Bandana Vermelha escrita por supercritico


Capítulo 7
O Pesadelo do Poço




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Tayton já havia ido embora antes mesmo que chegasse na esquina. Asara o enxotou depois de ter repetido mil vezes que nada ia acontecer enquanto estivesse sozinha. Não queria que Vikrum a visse com ele, pois já precisava inventar uma desculpa para o cabelo emaranhado e a sujeira em todo o vestido.
Ela parou quando chegou no portão de casa, observando por cima das tábuas de madeira. As cortinas balançavam a brisa noturna e a lanterna que acendeu antes permanecia acesa na mesinha da sala, queimando em um brilho fraco. Não havia sinais visíveis de que Vikrum voltara do porto.
Tentou entrar, mas correntes ainda estavam no cadeado e o ferrolho da porta continuava abaixado. Deu a volta na casa e verificou a entrada da tapeçaria. Antes de bater viu que a porta estava apenas encostada, deixando um filete de luz amarela sair. Empurrou com cuidado, atravessando os rolos de tapete e indo em direção ao corredor iluminado. Vikrum apareceu bem na sua frente.
— Onde você estava? - perguntou, com uma voz um tanto sonolenta.
— Encontrei o pessoal da academia num bar - ela não ousou se mover. Precisava assistir sua reação antes de entrar.
— E se sujou toda desse jeito?
— Tropecei enquanto jogavam bebidas uns nos outros - mentiu, mordendo o lábio inferior. - Estavam agindo feito bêbados.
— Entre logo. - Ele deu passagem pelo vão. - É melhor limpar bem esse vestido. Não comprei pra você usá-lo como pano de chão.
— Sinto muito. Vou limpá-lo amanhã de manhã. - Ela realmente queria limpá-lo. Não suportava ver aquela peça tão linda em péssimo estado. Algumas manchas ameaçavam não sair nem com o maior dos esfregões, então ela adiantou-se para colocá-lo em um balde de água enquanto tomava um banho rápido, se livrando de todo o suor e sujeira.
Foi para o seu quarto um minuto depois, limpa e cansada. Ela fechou os olhos, lembrando do confronto com Valete. Fora realmente sorte encontrá-lo ali, momentos após o recrutamento, e não podia negar que também teve sorte em derrotá-lo. Bone apareceu no momento certo, acabando com a luta injusta num instante. Mas não podia contar com ele na hora do Torneio.
O homem parecia disposto a matá-la, como se ela tivesse lhe feito um mal maior. Precisava estar preparada o tempo todo, pois não era somente o dinheiro que estava em jogo, mas também sua vida.
Quase não conseguia dormir com isso em mente, mas o sono lhe pegou quando menos esperava. Sonhou que estava em um campo aberto e a casa de sua mãe se erguia em meio a grama alta. Asara estava de volta ao lugar em que passou quase toda a sua vida. Lembrava de brincar nos pastos, procurando as flores mais coloridas para colocar em um pequeno vaso que fizera. Lembrava de correr atrás dos pássaros, tentando alcançá-los quando estavam empoleirados no telhado. Ela sorriu.
Sua mãe apareceu na porta de casa, pedindo para que buscasse água. Um balde já estava em sua mão e ela só precisou correr até o poço, que ficava próximo a uma árvore. Quando se aproximou, o ar pareceu mais frio como se anunciasse uma chuva que estaria por vir. Ela olhou para a água negra no fundo e viu um crânio de boi. Lorde Skeller olhava de volta para ela, entre as pequenas ondas que se formavam no reflexo.
Ela se desequilibrou e o peso do balde a fez cair. Seu rosto raspou nas paredes de pedra, mas nada aconteceu, pois já estava em um plano todo escuro, cercado de sombras que se moviam de um lado para o outro. Tentou se agarrar em algo sólido, mas nada que surgia era real, provocando-lhe uma confusão agoniante. Asara acordou quando ouviu a voz de seu pai lhe chamar. "Encontre-me", os ecos repetiam para a escuridão, em uma súplica interminável.
Acordou em um salto, sentindo-se observada. Esfregou os braços numa tentativa de se livrar da sensação ruim que seguiu o sonho, e acabou encontrando um ferimento no seu cotovelo. Tinha o raspado no chão e só veio perceber agora, quando já estava dando sinais de cicatrização. Precisava encontrar Liana, tanto para dar um jeito no seu braço e em outros machucados que ainda não havia se dado conta, quanto para se desculpar por ter sumido de repente na noite anterior.
Levantou-se e foi em direção ao quintal interno, onde o balde com o seu vestido ainda estava de molho. Um calafrio percorreu seu corpo quando pegou no objeto de madeira. A sensação que estava caindo lhe atingiu de repente, como se ainda estivesse sonhando. Balançou a cabeça, se livrando dos fantasmas que ainda restavam.
Limpou o tecido da melhor forma que podia, usando barras de sabão para retirar as manchas. Quando terminou, estendeu em um varal que atravessava o quintal e verificou o trabalho. As manchas mais fortes passavam quase que imperceptíveis. Era o melhor que podia fazer.
Encontrou Paco na cozinha, comendo enquanto observava o pai contar moedas de ouro na sala. Um cheiro de canela pairava no ambiente e Asara viu o incenso estrangeiro queimando na pequena mesa ao lado da porta.
— Bom dia - saudou Vikrum, verificando uma moeda com a ajuda de uma lupa pequena.
— Bom dia - Asara respondeu. Hoje o dia era de descanso. Quase ninguém saia de casa, cansados demais para fazer qualquer coisa. Os comércios permaneciam fechados e o silêncio pairava na cidade, deixando apenas as ondas do mar falarem.
Fez uma refeição rápida antes de sair para encontrar Liana. Andar pelas ruas vazias era ainda mais enervante. A qualquer momento, um mandante de Skeller poderia aparecer e lhe levar para o primeiro confronto. Algo lhe dizia que não poderia acontecer tão cedo ou num lugar tão aberto, a noite e os becos pareciam ser o certo, apesar das regras serem bem claras.
Foi em direção ao palácio das Mães das Águas. Elas sempre estavam a disposição, não importava o momento. A entrada magistral era ladeada com os jardins de flores azuis. Asara caminhou lentamente, lembrando do sonho e dos campos que correu quando era mais jovem. A sensação agradável lhe tomou conta quando entrou no lugar. Seus sapatos de tecido tocavm o chão polido e sua túnica mais casual se agitava contra o vento que serpenteava entre os arcos de pedra. Asara sentia alguém lhe acompanhando por ali, mas parecia não haver ninguém. Foi até os jardins das piscinas e, com alívio, encontrou Liana lendo um livro sob a luz da manhã.
— O que está fazendo aqui? - ela colocou o livro de lado e sorriu para a amiga.
— Bom dia, eu estava querendo falar com você.
— Já sabia que eu estaria aqui, não é?
— Sim, eu vi você completar o ciclo.
— Pois é, agora vivo aqui quase que completamente - ela olhou para Asara. - Vi você no desfile, mas não te encontrei no porto. Nem Tayton sabia onde você estava.
— Eu falei com ele, logo quando cheguei ao porto - ela se sentou na mureta que separava os corredores das salas. Asara decidiu que não queria lhe contar mentiras sobre o ferimento. Liana não precisava saber que estava sendo perseguida e que estava participando do Torneio. A garota era sensível demais e não iria compreender. Então fez o máximo que pode para esconder o machucado e aparentar estar bem.
— Por que não foi me procurar? Eu estava perto.
Percebeu que fora uma péssima ideia ter ido encontrá-la tão cedo. Deveria ter pensado em algo para lhe contar, pois não suportava as perguntas que ela insistia em fazer.
— Eu não estava me sentindo bem desde que comi aquelas comidas.
— Não... Tem algo acontecendo - ela olhou bem nos seus olhos, tentando decifrar algo que Asara estava escondendo. - Sinto algo diferente em você.
— Como assim, algo diferente? Do que está falando?
— É complicado, coisas de Mães, sabe?
— Não, eu não sei. Está me assustando com esse papo - ela quase se levantou e saiu. Liana parecia saber demais, como se pudesse ver o que havia acontecido com ela na noite anterior.
— Fique tranquila, é algo totalmente normal. Sempre sinto isso nas pessoas - ela tomou a sua mão. - Vejo que precisa se curar.
Ela apontou para o seu cotovelo.
— Não é nada demais, já está ficando bom.
— Asara, era disso que eu estava falando. Eu estava sentindo algo de errado com o seu corpo e era seu ferimento. Se não quiser me contar o que aconteceu para ganhá-lo, tudo bem, mas insisto em tratar isso.
A garota sentiu dedos gélidos encontrarem sua nuca. As imagens do sonho ainda se penduravam em sua mente, como fantasmas. Quanto mais tentava se livrar deles, mais eles se agarravam em si, como tentáculos. A cabeça de Lorde Skeller e a aflição que sentiu quando caia. Valete e sua adaga que quase entrou em sua pele sem piedade. Aquilo realmente a assustava.
Talvez Liana estivesse sentindo o seu medo também e queria a livrar dele. Não resistiu mais, estava cansada e precisava de um último momento sob as águas antes de enfrentar Valete outra vez. Trocou as suas roupas e voltou para a piscina.
— Ótimo, a água está aquecida e os cristais já estão no fundo.
Asara concordou e mergulhou os pés, apoiando o peso do corpo nas paredes de pedra da piscina. Ela olhou uma última vez para Liana e submergiu por completo. Não era necessário passar tanto tempo, ela sabia. Os ferimentos eram pequenos e somente o ar nos seus pulmões a sustentariam durante o período que passaria debaixo da água. Um minuto e ela se puxou de volta só para encontrar o rosto de Liana em uma expressão de medo.
— Asara, o que você fez - ela disse, se levantando lentamente e se afastando.
— O que... - ela abriu a boca para terminar, mas a garota já exclamava outra vez.
— O que você fez noite passada?
Ela estava a assustando com as perguntas, como se tivesse a acusando de matar alguém. Não conseguia encontrar palavras para dizer. Ela apenas saiu da piscina e foi em direção a sua toalha, cobrindo o corpo.
— E-eu não estou entendendo - gaguejou.
— Não era você, mas alguém próximo - ela dizia, olhando para o nada, como se estivesse assistindo uma projeção em sua mente. - Alguém que encontrou. Asara, o que você fez?
Ela saiu da sala, correndo para o outro lado do palácio. Os cristais na água pareciam escurescer, se dissolvendo em partículas acinzentadas. Liana era capaz de sentir mais do que dores, Asara havia percebido. Sabia que se encontrara com pessoas más e que havia feito algo de errado. Ela cerrou os dentes. Fora um erro ter ido até ali.
Entrou no reservado e trocou suas roupas o mais rápido possível. Se tivesse que se explicar mais, acabaria revelando tudo o que estava acontecendo e se Liana soubesse, iria a impedir de continuar. Do que jeito que falava, poderia até a entregar para a guarda da cidade, que a prenderia no mesmo momento. Era perigoso participar do Torneio. Talvez até mais que havia imaginado.
Quando saiu da cabine de madeira, ela ouviu um estrondo vindo de fora. Uma porta se fechando com força. Ela foi em direção aos corredores e encontrou Liana ainda exibindo um semblante assustado.
— Estão aqui - ela suspirou, horrorizada. - Você os atraiu até aqui, no meu primeiro dia.
— De quem você está falando, Liana? - seus lábios tremiam. Não queria ser a fonte de algum mal que estaria aparecendo por ali. Se é que existia algum mal. Liana estava agindo feito uma louca, como nunca havia visto antes. Aquilo estava lhe assustando.
— Eu preciso chamar as outras - e ela se foi, subindo as escadas em espiral no meio do jardim.
Asara se virou para ir embora. Precisava correr antes que as outras Mães aparecessem e fizessem mais perguntas para si. Mas algo soou em sua mente, como uma voz distante. Estão aqui. Ela não precisava correr, bastava andar lentamente até que a sombra surgisse de algum canto da parede e saltasse em sua direção. Iria acontecer a qualquer segundo, ela sabia.
Estava quase no jardim externo quando dedos esguios roçaram em seu ombro. Conseguiu ouvir seus passos antes mesmo que a tocasse. Não deveria se virar. Ela já sabia o que aquilo significava.
— Lorde Skeller os chama. O Torneio está prestes a começar.


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