sussurro da chuva, o tilintar metálico do balançar de correntes pode ser ouvido. O som captura a atenção do rapaz e os olhos azuis analisam o local onde seu dono se encontra tentando encontrar o que ele espera ser a origem da metálica sinfonia. Sem perceber os movimentos do próprio corpo ou o sorriso vermelho que o acompanha, o jovem príncipe caminha, perseguindo o som e logo sendo capaz de distinguir os contornos das correntes de um antigo balanço, preso aos longos galhos de um antigo e espesso carvalho. A larga copa verde protege o balanço da chuva e oferece abrigo contra a tempestade. Dedos pálidos envolvem o gelado metal e um sorriso admirado nasce nos lábios sem cor.

— Luna contou a você sobre o balanço. – a Bruxa comenta observando a fascinação com que o jovem segue os contornos das correntes.

— Sim. – Dimitri confirma – Ela me contou que passava horas no balanço, ouvindo o crocitar dos corvos.

Como se tivessem ouvido sua menção, os corvos crocitam nos galhos das árvores, o som ecoando como o estalido de diversos galhos sendo quebrados e assustando o jovem príncipe, que troca o toque do balanço pela tentativa de identificar os pássaros que parecem provocá-lo. Diante da reação de Dimitri, a Bruxa deixa que um largo sorriso nasça nos lábios vermelhos. A fascinação do jovem príncipe pela floresta é muito semelhante a de Luna. Mesmo com o coração de guerreiro e rei que fora herdado de Ulric, Dimitri ainda possui a conexão com a Floresta presente em todos os feiticeiros e feiticeiras.

— Você quer saber como é? – ela questiona se aproximando do rapaz – Balançar ao som dos corvos?

— Eu... – Dimitri começa a responder, os dedos envolvendo a corrente firmemente – Eu quero.

O sorriso escarlate se torna ainda mais satisfeito e as longas unhas arranham os cortes ainda abertos sentindo o príncipe tremer sob o toque. Os olhos azuis procuram pelo verde olhar e a voluntária submissão presente no olhar do rapaz faz com que algo dentro da Bruxa se inquiete. Dimitri não se submete por medo nem como um modo de desafiá-la, mas porque deseja se submeter. Luna fugiu, Ulric a desafiou, mas Dimitri a procurou, a quis. Encontrá-la foi o desejo do jovem príncipe, mas o por que ainda permanece oculto.

O toque da Bruxa se desloca para o ombro do rapaz, o guiando a se sentar no balanço. O príncipe obedece sem questionar, colocando as duas mãos nas correntes e relaxando os pés sobre a grama. Os corvos começam a crocitar, cada vez mais alto, como se incentivassem ou provocassem Dimitri. O jovem procura pela Bruxa, cujo toque se moveu do ombro para os pulsos do príncipe, seguindo os contornos das mãos e parando acima do toque que envolve o metal. Ela sorri para o rapaz e coloca impulso nas correntes, iniciando o movimento do balanço.

Dimitri levanta os pés e se deixar guiar pelo movimento, o olhar deixando a Bruxa e se voltando para a grama manchada de terra. O balançar despertar na mente do príncipe desperta memórias de outro balanço, colocado no jardim do castelo, onde ele passou muitas tardes sendo balançado por uma bela feiticeira. Mas a sensação é outra. Com a mãe, Dimitri se sentia seguro, ansioso para saltar do balanço e correr para os braços do pai.

Com a Bruxa.... É diferente. Dimitri se sente inquieto na presença da bela mulher e ao mesmo tempo se sente dominado por uma calma quase sobrenatural. Quase como estar no meio de uma tempestade com o rugir dos trovões fazendo o coração bater mais depressa e o toque da chuva prometendo que tudo irá ficar bem no final. Estar com a Bruxa é como estar o mais próximo possível daquilo que o coração mais desejou e ainda não poder tocar, não ser capaz de alcançar. Como perseguir um fantasma. Por muito tempo, a Bruxa da Floresta não passou de um nome para o príncipe, um fantasma de histórias antigas e memórias marcadas na pele, no silêncio do Rei Lobo. Mas agora ele a encontrou e ainda não pode alcançá-la. Isso ainda não foi permitido a ele.

Em silêncio, a Bruxa observa o jovem príncipe, as mãos segurando e soltando as correntes do balanço. Há algo em Dimitri que o diferencia das outras crianças do mundo, algo que o faz ser diferente de Ulric, o faz ser mais. Os olhos verdes se enchem de curiosidade e o coração intrigado pede por um teste, para que um desafio seja colocado para o príncipe. Diante do pensamento, os lábios vermelhos se esticam em um sorriso pintado de travessura. Ela assiste aos movimentos de Dimitri e percebe quando o rapaz começa a dobrar as pernas para parar o balanço. E assim que os pés do príncipe tocam a grama, correntes envolvem os tornozelos do rapaz e o puxam para a terra, queimando tecido e pele no processo.

Um gemido de surpresa e dor escapa dos lábios pálidos e o som dos braços descobertos se chocando contra o solo ecoa pela floresta, aquietando os corvos. A Bruxa permanece em silêncio, vendo o príncipe erguer o tronco, o olhar azul procurando o ferro que envolve e prende os tornozelos feridos. Dedos pálidos tocam as argolas das correntes e, sob o suave toque, o metal começa a se desfazer. Surpresa invade o olhar verde da Bruxa, que ganha como resposta um suave sorriso do príncipe. O gesto faz com que o choque desapareça e um sorriso volte a se desenhar nos lábios vermelhos.

— Um Príncipe Lobo e um Príncipe Feiticeiro. – a Bruxa comenta em um tom de voz contemplativo, se aproximando do príncipe caído sendo acompanhada pelo sussurrar da ameaça a cada passo dado. Ela se abaixa ao lado de Dimitri e envolve a mão que tocou as correntes em uma carícia leve e analítica – Você possui a magia de Luna. – a boca escarlate toca os dedos pálidos em um beijo que não chega a se realizar – O poder que eu a ensinei a usar.

— Sim. – o rapaz responde, permanecendo imóvel sob os toques da Bruxa – E ela me ensinou.

Ante o comentário, o sorriso vermelho se expande e uma breve risada escapa por entre os lábios finos. Entretanto, quando os olhos verdes encontram os primeiros sinais da luz que começa a vencer a escuridão da tempestade e iluminar a grama, o sorriso se suaviza e a Bruxa solta a mão do príncipe. Dimitri segue o olhar da bela mulher e encontra os finos e fracos raios de sol que iniciam a quebra do feitiço da noite.

— É a vez de Loras reinar. – a Bruxa diz – Você deveria retornar ao seu reino, jovem príncipe. – com essas palavras, a dona dos olhos verdes se levanta e começa a se afastar, seguindo na direção de uma casa de madeira que até então Dimitri não havia percebido existir.

— Poderei retornar ao seu reino, minha dama? – o príncipe questiona sem conseguir esconder a ansiedade que colore a voz.

— Se assim o desejar. – a Bruxa responde sem se virar para o rapaz, ocultando assim, o suave sorriso que estica os lábios vermelhos.

Entendendo a permissão dada, Dimitri começa a se levantar, mas volta a cair ao sentir as sombras que passam e param a poucos passos. Os corvos da Bruxa, todos com os corpos em forma humana, se encontram parados no início do caminho tomado pela Dama que os comanda. Para o príncipe, o aviso é claro. Você pode retornar, mas não pode segui-la.

O som dos fracos passos do príncipe na terra molhada ecoa na mente nublada, junto com a reverberação do toque de fogo das correntes da Bruxa. Dedos pálidos tocam os troncos úmidos das árvores, sentindo o toque áspero arranhar a pele. O silencio do despertar da floresta inquieta ainda mais o coração que bate ansioso e irrequieto no peito. O jovem príncipe não consegue acreditar que realmente – finalmente— encontrou a Bruxa da Floresta.

A mera lembrança da Dama dos Corvos é o suficiente para colocar o coração do príncipe em frenesi, em um desespero tão profundo que o impede de ver o tronco caído em meio à grama. O jovem cai com um baque surdo, o impacto reacendendo as chamas das queimaduras causadas pelas correntes da Bruxa. O jovem utiliza os braços como apoio para erguer o tronco e puxar as pernas, deixando-as perto o suficiente para serem tocadas pela magia que envolve uma das mãos do príncipe.

Entretanto, quando os dedos são erguidos, algo captura a atenção de Dimitri, paralisando todo e qualquer movimento. A luz do sol, da manhã, que banha e aquece a pele pálida e arranhada. Loras. Esse foi o nome dito pela Bruxa. O dia é o reino dele. O jovem, então, se recorda dos outros nomes citados pela Bruxa da Floresta, diferentes dos nomes de Fenris e Lathia.

Quantos eles são? Quais são os reinos deles? Qual é o nome dela? Os pensamentos nascem com a rapidez e a intensidade de relâmpagos na mente do príncipe, que abaixa a mão, decidindo deixar as marcas do toque das correntes, do toque dela. Espalmando as mãos na terra molhada, o jovem se coloca de pé, a ardência das queimaduras aumentando e se espalhando pelos pés e pelas pernas do príncipe. Os passos dados se tornam mais trêmulos e desbalanceados, a dor criando pequenos pontos de luz em meio a neblina que preenche a mente turbulenta de Dimitri.

Dor. A Bruxa causa apenas dor. É o que dizem sobre a Bruxa da Floresta e agora o príncipe tem a prova dessas palavras marcada na pele, transformando um ato simples como caminhar em uma longa e lenta tortura. Mas mesmo com tal marca, Dimitri não consegue sentir raiva ou ódio da Bruxa. Mesmo cambaleante ao andar, o jovem príncipe ainda se vê tentado a parar e retornar ao reino da Bruxa da Floresta.

Um baixo som, como o estalido de um galho sendo quebrado, captura a atenção do rapaz. Olhos azuis procuram pela origem do barulho, tentando distinguir alguma pista em meio ao quadro de luz e sombras formado pelos vãos entre as árvores. E entre os altos e grossos troncos de duas antigas árvores, Dimitri encontra um belo lobo branco. O animal possui pelos da cor da neve, levemente sombreados, como se tivessem sido banhados com as cinzas de uma floresta incendiada. O olhar dourado do lobo prende o jovem príncipe com a intensidade da atenção com que o observa. Nenhum músculo se move sob os fios brancos acinzentados, o lobo permanece parado, imóvel como uma estátua entre as árvores.

Hipnotizado pela visão do lobo, Dimitri decide tocá-lo, em uma tentativa de confirmar que o que vê é real e não apenas uma ilusão da floresta. Entretanto, assim que ergue a mão, o príncipe percebe uma sombra dançar brevemente sobre a pele pálida e, com a visão periférica, os olhos azuis distinguem uma mão bronzeada marcada pelas linhas escuras de uma tatuagem. Intrigado e alerta pela nova presença, Dimitri vira o corpo para poder confrontá-la, mas assim que o movimento termina, o príncipe não encontra ninguém. O olhar azul, então, se volta para o lobo, também não o encontrando mais. Adrenalina dispara o coração e um pensamento invade a mente do jovem rapaz, expressando ao mesmo tempo algo impossível e desejado.

Fenris?

 

Ar não encontra caminho até os pulmões do príncipe, que sente como se estivesse na beira de um precipício, prestes a cair. A mão vista, poderia pertencer a Fenris? O jovem não se encontra mais no coração da Floresta, o rapaz está nos domínios de Fenris agora, no reino do avô.

— Fenris? – Dimitri chama com a voz trêmula, apenas um pouco mais alta do que um sussurro.

O príncipe sente algo se movimentar entre as árvores e os olhos azuis procuram de modo frenético por algum sinal, seja de alguma outra pessoa ou de um lobo de pelo acinzentado. Entretanto, por mais que se movimente e procure, o rapaz encontra apenas a solitária luz de Loras banhando a floresta com o brilho da manhã. Nenhum sinal de pelugem branca e cinza ou de mãos cobertas por negras linhas.

Um medo gelado invade o coração e domina o sangue do jovem príncipe, que agarra o tecido da camiseta, exatamente sobre o ponto onde o órgão bate de modo desesperado no peito. Sentindo cada músculo sob a pele tremer e algo implorar para que a floresta seja abandonada, Dimitri permite que o corpo assuma a forma herdada do pai. Sem pensar, o Príncipe Lobo corre pela floresta, pulando galhos e troncos caídos e esquecidos, sentindo os braços as árvores atravessarem o pelo negro e agarrarem a pele. Ainda assim, o lobo não para, nem ao menos pelo segundo necessário para reconhecer a dor dos arranhões. A única coisa que Dimitri sente é o instinto que o impulsiona a correr a procura da saída da floresta.

Não demora para que a corrida leve o lobo até o objetivo desejado. Ao ver as altas torres do castelo, o príncipe sente o peso invisível que comprimia o coração desaparecer e o peito se tornar mais leve. Deixando o ar dos pulmões escapar lentamente pelos lábios, Dimitri volta a se apresentar como um jovem rapaz, mas o primeiro passo dado em direção à ponte de pedra é cambaleante e o príncipe cai sobre a grama. O som atravessa o fosso sob as pedras, alertando os guardas de vigília na entrada da fortaleza.

Dois soldados deixam o posto, atravessando a ponte sob os olhares atentos dos companheiros que permaneceram diante da alta e larga porta de madeira. Com passos cautelosos, os dois homens se aproximam da figura caída, que luta para se colocar de pé. Um breve momento é o tempo necessário para que Dimitri seja reconhecido e os guardas corram para auxiliá-lo. Se sentindo envolto pelos toques firmes dos soldados e a cabeça começar a doer devido a urgência presente nas vozes que questionam o estado em que se encontra, o jovem príncipe ergue a mão em um mudo pedido por silêncio.

A solicitação é imediatamente atendida, os soldados há muito acostumados a reconhecerem gestos com a mesma facilidade e rapidez das palavras. Um profundo suspiro escapa dos lábios finos do príncipe, que apoia as mãos nos ombros dos guardas, usando-os como sustento para se manter em pé. Dimitri tenta dar um passo à frente, sentindo a frieza das pedras que formam a ponte sob o pé descoberto. Como contraste, a luz de Loras é um toque quente e revigorante na pele desprotegida do jovem príncipe. Os olhos azuis são dirigidos para o caminho percorrido, para a floresta e suas trilhas entrelaçadas pelas raízes das árvores e protegidas pelas largas copas.

Lá, no coração da floresta, na presença da Bruxa, ele sentiu algo. A realização de um sonho que não chegou a se concretizar por completo, um conto antigo misturado com uma realidade que não pode ser alcançada, não é possível para o príncipe compreender completamente e definir os próprios sentimentos. Mas aqui, na ponte com os soldados que servem tão lealmente a ele, uma lealdade nascida do respeito pelo Rei Lobo e sua Rainha Feiticeira, Dimitri se sente em casa. Como um feitiço que foi quebrado, fazendo-o retornar ao ponto em que estava antes de encontrar A Bruxa da Floresta.

Um sonho. Foi tudo um sonho? O pensamento faz o alivio encontrado ao deixar a floresta se desfazer e o peito do príncipe volta a pesar como se o coração estivesse brigando para se livrar de correntes que o envolvem com a ameaça de destruí-lo. As írises azuis são contornadas de vermelho e os olhos ardem com as lágrimas que nascem, mas que Dimitri se recusa a deixar escorrer. A decisão faz com que os músculos da garganta se tornem tensos, machucando e bloqueando a voz. Os dedos que se apoiam nos ombros dos soldados tremem e as mãos que seguram a cintura do príncipe se tornam mais firmes.

— Meu príncipe? – um dos guardas chama olhando para a face jovem e angustiada.

— Ajudem-me a chegar ao castelo. – Dimitri pede em um sussurro rápido e trêmulo – Não deixem que avisem meus pais.

— Sim, meu príncipe. – os guardas respondem em uníssono ao mesmo tempo que trocam olhares preocupados.

Com o auxílio dos soldados, o jovem caminha com passos que se fortalecem a cada metro percorrido. A respiração pesada escapa por entre os lábios pálidos e entreabertos, encontrando o equilíbrio junto com o corpo machucado. O olhar azul permanece focado na ponte, nos contornos das pedras que se encontram e se juntam para formar o caminho que separa a floresta do reino do Rei Lobo. A cada toque dos pés sobre a superfície dura, a força parece despertar nos músculos do príncipe, devolvendo a energia ao corpo cansado.

Os guardas que permaneceram na entrada do castelo reconhecem a figura que se aproxima ladeada pelos companheiros e dão um passo à frente no intento de oferecer auxilio ao príncipe ferido. A oferta é agradecida com um movimento da cabeça, mas negada pela mão arranhada do jovem rapaz, que solta os ombros em que se apoia, conseguindo se manter de pé sozinho. Dimitri respira fundo e tenta sorrir de forma reconfortante para os soldados, mas o jovem príncipe não consegue sentir os lábios se esticando para formar o sorriso.

— Fiquem aqui. – o rapaz diz conseguindo colocar mais firmeza na voz – E lembrem-se: meus pais não precisam saber.

— Meu príncipe. – os soldados respondem em reconhecimento da ordem e fazem uma curta reverência.

Dimitri assente devagar e então começa a caminhar para a lateral esquerda do castelo, procurando pela entrada colocada entre as paredes de pedra e usando-a para entrar na fortaleza. Cada passo dado leva o jovem príncipe para mais próximo da segurança do próprio quarto, cada metro sendo percorrido com a cautela necessária para não ser percebido. A última coisa que Dimitri deseja é encontrar outros soldados ou algum servo e, principalmente, os pais. Mas, ao mesmo tempo, o desejo de encontrar a mãe nasce e queima no coração do rapaz.

O toque firma e áspero da madeira que guarda a entrada do quarto é como um bálsamo que derrama calmaria sobre a mente inquieta, aquietando os batimentos não menos fracos do coração. O príncipe abre a porta, quase tropeçando em si mesmo ao entrar no aposento e o som da entrada sendo fechada traz a certeza da segurança e da separação do jovem príncipe do resto do mundo.

Respirando fundo, Dimitri se força a continuar a caminhar, se dirigindo até a banheira, que já foi enchida em espera do príncipe. Um rápido toque revela o frio que tomou conta do banho preparado. O mesmo toque, entretanto, devolve o calor roubado da água pelo tempo e o jovem príncipe logo se coloca em meio ao caloroso e relaxante abraço. Um trêmulo suspiro escapa por entre os lábios do rapaz quando o calor envolve as queimaduras nos tornozelos e os dedos molhados contornam os cortes deixados na face jovem.

Os machucados já foram fechados, mas a pele pálida permanece sensível e a dor que os toques fazem renascer traz consigo as correntes que prendem a garganta e sufocam a voz do príncipe. O rapaz apoia o pescoço na borda de madeira e os olhos azuis miram o teto do aposento, a mente formando imagens disformes com as sombras da manhã que brincam na superfície. Sem que Dimitri perceba ou possa controlar, as sombras se esticam em longas e negras asas e finos bicos que se abrem em silenciosos crocitares. Ao compreender as imagens criadas sem autorização, o príncipe ergue o tronco, afastando o olhar das sombras e se concentrando em pegar o óleo necessário para limpar a pele.

A espuma formada cobre e esconde o corpo do príncipe, que encosta os joelhos no peito e neles apoia a testa, os dedos esparramando a espuma pelo cabelo negro. As pálpebras se fecham para proteger os olhos azuis e na escuridão que envolve a mente do jovem, surge um intenso e verde olhar, acompanhado por um fino e divertido sorriso escarlate. A força do reconhecimento da imagem faz com que o corpo do príncipe ganhe impulso para trás, batendo contra o contorno da banheira. Os olhos azuis se abrem e são tocados pela espuma, o que arranca um sibilar de dor dos lábios pálidos.

Cansado dos pensamentos que o assombram, Dimitri retira a espuma que ainda o cobre e deixa a banheira para trás, os passos molhados marcando o chão de pedra e os questionamentos que insistem em nascer na mente do jovem príncipe. A noite passada ao lado da Bruxa da Floresta teria sido apenas um sonho? Uma ilusão criada pela mente cansada de procurar pela única personagem das antigas histórias capaz de conquistar e dominar a atenção do jovem príncipe? Um suspiro frustrado escapa por entre os lábios do rapaz e a roupa é puxada com força contra o corpo.

Com a camisa aberta e os pés descalços tocados pela barra da negra calça, Dimitri se retira do quarto, a respiração presa na garganta e o coração batendo com intensa ansiedade. Cada passo dado nos corredores pouco movimentados é marcado pela busca dos olhos azuis pelas imagens entalhadas nas portas de madeira. A história que ele ouviu mil vezes e sempre sonhou viver. O Rei Lobo e a Bruxa da Floresta.

O jovem príncipe se aproxima de uma das portas, os dedos seguindo os contornos do desenho gravado na madeira. A imagem de um rei amaldiçoado ajoelhado aos pés de uma Bruxa. Um erro. Foi um erro. O pensamento invade a mente do rapaz e as unhas curtas arranham a superfície marcada. Procurar por ela, sonhar com uma noite sob o toque dela... O jovem príncipe não consegue afastar a sensação de que o que viveu ao lado da Bruxa da Floresta foi apenas isso, um sonho. A pesada e concreta presença do castelo afasta qualquer certeza sobre a noite anterior e, mais do que nunca, a Bruxa parece ser um fantasma, um sonho impossível de ser alcançado.

Sentindo o peito pesado pela dúvida, o jovem príncipe se afasta da imagem gravada e caminha em direção à escadaria, descendo um degrau de cada vez, o som abafado dos pés desnudos servindo de guia e âncora para a mente de Dimitri. Ao passar pelo último degrau, o príncipe toca a maçaneta da porta que dá acesso ao salão. Com movimentos cuidadosos, de modo a não atrair a atenção para si com qualquer barulho, o rapaz abre a porta e pisa no chão de pedra, as costas sendo apoiadas em uma das paredes que ladeiam a entrada de madeira.

Entretanto, todo cuidado tomado pelo jovem príncipe não é o suficiente para impedir que olhos tão azuis quanto os de Dimitri o encontrem. Sob o olhar do rei, o príncipe treme e o silêncio que segue a mudança de atenção do soberano só colabora para aumentar o desconforto do rapaz. Com um movimento da mão, o rei pede que os conselheiros aguardem e então caminha em direção ao jovem príncipe, cada passo sendo dado com a imponência que é esperada de um rei.  O tempo deixou suas marcas na face e no cabelo do soberano, mas ainda assim a beleza do Rei Lobo está presente para os olhares de todos.

O olhar de Ulric procura por seu reflexo de cor nos olhos de Dimitri. O soberano percebe o desconforto do filho e toca o pescoço pálido, atraindo o brilhante olhar para si. Nos olhos do pai, o príncipe pode ler a muda pergunta: “Você está bem?” Os dedos do rei tocam as novas e finas linhas que marcam a face do jovem rapaz. Um fraco e tentativo sorriso estica os lábios pálidos de Dimitri.

— Eu estou bem, pai. – ele responde tocando o punho do pai, mas sem afastar o carinho, apenas se segurando nele. Hesitante, Ulric assente, aceitando as palavras do filho – Onde está a mamãe?

O rei faz um movimento com a mão livre, como se estivesse revelando uma flor invisível, e o príncipe compreende a resposta dada. “Nos jardins” Entretanto, antes que Dimitri possa fazer qualquer movimento, Ulric o puxa contra o peito, os braços envolvendo o filho em um forte e firme abraço.

— Estes lábios estão selados. – o soberano sussurra contra o cabelo negro do jovem príncipe.

Dimitri retribui o abraço com a mesma força com que o recebe e fecha os olhos, reconhecendo o significado por trás das palavras ditas, da voz que apenas se manifesta quando aquele que a possui deseja dizer eu te amo, deseja fazer com quem o ouve se lembre o quanto é importante é para o rei. Junto com o reconhecimento, o príncipe também sente o peso carregado pelo poderoso soberano.

O peso de uma maldição.

Com o cuidado de manter o sorriso seguro nos lábios, o príncipe se desvencilha do abraço do pai e com um aceno, se despede, seguindo em direção à porta na parede oposta, que oferece caminho para os jardins. Ulric acompanha o distanciamento do filho, reconhecendo que algo deve ter acontecido durante a noite. Entretanto, o rei conhece o herdeiro e sabe que ele só irá falar quando estiver pronto para tal e que, quando isso acontecer, quem Dimitri procurará para ouvi-lo será a mãe. Um sorriso suave nasce na boca do soberano. Luna sempre foi o refúgio de Dimitri, assim como a feiticeira sempre foi o castelo do Rei Lobo.

Tendo deixado o salão para trás, o jovem príncipe caminha pelo corredor externo, vendo a vila que vive e cresce sob a sombra e a proteção do castelo. Os passos do rapaz, mais calmos e firmes, o conduzem até a escada próxima a entrada da torre sudoeste. Os degraus são descidos de maneira distraída, o olhar azul deixando os contornos da vila para se focar no jardim que nasceu ao redor do castelo assim que uma feiticeira se tornou a rainha. Entre as coloridas rosas e tulipas, o príncipe encontra mãe, os longos cabelos negros, levemente marcados pelo branco do tempo, caindo e escondendo o rosto da soberana quando ela se inclina para cortar o caule de uma rosa vermelha.

Sem perceber, Dimitri sorri, sentindo o peito mais leve e a mente mais quieta. Seguindo pela trilha das flores, o príncipe se abaixa, colhendo uma tulipa branca e brincando com ela entre os dedos. Ao se aproximar da mãe, o rapaz afasta os negros fios e coloca a flor sobre a orelha da rainha. Alertada pelo súbito toque, Luna sorri ao reconhecer o filho e o ajuda a ajeitar a tulipa. Quando a tarefa é terminada, o sorriso nos lábios da soberana enfraquece, o olhar negro percebendo as fracas linhas na face do príncipe. Reconhecendo o olhar da mãe, Dimitri sorri em um mudo pedido de desculpa.

— Você está bem? – ela questiona tocando o rosto do filho.

— Estou bem, mãe. – o rapaz responde beijando a testa da rainha.

É claro para o príncipe que a mãe não acredita na resposta dada, mas, como sempre, ela não o pressiona. A soberana entrega o cesto de vime, onde estava colocando as flores, para o filho e começa a caminhar, o olhar negro procurando por mais rosas e tulipas para colher. Transformando o sorriso de escusa em um mais calmo e suave, Dimitri segue a mãe, observando como a caminhar da rainha é semelhante ao do rei. Ambos demonstram imponência e conquistam respeito ao caminharem. Ambos são fortes e corajosos, sem medo de lutar para viver e escapar. Sem medo de se sacrificarem. O Rei Lobo e a Rainha Feiticeira não se ajoelham perante uma bruxa e pedem por permissão para conhecê-la, eles lutaram e se machucaram para escaparem, não para estarem com ela. Um leve suspiro escapa por entre os lábios do príncipe.

— Mãe? – Dimitri chama com uma fraca hesitação na voz – Você acredita que é possível para alguém escapar de ser amaldiçoado?

— Uma das primeiras coisas que eu aprendi com a Bruxa foi que há uma magia nesse mundo da qual ninguém pode escapar. – Luna responde enquanto se abaixa para colher uma tulipa vermelha – Você pode desafiá-la, vencê-la, se submeter a ela, mas você irá enfrentá-la. O que irá resultar desse encontro dependerá apenas das suas decisões. – a rainha sorri para o filho e continua a caminhar.

Então talvez a Bruxa da Floresta seja a magia do mundo que o príncipe tem que enfrentar. Confrontar com submissão em um encontro que se transforma em sonho quando termina? Com perguntas que são respondidas de acordo com a vontade dela? Com uma presença que é desafiada e testada com toques que cortam e queimam? Por um momento, o olhar azul se dirige para além da vila, para a floresta na fronteira. Para o verde que esconde um carvalho com um balanço, uma Bruxa com um sorriso de sangue e um lobo de pelo branco e cinza.

— Mãe, uma vez você me disse que não acreditava nas histórias sobre você, sobre Lathia e Fenris. – o príncipe diz com mais firmeza na voz.

— Eu nunca conheci Lathia ou Fenris. Conheci apenas a Bruxa. Para ela, eu era um meio de ganhar mais poder.– Luna rebate colocando mais flores no cesto que o rapaz carrega – Só conheci Lathia e Fenris através do seu pai, das histórias que ele me contou e me mostrou, gravadas nos livros do castelo. Antigos contos de épocas passadas.

— Mas as histórias falam sobre outros? – Dimitri questiona recordando dos nomes ditos pela Bruxa – Há outros como a Lua e a Floresta?

— Sim, meu príncipe. – Luna responde sorrindo e batendo no nariz do filho com uma rosa – Há muitos outros, cada um descrito como a manifestação de uma parte da Natureza: Loras é o Sol, Odete é o Mar, Mirala é a Noite, Kirahe é o Dia e Castelli, a Terra. Aime é a Chuva, Renei, o Relâmpago e Thyron, os Trovões. Há muitos mais, muitos nomes para ainda mais fragmentos da Natureza. Somente um é dito como sendo diferente: Kaleb.

— Por que ele é diferente? – o jovem príncipe pergunta, reconhecendo o nome. O último dito pela Bruxa.

— Não é dito. – a rainha responde, caminhando para outra parte do jardim, os dedos tocando os heliotrópios e colhendo um cravo azul. O olhar negro é dirigido ao príncipe com mais compreensão do que Dimitri espera ou se sente confortável em reconhecer – O mesmo vale para a Bruxa. As histórias não dizem o que ou quem ela realmente é.

— Você a odeia? – o príncipe questiona sentindo a voz tremer na garganta.

— Eu nunca cheguei a odiá-la. – Luna responde – Eu a temia. Ela me amaldiçoou, prendeu minha voz com um feitiço, ameaçava roubar meu poder, me desafiava cada vez mais.

— Mas você fugiu. – Dimitri diz sem pensar.

— Sim, eu não aguentei mais. Eu fugi e, na floresta, eu conheci um rei. – um suave sorriso estica os lábios finos de Luna – Amaldiçoado como eu, torturado pela mesma Bruxa que me fazia prisioneira. E então, ela nos desafiou, tentou nos machucar de novo. E seu pai me protegeu, ele pegou a minha maldição para me salvar, para ganhar minha liberdade. Depois disso, ela desapareceu. Por mais de vinte anos, ela não se manifesta para nós, não nos ameaça ou desafia.

— Por quê?

— Talvez ela tenha novos alvos. Talvez ela tenha conseguido o que queria de nós.

— E o que isso seria?

— Quem sabe? – a rainha responde afastando os fios que tentam ocultar os olhos azuis – A Bruxa é incompreensível. Ela é poderosa e livre, com motivos e atos que somente ela compreende. Ela é como uma força da natureza, uma magia para ser enfrentada e superada. – Luna permanece um momento em silêncio, os dedos contornando o rosto do príncipe – Mas se ela não tivesse me forçado ao limite, eu não teria fugido e, então, eu não teria conhecido o seu pai e não teria você. E eu não seria feliz como eu sou agora.

Dimitri retribui o sorriso oferecido pela mãe e abaixa o rosto, encostando-o no ombro da rainha e sendo envolto por um abraço mais leve do que aquele dado pelo rei. O príncipe retribui o carinho, não notando o cesto de flores que cai sobre a grama. O rapaz percebe apenas o perfume e o toque da mãe, os dedos que se entrelaçam nos curtos fios negros em um carinho que acalma e assegura.

— Você pode não escapar de ser amaldiçoado, mas pode superar qualquer maldição que seja colocada em você. – a rainha sussurra para o filho.

O jovem príncipe compreende a verdade nas palavras da mãe. Ela superou a própria maldição ao decidir não temer mais a Bruxa e fugir, encontrar um caminho que fosse somente dela. O rei nasceu e cresceu amaldiçoado, mas nunca se deixou dominar pela natureza do lobo e mesmo após desistir da voz, ele continuou sendo um rei, com um silêncio capaz de impor e compreender mais do que qualquer voz. E ele, Dimitri, tem o sangue de lobo, mas, ao mesmo tempo, sente que essa não é a maldição destinada a ele. Há mais, algo mais, escondido no coração da floresta, em olhos verdes como esmeraldas e em um sorriso vermelho.

— Você vai participar do Festival da Lua, não vai? – Luna pergunta, desfazendo o abraço e procurado pelo olhar azul – É o seu último festival como príncipe.

A realidade das palavras da rainha atinge o príncipe pela primeira vez. No próximo inverno, no dia em que comemorará o vigésimo-quinto aniversário, Dimitri será coroado rei. Ele irá herdar a coroa e o trono do pai e, talvez, – apenas talvez— ele encontre as respostas que procura, a maldição que parece aguardá-lo. E o nome de uma Bruxa.

— Claro que vou participar, mãe. – o rapaz responde beijando a testa da rainha – Não perderia por nada.

A soberana sorri e se abaixa para pegar o cesto de flores, sendo ajudada pelo príncipe a guardar aquelas que pousaram na grama após a queda. Vendo o próprio sorriso sendo refletido nos lábios do filho, Luna entrelaça o braço ao de Dimitri e, juntos, eles retornam para o castelo. Durante a caminhada, o jovem príncipe sente o peso da realidade, a separação do sonho da noite, sendo lentamente substituído pelo quieto sentimento de estar em casa, de lar.

O dia passa sob a música dos preparativos para o Festival da Lua e o cada vez mais presente e firme sorriso nos lábios do príncipe acalma o coração do rei, assim como a constante presença da rainha. Para Dimitri, as horas se estendem com deveres e auxílios oferecidos e sempre intercalados com breves olhares para a floresta, com o acelerar do coração pedindo para retornar, para estar lá, com ela, novamente. Para sonhar mais uma vez. Mas não esta noite. O olhar azul é dirigido para a lua, cheia e brilhante, reinando na noite do ponto mais alto do céu. Esta noite ele é da Lua, ele é daquela de quem ele herdou o sangue. É apenas uma história, um antigo conto, mas para o príncipe, é a verdade. Ele sente que é verdade, que ele é o neto de Lathia.

A atenção do jovem príncipe é desviada para a mão pálida, envolta por uma suave luz arroxeada, a magia que é a herança recebida da mãe. Não é apenas ao redor dos dedos que Dimitri sente a magia. O poder está no ar nesta noite, em cada sopro do vento e em cada respirar dado por aqueles que vivem no reino. Até mesmo quem não nasceu com magia a sente na noite do Festival da Lua, como um presente dado pela rainha da noite a todos que a respeitam e homenageiam. Um sorriso nasce nos lábios pálidos do jovem príncipe quando ele percebe e reconhece a música que começa a ser tocada.

Todos os presentes se aproximam, se reunindo em uma ampla roda, pois a música anuncia a dança mais aguardada da noite. O príncipe caminha para se juntar aos outros, que permitem ao príncipe ocupar o lugar mais privilegiado na platéia. O sorriso nos lábios do rapaz aumenta quando os olhos azuis veem os dançarinos se posicionarem próximos da grande lareira, a luz das chamas iluminando as faces do rei e da rainha. Os soberanos esticam os braços e os cruzam no ar, os passos começam a ser dados devagar, um de cada vez, descrevendo um círculo sobre o chão. O início da dança é recebido com um reverente silêncio por parte dos espectadores, que observam com intensa atenção os passos dados pelos governantes.

Entretanto, nenhuma atenção é oferecida de modo mais ardente do que a do jovem príncipe. Há fascinação nos olhos azuis, que observam o modo como os sorrisos nunca deixam os lábios do rei ou da rainha e o modo como as pálpebras se fecham sobre os olhos tão azuis quanto os que os assistem toda vez que os braços do soberano envolvem o corpo da amada feiticeira. Dimitri percebe – sempre percebeu— o modo como o Rei Lobo sorri de modo calmo e suave para sua consorte, a maneira como os olhos negros da Rainha Feiticeira se tornam tão brilhantes quanto a lua toda vez que ela olha para o marido. Não há dúvida na mente do príncipe quanto a veracidade e a intensidade do amor dos soberanos. Ouvindo a música tão familiar e vendo uma dança tão intensa em sua sinceridade, Dimitri pode apenas pedir ao céu que o permita encontrar um amor tão verdadeiro quanto o dos pais.

A música finda e os passos param, os dançarinos fazendo curtas reverência para a platéia que os aplaude com entusiasmo. A rainha solta a mão do parceiro e, com um largo sorriso nos lábios vermelhos, caminha de modo animado até o jovem príncipe. Surpresa e confusão se desenham por um momento na face do rapaz, mas logo se desfazem em compreensão quando Dimitri entende o intento da mãe e tenta negá-lo. Luna não permite a fuga do filho, pegando-o pela mão e o conduzindo até o ponto antes ocupado pelo rei. Sentindo o rosto esquentar com a noção de estar diante de um largo público, o jovem príncipe procura pelo olhar do pai, mas Ulric apenas sorri e, com um movimento da mão, indica que o filho aceite o pedido da mãe.

O príncipe suspira, resignado, mas sorri para a rainha. Satisfeita, Luna se coloca na posição de início. Uma breve risada escapa por entre os lábios de Dimitri, que copia o movimento da mãe. A música recomeça e a rainha e o príncipe dançam com graça e liberdade, trocando sorrisos idênticos de confiança e felicidade. Sob o som da música e na companhia da mãe, Dimitri sente que está no lugar a que pertence. O jovem príncipe se sente conectado, não apenas à família e aos súditos, mas também ao próprio reino, ao chão que sente os passos que ele troca de modo rápido e natural, ao céu cuja rainha o ilumina e até mesmo à floresta que o observa de modo silencioso, escondendo nas sombras das árvores um olhar tão verde quanto a grama tocada pelo sol.

Envolta pelas sombras da floresta e da noite, a Bruxa observa as luzes do festival dedicado à Lathia. E em meio às luzes da fogueira e das altas lanternas, os olhos verdes procuram por uma em particular. Uma luz de palavras suaves e olhos azuis que mostram uma confiança cega e uma submissão mal orientada. Por mais que se esforce, a Bruxa não consegue esquecer a força na voz do jovem príncipe e no olhar que não tremeu nem mesmo sob o toque da dor. Permita-me conhecê-la? Por que um príncipe que conhece a extensão do poder dela como Dimitri pediria para conhecê-la? Que objetivo ele poderia esperar alcançar com um pedido como esse?

Permita-me conhecê-la, minha dama. E talvez nós dois possamos encontrar a resposta para essa pergunta. Luna deu à luz a um estranho rapaz, mas cuja estranheza só consegue intrigar a Bruxa da Floresta. Raras são as crianças que conseguem conquistar o interesse da Bruxa e inexistentes são aquelas que são capazes de intrigá-la a ponto de deixá-la sem respostas, apenas perguntas. Cativada pela luz do festival e pelos próprios pensamentos, a Bruxa da Floresta falha em perceber a silenciosa aproximação que se esconde sob o sopro do vento e o toque que contorna a face bela, se entrelaçando nos longos fios negros.

— Cuidado, Bruxa. – uma voz suave sussurra.

O som desperta a Bruxa da Floresta, que se vira para ver quem se atreve a se aproximar de maneira tão soturna. Quando os olhos verdes reconhecem a face pálida emoldurada por fios de ouro, os lábios vermelhos se esticam em um sorriso de desdém. Tal resposta não incomoda o intruso, que se coloca ao lado da Bruxa, os olhos da cor do mar sendo dirigidos para o mesmo espetáculo assistindo tão atentamente pelo verde olhar.

— Por acaso, você está tentando me aconselhar, Kaleb? – a Bruxa pergunta com falsa incredulidade na voz.

— Se eu fosse você, eu teria cuidado com essa dança. – Kaleb responde, a voz mantendo o tom suave, mas carregado de seriedade.

— Qual dança? – ela questiona como se fosse um desafio.

Essa. – ele responde voltando o olhar de mar para a Bruxa – Que você dança sem saber os passos, sem conhecer o ritmo.

— E você conhece? – a Bruxa pergunta, os olhos verdes sendo focados no olhar que a observa com profunda atenção.

— Essa dança é minha história. – Kaleb responde de modo mais suave, um pequeno sorriso esticando os lábios rosados.

E então, com o mesmo silêncio com que apareceu, Kaleb desaparece sob o toque do vento. Novamente sozinha, a Bruxa retorna a atenção para as luzes do Festival da Lua, os dentes tocando com força o lábio inferior. Ela não está dançando. Não importa o quão tentador seja o pensamento de ter um príncipe de olhos azuis ajoelhado perante ela, à mercê dos toques e dos desejos do coração de uma bruxa. Ela está intrigada, mas como os pais antes dele, Dimitri é apenas outro desafio a ser feito, outra maldição a ser lançada, outro teste a ser aplicado. Ele é apenas outro, outra vida a passar pelo toque da Bruxa da Floresta. Ela não é Odete e ele não é Kaleb.

E ainda assim... O lábio vermelho sangra e o olhos verdes procuram. O coração bate com a força das asas de um corvo, ansiando a noite com a mesma intensidade com que os ouvidos esperam pelo som de passos perdidos, de uma voz que não falha e as mãos tremem querendo tocar uma pele que sangra e queima sob a chuva. Em um silêncio que nega, ela deseja o retorno do príncipe, as respostas que apenas ele pode oferecer. Ela deseja conhecer o conto do Príncipe Lobo e como a história dele se entrelaça à da Bruxa da Floresta, com qual maldição ela marcará o sangue do neto de Lathia e Fenris. E, no processo, ela acabará amaldiçoada também?

As chamas queimam até os primeiros raios de luz do sol substituírem o brilho da lua no céu. E as cinzas da fogueira são recolhidas pelo toque silencioso de um príncipe, que, na noite que se segue, as utiliza para marcas as árvores que encontra em sua busca pela trilha que leva ao coração da floresta. O vento sopra, balançando as copas das árvores quase como se quisesse fazer com que elas se ajoelhem perante o jovem príncipe. Os olhos azuis se mantêm atentos ao caminho seguido, tentando distinguir nas sombras o trajeto tomado pela Bruxa no último encontro. E quando o baixo e próximo som do crocitar chega aos ouvidos do rapaz, um sorriso estica os lábios pálidos.

Dimitri continua a caminhar, os passos mais firmes cruzando o abraço das árvores e o levando ao encontro de um corvo, que saúda o jovem príncipe com um alto e agudo crocitar. A saudação acaba por assustar o príncipe, que bate as costas contra o tronco de uma árvore. O crocitar do corvo diminui, se tornando mais baixo, mas asas negras ainda batem de modo intenso, mantendo a ave em uma altura um pouco acima da cabeça do rapaz. Quando o choque se desfaz no coração nobre, dedos pálidos manchados de cinzas são erguidos em direção ao corvo, que crocita novamente mais alto, como se negasse a permissão para tocá-lo. Mesmo obtendo tal resposta, Dimitri mantém a mão erguida, calmamente esperando que o corvo se aquiete.

Alguns longos e tensos momentos se passam até que o corvo aparente estar disposto a deixar o príncipe tocá-lo. Crocitando, a ave se aproxima, os pés tocando levemente os dedos esticados. Entretanto, a chegada de uma nova presença alerta o corvo, cujo crocitar se torna mais alto e o bater das asas, mais intenso. Os pés, que antes tocavam de forma suave, se movem rapidamente, arranhando a pele pálida do príncipe e marcando-a com finas e ardentes linhas. Um gemido de dolorosa surpresa escapa por entre os lábios finos e os olhos azuis buscam a origem do que sobressaltou o corvo. O que eles encontram é o brilhante olhar e o divertido sorriso da Bruxa da Floresta.

— Cuidado. – ela diz com o divertimento claro na voz – Eles são belos, mas eles também são capazes de machucar.

— Não somos todos assim? – o príncipe rebate com um sorriso de contentamento nos lábios – Donos de nossa própria beleza, mas também de nossa própria capacidade de machucar e destruir?

O olhar azul procura pelo corvo, que se coloca sobre o ombro da dama que o comanda. O toque da Bruxa é recebido de modo irrestrito pela negra ave, que corresponde seguindo o contorno dos longos dedos com a ponta do bico. O intenso e verde olhar observa o jovem príncipe, a mesma calma e segura postura presente mesmo na presença de uma lenda que protagoniza mais histórias de dor do que de felicidade. O sorriso nos lábios de sangue se transforma, se tornando mais suave, sem sombras de desafio ou desdém.

— A que devo a honra do seu retorno, jovem príncipe? – a Bruxa questiona com exagerada cortesia, reconquistando o foco dos olhos azuis.

— Você disse que eu poderia retornar, minha dama. – Dimitri responde e sob o tom educado, a Bruxa pode reconhecer a mesma submissão da primeira noite. O que poderia fazer um príncipe com tanta força e poder querer se ajoelhar de maneira tão voluntária?

— Eu disse. – ela confirma – E você retornou. O que você deseja encontrar ou conhecer essa noite?

Você, é a resposta que Dimitri segura na língua. O coração do príncipe bate com a mesma força que um ferreiro impõe ao criar uma espada, desejo e medo colidindo e criando labaredas de uma fogueira que queima através das veias e se desfaz nas cinzas que cobrem os dedos pálidos. Há uma guerra dentro do príncipe, na qual a vontade de sonhar novamente, de encontrá-la mais uma vez se sobrepõe a força da realidade sentida ao retornar para o castelo. Essa mesma vontade ganha intensidade ao se misturar a sensação de conexão experimentada durante o Festival da Lua. Se ele é – se sente— conectado à floresta, ele também estaria conectado à Bruxa?

— Seu reino, minha dama. – é a resposta que ganha a voz do príncipe – Se me for permitido.

— Como desejar. – a Bruxa diz assentindo, o sorriso ainda presente nos lábios vermelhos – Venha. – a ordem soa mais fraca do que a que foi dada na outra noite, se assemelhando mais a um pedido do que a uma imposição.

O príncipe segue a Bruxa da Floresta até a casa de madeira que faz companhia para o grande carvalho, no qual o balanço foi colocado. Com a aproximação, o jovem príncipe consegue distinguir as trepadeiras que se levantam da grama para abraçarem as paredes da casa e se infiltrarem pelas janelas. A imagem desperta em Dimitri uma lembrança da infância, de estar no colo da mãe ouvindo uma história sobre uma Bruxa que vivia na floresta. A mesma Bruxa que sorri para o príncipe, subindo os degraus que levam à entrada da casa e abrindo a porta, revelando um interior simples e ainda assim imponente, dominado pelo toque sempre presente das trepadeiras.

Com passos lentos, o príncipe caminha sobre a madeira, o olhar azul se perdendo ao tentar ver todos os detalhes, das mesas de carvalho cheias de livros, das estantes com mais livros, potes e frascos ao longo banco coberto por veludo vermelho. Há um corredor dominado pelas sombras da noite e o jovem príncipe se sente tentado a segui-lo, mas a mente se encontra ocupada demais com a voz da lembrança para conseguir se concentrar em tomar uma decisão. Estando tão perdido em si mesmo, Dimitri não percebe o olhar verde que o observa com intensa atenção, se divertindo com a fascinação desenhada na face jovem. Entretanto, o sorriso nos lábios vermelhos perde um pouco a força quando a Bruxa percebe o quanto Dimitri combina com os reinos escondidos do mundo.

Sem pensar, o príncipe toca o topo de uma das pilhas de livros sobre a mesa, os dedos deslizando pela capa até a lombada e caindo, tocando as lombadas dos livros colocadas por baixo. Na mente, Dimitri consegue ouvir a voz da mãe. Era uma vez, uma Bruxa que vivia no coração da floresta. A casa dela era feita de madeira de carvalho e as paredes eram decoradas com verdes trepadeiras, tanto no interior quanto no exterior. E havia um perfume permanente na casa, como se a magia da Bruxa impregnasse até mesmo o ar a ser respirado. O jovem príncipe inspira profundamente, sentindo as mãos formigarem com a magia que deseja se manifestar. Ao tocar as verdes trepadeiras se podia sentir um choque nos dedos, um aviso do perigo que havia naquele lugar. E se deveria tomar cuidado ao pisar, pois a qualquer momento, se poderia tropeçar em um dos muitos livros da Bruxa. Dimitri se aproxima da parede que apoia a larga estante, tocando as trepadeiras e sentindo o formigamento nos dedos se intensificar, como um pedido da própria casa para que ele mostre a magia que possui. Mas não há nenhuma sensação de perigo, nem de ameaça. O príncipe se sente tão seguro quanto quando está no castelo.

Mas não importava onde você fosse, em que cômodo tentasse se esconder, os negros corvos o encontrariam com seus atentos olhares e, quando menos você esperasse, lá estaria ela, A Bruxa da Floresta, o recepcionando com um suave sorriso vermelho. Pois não existe um ser capaz de escapar das correntes que ela comanda. O olhar azul abandona as trepadeiras para encontrar os olhos verdes da Bruxa e ver o sorriso vermelho crescer. “Mas, mamãe, você escapou” “Não, meu amor, foi um corajoso rei quem conquistou a minha liberdade, mesmo que com isso ele tivesse que pagar com a própria voz e a própria vida” “Como assim? O papai não perdeu só a voz?” “Sim, meu pequeno, mas ele também ganhou um belo laço vermelho”.

 

— O que deseja saber, príncipe? – a Bruxa questiona, calando a voz da memória do jovem príncipe.

— Você disse que há outros. Eles também vivem em lugares como esse? – Dimitri questiona sem fugir do olhar que o observa – Onde estão eles?

— Cada um de nós nasceu com seu respectivo reino ou do próprio reino. E dentro de nosso território, nós construímos nossas casas. – o sorriso nos lábios vermelhos aumenta mais um pouco – Se você seguir para o interior da floresta, encontrará o lugar de descanso de antigas ruínas. Foi entre elas que Fenris construiu um lar.

— Nas histórias, cada um deles está conectado a um aspecto da Natureza. – o príncipe diz, recordando do que foi contado pela mãe e caminhando para o ponto onde a Bruxa se encontra – A qual parte da Natureza você está ligada, minha dama?

— Você não tem nenhum palpite, Príncipe Feiticeiro? – a Bruxa pergunta, a voz adquirindo o tom de desafio que é tão característico a ela. O olhar verde permanece conectado aos olhos azuis do príncipe do qual ela se encontra a menos de um passo de distância – Qual aspecto da Natureza você acha que eu represento?

Dimitri não responde de imediato, tomando tempo para observar os traços que compõem a Bruxa, cuja beleza o príncipe não havia tido a oportunidade de admirar com tranquilidade. Os olhos azuis seguem o contorno do rosto fino, do nariz delicado, dos lábios finos e vermelhos como o sangue. E dos olhos intensamente verdes, destacados pelos longos fios negros que emolduram a bela face da Bruxa da Floresta. Em um momento de ousadia, fortalecido pela fascinação, Dimitri levanta a mão e afasta alguns dos fios negros que chegam a tocar a face pálida, os dedos esbarrando sobre a bochecha macia e repousando no canto da boca escarlate.

Mais uma vez, o príncipe sente a constante caçada que é a Bruxa, a imparável busca por um fantasma que, mesmo quando é encontrado, não pode ser alcançado. Mas a sensação é breve e o coração do príncipe dói quando ele percebe que o que está sentindo sob os dedos é a maciez e o calor da pele do fantasma que por tanto tempo ele desejou encontrar. Da lenda que conquistou a fascinação e os sonhos do jovem príncipe, que o atraiu para a floresta e o chamou mesmo quando ele estava preso na própria realidade, de um príncipe de um castelo. Ele ganhou permissão para alcançar a Bruxa da Floresta.

— Tentação. – Dimitri responde sem realmente pensar.

A resposta do príncipe confunde a Bruxa e tal confusão é mostrada nas linhas que aparecem entre os olhos verdes. Entretanto, o que a resposta dada por Dimitri consegue fazer na realidade é intensificar a confusão que faz o coração da Bruxa tremer desde o momento em que os dedos pálidos tocaram o negro cabelo. A Bruxa não compreende o toque, mas também não consegue encontrar força suficiente para negá-lo e afastá-lo, pois o peso – tão leve e tão pesado – dos dedos de Dimitri a conectam a algo que ela não consegue definir, como se ela tivesse encontrado algo que estava faltando em si mesma sem que a própria Bruxa tivesse consciência, um significado, um motivo, uma resposta.

— É isso o eu sou para você, príncipe? – ela questiona sem sorrir, os olhos verdes procurando por sentido no olhar azul – Uma tentação?

— Sim. – Dimitri responde e, após um momento, completa: - E não. Você me tenta com uma realidade que sempre me fascinou. Você sempre me fascinou.

— É por esse motivo que você está aqui? – há uma rara vulnerabilidade nos olhos verdes e o príncipe não consegue resistir a ela.

— Eu estou aqui porque eu queria encontrá-la. Eu sempre quis encontrá-la. – o príncipe responde sentindo o coração bater com um desespero que não encontra explicação – Eu queria provar para mim mesmo que você era real, que eu poderia alcançá-la, conhecê-la. Você era o sonho que eu sonhava realizar.

As últimas palavras do príncipe são como um trovão no coração da Bruxa, trazendo o eco das palavras ditas em um primeiro encontro. Ela nunca é um sonho. Ela é a Bruxa, um pesadelo, uma tortura, um chamariz para tolos construírem a própria ruína e um desafio para outros desenvolverem sua força. Mas não um sonho, não um objetivo a ser alcançado, a ser buscado, desejado. O choque se transforma em raiva e é refletido nos olhos verdes, que brilham mais fortes e duros, como se anunciassem a aproximação de uma tempestade. A mudança é notada pelo príncipe, que afasta o toque que mantinha próximo aos lábios vermelhos. O ato parece apenas aumentar a chama da raiva presente nos olhos verdes.

— Você realizou seu sonho. – a Bruxa diz com uma voz desprovida de todo desdém e desafio, mas envolta em frieza – Você me encontrou, me alcançou. Agora, vá. Retorne ao seu reino.

O momento de confusão que paralisa o príncipe parece apenas enfurecer ainda mais a Bruxa da Floresta. As chamas nos olhos verdes despertam o jovem príncipe do estupor causado pela brusca ordem e, sentindo o peito pesado e a garganta travada, Dimitri dá um passo para trás. O distanciamento faz o olhar Bruxa tremer e, por um momento, o príncipe pensa que mandá-lo embora não é o que a Bruxa realmente deseja. Mas nenhuma palavra deixa os lábios vermelhos, então o príncipe continua a se afastar, um passo de cada vez, até que a porta seja cruzada e os degraus descidos, a distância escondendo dos olhos azuis o quanto a boca escarlate sangra devido aos dentes que a mordem com fúria.

O príncipe não consegue dizer quantos passos consegue dar até que o peso sobre o coração se torne demais e os pés parem sobre a grama, os olhos azuis ardendo com as lágrimas contidas. Dói. Dói mais ser mandado embora da presença que sempre foi procurada do que não saber se ela era ao menos real. O fim do sonho se assemelha a quebra de um vitral para o jovem príncipe, a destruição de uma imagem que poderia ser bela, que poderia inspirar a mente a criar novas possibilidades, novas realidades. Mas que, uma vez despedaçada, é a negação das possibilidades, do sonho. Respirando fundo, Dimitri recomeça a caminhar, desejando que o peso do real reino ao qual ele pertence possa apagar qualquer traço deixado pelo desejo de sonhar.

Longe do olhar do príncipe, nas trepadeiras que envolvem o lar da Bruxa, nascem longos espinhos que perfuram a madeira, rasgando as paredes e destruindo a beleza que, por um momento, se tornou o fascínio de um jovem príncipe. Sob as sombras da noite, as trepadeiras se alongam pela grama, abraçando o tronco do antigo carvalho, se entrelaçando nos galhos e deslizando até as correntes do balanço. Durante todo o caminho, elas oferecem o toque dos espinhos, sangrando a árvore e arranhando o ferro das correntes. Todo coração da floresta logo é dominado pelos espinhos e, sob a copa de folhas e espinhos, os lábios vermelhos de um Bruxa sangram e os olhos verdes se fecham, a mente se recusando a reconhecer a ausência que é sentida e cujo esquecimento é intensamente desejado.

Entretanto, nem o desejo da Bruxa e nem o desejo do jovem príncipe é atendido. As horas passadas sob a luz de Loras são lentas e envoltas em um ensurdecedor silêncio, repletas do desejo de sonhar e esquecer. Sentado na ponte, com as costas apoiadas nas baixas paredes que se erguem das pedras, Dimitri contempla a entrada da floresta, as sombras que se escondem do toque do sol, esperando sua hora de dominar e revelando a tão tentadora trilha. As luzes do pôr do sol também desvelam os contornos de um belo lobo de pelo cinza e branco, que se aproxima sem pressa do rapaz sentado. Reconhecendo o lobo, o príncipe faz menção de se levantar, mas os passos cada vez mais próximos do animal o mantém apenas ajoelhado sobre as pedras.

— Olá. – Dimitri saúda em um sussurro quando o lobo para a poucos centímetros de distância. Como se estivesse respondendo, o lobo abaixa a cabeça – O que você faz aqui?

O lobo dá mais um passo e o príncipe se sente tentado a tocá-lo. A mão é erguida, mas antes que os dedos pálidos possam tocar os pelos bicolores, o movimento para, a lembrança do brusco toque de um corvo emergindo e paralisando o intento do jovem príncipe. Parecendo sentir a hesitação que subitamente toma conta do rapaz, o lobo dá mais um passo e ergue a cabeça, o movimento se assemelhando a um convite. Sorrindo ao sentir a dúvida se desfazer, Dimitri vence a distância que o separa do lobo, a mão repousando sobre o pescoço e sendo envolta em pelos cujo toque provoca cócegas na pele do príncipe.

— Quem é você? – Dimitri questiona e o lobo ergue ainda mais a cabeça, tocando o rosto do jovem príncipe.

O rapaz não compreende o motivo, mas a presença do lobo oferece uma sensação de conforto e segurança que envolve o príncipe em um abraço que o mantém aquecido mesmo quando a luz de Loras é substituída pela de Lathia. As sombras saem de seus esconderijos, se expandido até dominarem a ponte e tocarem o príncipe e o lobo. Sem pensar, Dimitri ergue a mão livre e toca a cabeça do lobo, os toques dos dedos escorregando até que o animal esteja completamente cercado pelos braços do príncipe. Sentindo uma dúvida diferente pesar na língua, o rapaz resolve enfrentar o temor e, fechando os olhos, sussurra:

Fenris?

Assim que o nome é dito, o toque do lobo se transforma. Os pelos desaparecem de sob os dedos do príncipe e a cabeça que antes se erguia para tocar o rosto de Dimitri, agora se abaixa para encostar na face que tenta se afastar. A fuga do jovem príncipe é impedida pelos braços fortes que o seguram e o puxam de encontro a um tronco firme. Com a bochecha próxima ao pescoço de Fenris, é possível para os olhos azuis verem os fios brancos que cobrem a cabeça e as linhas negras que marcam a pele de bronze daquele que o abraça.

— Decida se você quer ter o que seu coração deseja. – Fenris sussurra – O mundo dará a você, mas você terá que pagar o preço.

Quando a última palavra é pronunciada, Fenris se afasta um pouco e então Dimitri pode finalmente ver a face do avô. Somente pela aparência, a Floresta não parece ser muito mais velha do que o príncipe. Entretanto, o detalhe que conquista a atenção dos olhos azuis são as negras linhas que cobrem a pele de bronze, como raízes desenhadas com a tinta de suas próprias sombras. Cada árvore, raíz e grama, está conectado a ele, faz parte dele. Tão inseparável quanto a pele que o cobre. Dimitri se recorda das palavras da Bruxa e então compreende a profundidade da conexão que existe entre Fenris e a Floresta.

— A decisão é sua. – os lábios da Floresta sussurram enquanto os dedos marcados seguem o contorno do rosto do príncipe com um toque suave, quase inexistente.

O som de passos sobre a pedra ecoa no súbito silêncio e Fenris quebra o toque, se afastando e se levantando. Dimitri apenas observa, petrificado pelas palavras e pela presença da Floresta. Com um pequeno sorriso e uma breve mesura, Fenris se despede, caminhando para longe e desaparecendo por entre as sombras da floresta.

— Meu príncipe! – os guardas do castelo chamam ao se aproximarem.

— Está tudo bem. – Dimitri diz enquanto se levanta – Retornem aos seus postos. Está tudo bem.

Os guardas demonstram não estarem totalmente convencidos, mas obedecem a ordem e voltam para a entrada do castelo. O príncipe não registra completamente o afastamento dos soldados, os olhos azuis e a atenção voltados para a entrada da floresta. Excitamento queima nas veias e faz o peito do príncipe subir e descer de modo descompassado, a respiração curta e rápida. Um pequeno sorriso se atreve a nascer nos lábios finos e, com ansiosa hesitação, Dimitri começa a caminhar pela ponte. Cada passo dado se torna mais firme e seguro do que o anterior, mais rápido quanto mais o príncipe se aproxima da floresta. As mãos e os braços do príncipe colidem contra os troncos e os galhos das árvores, as sombras muito mais densas, cobrindo até mesmo as nuvens no céu, que se unem para esconder a luz da lua e das estrelas.

Mesmo com o novo peso das sombras, Dimitri consegue seguir o caminho que leva ao coração da floresta. Mas nem mesmo as sombras podem esconder a nova paisagem que saúda o príncipe quando o destino é alcançado. O reino da Bruxa se tornou o reino dos espinhos, que cobrem o chão como um tapete de armadilhas e abraçam do carvalho à casa de madeira. O sorriso nos lábios pálidos se desfaz como cinzas queimadas e a energia com que o coração batia se torna uma intensa e lenta dor. Não há nada no coração da floresta, nada além de sombras e silêncio. Distraído pela surpresa e pela confusão, o príncipe não percebe as trepadeiras que se mexem sobre a grama, se aproximando dos pés de Dimitri, algumas crescendo até alcançarem a altura necessária para tocarem os punhos pálidos.

As trepadeiras envolvem os punhos e os tornozelos do príncipe, os espinhos fincando na pele e tomando a atenção de Dimitri o suficiente para que as trepadeiras o empurrem e o predam contra o grosso tronco de uma árvore. Um gemido de dor escapa por entre os lábios do jovem príncipe com o impacto e os olhos azuis procuram por algo – alguém— no mar de espinhos que se tornou o coração da floresta. O príncipe tenta se libertar, mas quanto mais ele se movimenta, mais fundo penetram os espinhos. Sangue mancha as mãos e a calça do jovem príncipe, que continua a tentar escapar. Até sentir um suave toque no pescoço. O olhar azul procura pela origem do toque e, para alívio e desespero do coração, encontra o verde olhar da Bruxa da Floresta.

Longos e pálidos dedos seguem o contorno do pescoço do príncipe, subindo pela mandíbula tensa até alcançarem os olhos marejados. Não há um sorriso nos lábios vermelhos e os olhos verdes brilham com intensa concentração e uma sombra escondida de medo e dor. O toque da Bruxa deixa os olhos azuis, seguindo pelo nariz até os lábios finos, cujas linhas são seguidas de modo lento e calculado. Dimitri tenta dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas nenhum som escapa por entre os lábios entreabertos. Sem palavras, o príncipe aproveita que o toque da Bruxa está tão perto da boca e beija levemente os dedos que o tocam. O gesto surpreende a Bruxa, que afasta a mão para poder segurar o queixo do príncipe enquanto os lábios vermelhos se aproximam da orelha coberta pelos fios negros.

— Meu nome é Anlyra. – ela sussurra.

As palavras acendem o fogo no coração do príncipe, que bate com força e rapidez renovadas. Os olhos azuis procuram pelo olhar da Bruxa, encontrando nele o reflexo da confusão e do desejo sentidos pelo coração principesco. Não me mande embora, é o que Dimitri deseja pedir e, mesmo não ouvindo, a Bruxa parece ver as palavras no olhar do jovem príncipe. O toque da Bruxa cai para um dos punhos presos, os dedos sendo pintados pelo sangue que escapa dos furos feitos pelos espinhos. Um sorriso diferente nasce nos lábios vermelhos, longo e fraco como um hesitante adeus. Os dedos da Bruxa se entrelaçam nas trepadeiras e ao toque suave, as trepadeiras se movem, os espinhos afundando ainda mais e arrancando um grito de dor da garganta do príncipe.

O som assusta a Bruxa, que dá um passo para trás, vendo as trepadeiras se erguerem do chão e começarem a envolverem as pernas e o tronco do príncipe, se enrolando nos braços mantidos contra o tronco da árvore e subindo para o pescoço tenso, se transformando em uma coroa de espinhos sobre a cabeça de Dimitri. O abraço dos espinhos corta os tecidos que cobrem o corpo jovem e a pele pálida, pintando-a de vermelho. Um alto e constante grito escapa por entre os lábios do príncipe, molhado com sangue e lágrimas. Dor, medo e desespero expandem o peito que ameaça explodir. Dimitri pode sentir os espinhos sob a pele, crescendo e cortando através dos músculos, arranhando os ossos e se enrolando nos órgãos, o abraço especialmente pesado ao redor do coração. Os olhos azuis procuram pelo verde olhar da Bruxa, encontrando-o brilhando com medo e incompreensão.

— Eu a avisei. – uma voz suave diz e o príncipe nota a nova presença no coração da floresta.

Um jovem homem, de cabelos dourados e pele sem cor, se aproxima da Bruxa da Floresta, os olhos da cor do mar observando o príncipe acorrentado pelos espinhos. O olhar do recém-chegado é desviado para a Bruxa, um sorriso apagado esticando os lábios rosados. Trovões ecoam na escuridão noturna e logo o toque gelado da chuva começa a aliviar a dor da pele que queima sob o abraço das trepadeiras. Ainda assim, outro grito deixa a garganta machucada pela própria voz e as pálpebras se fecham com força sobre as írises azuis.

— Eu disse a ele para retornar ao próprio reino. – o olhar verde retribui a atenção que recebe dos olhos da cor do mar.

— Mas ele retornou para você. – Kaleb corrige – Ele fez uma escolha. E você também, quando disse seu nome a ele.

— E agora? – a pergunta não é mais do que um sussurro nos lábios da Bruxa.

— Agora, o mundo o amaldiçoa. – o olhar de Kaleb retorna para o príncipe preso contra a árvore – E, então, nós o recebemos.

Movimento captura a atenção do olhar verde e dos olhos da cor do mar. Entre as trepadeiras que cobrem a grama, as raízes do carvalho se expandem, se entrelaçando entre os espinhos e oferecendo o próprio toque ao príncipe torturado. As raízes envolvem o corpo machucado em um abraço firme, que oferece apoio para suportar a dor causada pelos espinhos. O novo carinho captura a atenção do príncipe e os olhos azuis se abrem, mostrando que até mesmo a região branca ao redor das írises foi pintada pelo sangue derramado pelos espinhos. O olhar azul procura pelo verde dos olhos da Bruxa e o coração machucado chora pedindo em silêncio por ajuda e proteção.

— Você não pode ir contra o poder do mundo. – Kaleb diz se virando para o recém-chegado.

— Eu sei. – Fenris responde – Mas eu posso deixar o príncipe saber que não está sozinho.

Por um momento, a voz conhecida de Fenris atraí os olhos azuis de Dimitri, mas por poucos segundos, pois uma face estranhamente familiar captura o olhar do príncipe. O rosto, de pele branca como a lua, é emoldurado por fios tão negros quanto os olhos que o observam com intensa compaixão. Os traços da desconhecida são muito similares aos de Luna e o príncipe sente o súbito desejo de estar de volta aos jardins do castelo, deitado sobre as pernas da mãe, protegido e longe da dor. Não demora para que outras faces apareçam e conquistem a atenção do príncipe preso. Silenciosos, eles parecem apenas aguardar, os olhares concentrados no jovem torturado e sangrando sob o toque dos espinhos.

— Você nasceu do mundo, Fenris. – o jovem de olhos da cor do mar diz se aproximando de Dimitri – Todos vocês nasceram dele. – dedos sem cor são erguidos e tocam a face machucada, sentindo o sangue, as lágrimas e a chuva – Não foram amaldiçoados por ele.

— Kaleb. – uma voz feminina diz, atraindo a atenção dos olhos de mar para írises douradas e lábios prateados, que se esticam em um sorriso de fraca admoestação.

— Não irá demorar muito. – Kaleb diz voltando a atenção para o príncipe ferido – Apenas respire, Dimitri. – o sussurro soa como um trovão nos ouvidos do jovem príncipe – Só respire e logo a dor irá parar.

Dimitri se concentra nos olhos da cor do mar e, apesar de sentir que o homem não quer machucá-lo, ele ainda procura pelo olhar da Bruxa em busca de confirmação. Nos olhos verdes, o príncipe vê o pedido para que as palavras de Kaleb sejam seguidas. Então, o jovem príncipe fecha os olhos e tenta respirar fundo, sentindo o ar tremer sob os músculos rasgados. A dor aumenta, os espinhos se infiltrando ainda mais profundamente no corpo no príncipe como se estivessem querendo alcançar as veias e se misturar ao sangue nas artérias. Dimitri tenta se concentrar em apenas respirar, em sentir o ar que encontra cada vez mais obstáculos para alcançar os pulmões, mas a dor e o gosto de sangue na língua são difíceis de ignorar e o príncipe arfa com dificuldade, uma, duas, três vezes. E então... Os músculos relaxam e a consciência se esvai.

Os espinhos se retraem, abandonando a pele rasgada, e as trepadeiras libertam o corpo do príncipe. Apenas as raízes do carvalho mantêm Dimitri erguido contra o tronco da árvore. A Bruxa da Floresta se aproxima do príncipe inconsciente e os dedos pálidos tocam o rosto manchado com sangue, contornando os lábios pintados de vermelho. Pela primeira vez em incontáveis séculos, a Bruxa sente o coração pesar com tristeza. Indiferentes a presença da Bruxa, as raízes que abraçam o príncipe se movem, abaixando o corpo ferido até encostá-lo no tapete de trepadeiras.

— Quando a manhã chegar, ele será bem-vindo. – um homem de cabelos ondulados e dourados como o sol diz, os olhos alaranjados como o céu no amanhecer olhando para o príncipe amaldiçoado.

— Eu o levarei para o castelo. – Kaleb diz – Aquele será o reino dele. – as últimas palavras são ditas com os olhos da cor do mar olhando diretamente nos verdes da Bruxa.

A Bruxa apenas assente, o olhar caindo novamente sobre o príncipe inconsciente. Mais poderoso do que a mãe, mais forte do que o pai, agora transformado em uma das primeiras crianças do mundo. As írises verdes apenas observam enquanto Kaleb envolve o corpo machucado com os braços, pegando Dimitri no colo. Fenris e Lathia assentem para o dono dos olhos da cor do mar, reconhecendo o retorno do neto para junto dos pais. Os outros presentes – as outras primeiras crianças – também assentem e sob o sussurro do vento, Kaleb e Dimitri desaparecem do coração da floresta.

Quando a cabeça do príncipe toca o travesseiro, um gemido de consciência escapa por entre os lábios finos. Todo traço de sangue foi apagado da pele pálida e uma mão sem cor toca o rosto jovem, acalmando a mente presa entre o despertar e o adormecer. Poucos segundos se passam até que a respiração de Dimitri se equilibre, lenta e estável, e qualquer sinal de consciência seja dominado pelo sono.

— Quando a manhã chegar... – Kaleb sussurra – Você será bem-vindo entre nós.

A manhã chega e, depois dela, muitas mais. O reino do Rei Lobo prospera sob paz e proteção, afastado dos perigos da floresta. E quando o primeiro Festival da Lua do inverno acontece, a festa é dobrada, pois também é celebrado o vigésimo-quinto aniversário de Dimitri e a transformação de Príncipe em Rei. Durante as festividades, não há nada além de amor e orgulho nos olhos de Luna e Ulric e felicidade nos olhos azuis do recém-coroado rei. Todos no reino recebem o novo soberano com sorrisos e comemoração, o respeito e a admiração sempre sentidos pelo rapaz não tendo sido diminuídos com o tempo.

Entretanto, quando as chamas da fogueira e das lanternas revela uma silhueta oculta entre as sombras da noite, o sorriso nos lábios do novo rei se transforma, se tornando mais intenso e realizado. Discretamente, Dimitri se afasta do centro da festa, caminhando com decisão em direção à presença escondida. Mas quando o novo Rei Lobo chega ao destino, não encontra nada além do um corredor vazio que separa duas casas na vila. Confuso, o soberano dá alguns passos entre as sombras, parando e sorrindo ao reconhecer a voz que comenta:

— Um novo rei amaldiçoado para este reino. – há prazer e provocação na voz que sai de lábios tão vermelhos quanto o sangue – Eu imagino como esse reino irá sobreviver.

— Esse reino sobreviveu muito bem com os últimos reis que você amaldiçoou. – Dimitri responde se virando e sorrindo para a bela mulher de intensos e brilhantes olhos verdes.

— Ah, mas eu não amaldiçoei você, meu rei. – a Bruxa diz se aproximando lentamente do soberano.

Ainda sorrindo, Dimitri dá um passo à frente, eliminando qualquer distância que antes o separava da Bruxa da Floresta. Nos olhos azuis, há o brilho de uma felicidade originada da realização de um antigo e forte desejo. Tal felicidade encontra reflexo na satisfação livre de malícia que pode ser vista nos olhos verdes da Bruxa. Não há mais o medo ou o desejo de sonhar, pois o sonho se tornou a mais doce realidade e as respostas foram encontradas no sangue e nas lágrimas derramadas pelo toque dos espinhos. E nas sombras da noite, as mesmas trepadeiras com espinhos despertam nas árvores que nascem no reino, a manifestação da última das primeiras crianças a nascer. O novo Rei Lobo se aproxima ainda mais da Bruxa, os lábios pálidos quase tocando a boca escarlate.

— Você me amaldiçoou com o seu coração, Anlyra.


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Notas finais do capítulo

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