Solitude escrita por Lillac


Capítulo 3
Critérios.


Notas iniciais do capítulo

Será que algum dia eu vou escrever alguma fanfic na qual a Annabeth não roube a cena? Provavelmente não.
Espero que gostem!



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Assim que o trio terminara de atravessar as portas do auditório, Nico caíra de bruços no chão. Ao mesmo tempo, Reyna tentou e falhou recostar Hazel cuidadosamente contra a parede, o que resultou na própria batendo a cabeça no concreto e desabando sobre o corpo da mais nova. Thalia imediatamente correra para ajudar a colega de time, então Percy focou suas atenções no garoto.  

Foi quando ele ouviu.

Um inconfundível som metálico que aos poucos se distanciava. Antes de alcançar Nico, seu olhar voou para um pouco além, e ele viu, com uma mistura de ansiedade e descrença, um batido e muito usado bastão de beisebol de metal, rolando preguiçosamente até acertar a parede a mais próxima com um baque surdo.

Nico arfou, como que acordando de um torpor, e girou o corpo com um gemido. Seu peito magro subia e descia, seu rosto contorcido em uma careta.

— Nico. — Percy chamou.

O garoto havia sido capaz de abrir um único olho, íris castanha desfocada seguindo o som da voz de Percy.

— Aquele bastão... — ele não encontrou em si a força necessária para terminar a frase.

Nico ficou em silêncio por um tempo. Um longo, longo tempo. Por um momento, Percy temeu que ele houvesse na verdade perdido a consciência, e já estava prestes a pedir por ajuda, quando Nico respondeu, em um tom que não era mais do que um fio de voz trêmula e aturdida:

— Sim.

 [...]

Daquela vez, Percy havia compreendido o conceito de morte. Havia entendido, com aquela única e curta sentença do rapaz mais novo, que o barulhento e rigoroso professor de educação física, treinador Hedge, havia morrido. Mesmo que não soubesse de que forma — nem Nico nem as garotas se prontificaram e explicar, e Percy não havia achado justo pressioná-los —, ele entendeu o que havia acontecido.

No entanto, três dias atrás, aquilo era lá fora. Lá fora, onde os monstros famintos grunhiam e batiam nas paredes. Lá fora, onde o mundo havia se tornado um inferno. Não ali dentro. Não na segurança que eles haviam conseguido construir, não naquele pequeno pedaço de paz.

Naquele momento, Percy descobriu que a paz era passageira, e o seu desfruto, apenas uma ilusão.

Não existia paz, não existia segurança. A morte não estava lá fora, não estava onde seus olhos não podiam ver. Ela estava ali — sempre estivera. Estivera nos olhares perturbados daqueles que haviam visto o horror de um amigo sendo devorado. Estivera nos inúmeros ferimentos e manchas de sangue espalhados pelas roupas de todos. Estivera, principalmente, nele. À espreita. Aguardando.

O rosto de Ethan não estava desfigurado, roxo e sangrento. Sequer parecia morto, o que só tornou tudo ainda mais inacreditável.

Antes que Percy pudesse registrar qualquer coisa, antes que pudesse sentir medo, ou pavor — ou ao menos perceber que estava prestes a morrer —, um som tão alto quanto um acidente de carro reverberou por todas as paredes, e o rosto de Ethan desapareceu do seu campo de visão em um borrão. Percy piscou, ainda perdido, e no segundo seguinte sentiu algo morno e pegajoso respigando em toda a lateral do seu corpo.

Percy gostaria que houvesse acontecido como uma sequência de filme: um único golpe, e então, um silêncio pesado e absoluto, que deixaria todos boquiabertos e surpresos.

Não foi nada disso.

Annabeth ergueu o bastão acima da cabeça com as duas mãos mais uma vez e deferiu outro golpe. E outro, e outro. Ao seu redor, algumas pessoas tapavam os próprios olhos, cobriam as bocas. Percy viu dois rapazes chorando. Uma garota tapou os próprios ouvidos e gritou. Em meio a tudo isso, estava Annabeth, grunhindo com o esforço de cada golpe, os olhos arregalados e presos na cena que ela mesma protagonizava. Os músculos de seus ombros tensos e a arma tremendo nas mãos. Os grunhidos do que outrora houvera sido Ethan já não soavam: ao invés disso, algo muito mais grotesco, que Percy preferia não descrever.

Annabeth provavelmente teria continuado — e ele não a culparia por isso —, mas Thalia, ainda com metade do rosto envolto por uma bandagem ensanguentada, colocou as mãos em seus ombros e gritou para que ela parasse. Annabeth não a ouviu de primeira, e Luke surgiu, segurando o ponto onde as mãos de Annabeth se encontravam no bastão e mantendo-o erguido no ar, impedindo-a de brandi-lo outra vez. Alguma coisa se revirou no estômago de Percy quando uma substância escura e pegajosa pingou no metal em uma das mechas do cabelo dela.

As mãos de Thalia ainda estavam nos ombros dela quando Annabeth pareceu voltar a si. E, como se fosse um espelho que se rachava em vários pedaços, ela caiu sobre os próprios joelhos, tremendo até o último de seus dedos. Thalia a seguiu rapidamente, enquanto Luke desfazia-se do bastão de metal.

Agora sim, todos estavam mudos.

Annabeth tentou abraçar o próprio corpo, mas, quando suas mãos encontraram a pele de seus braços, ela pareceu sentir algo. Levou-as até a frente do rosto, e observou enquanto as gotas de sangue escuro escorriam por cima da sua pele bronzeada, correndo até seus pulsos e marcando seus antebraços com vários linhas vultuosas.

Foi exatamente nesse momento que ela levantou o olhar. Não estava chorando, ao menos não ainda. Mas havia uma camada de lágrimas acumulando-se em seus olhos, prontas para começarem a cair. O cinza de suas írises, sempre tão tempestuosos, havia amenizado, ficado quase pálido — assim como o resto seu corpo. As próprias írises tremiam nas órbitas, mas ela olhava fixamente para ele.

— Eu... eu... — Annabeth balbuciou, com os lábios tremendo tanto quanto os ombros. — Percy, eu não queria... eu não quis...

Em um só ímpeto, Percy cortou a distância entre eles, e a envolveu com um braço. Ele sinalizou para que Thalia não parasse o que estava fazendo (afagando com cuidado o braço direito dela), e, cuidadosamente, trouxe a cabeça de Annabeth para repousar em seu ombro.

Não sabia de onde estava tirando toda aquela calma, mas supôs que fosse apenas o choque da situação. Ele ainda não havia processado tudo o que havia acontecido.

— Eu sei — ele sussurrou — você não queria machucar ninguém.

— Eu... eu não queria que você, que você morresse.

Lutando contra o nó que havia se formado em sua garganta, Percy respondeu:

— Obrigado.

[...]

Pela primeira vez em quatro dias, Annabeth conseguiu dormir, mas Percy torcia para que ela estivesse tendo um sono sem sonhos. Não queria pensar em que tipo de cena se desdobraria na mente adormecida de Annabeth depois de tudo aquilo. Mais do que por relaxamento ou bem-estar, ele sabia, ela só havia conseguido dormir porque seu corpo a obrigara, exausto demais para fazer qualquer outra coisa. Ela havia adormecido enquanto Percy a segurava contra si e Thalia afagava seu cabelo. Então, ele a havia carregado para o amontoado de lençóis que Rachel preparara quando notara que a outra estava caindo no sono.

Após deitar Annabeth no saco de dormir improvisado, as pernas de Percy cederam. Rachel, que já estava sentada no chão ao lado da garota, pressionando uma toalha contra a sua testa suada, conseguira segura-lo antes que sua cabeça atingisse o chão. No entanto, Percy não estava pegando no sono.

Ele só estava certo.

O único motivo pelo qual não havia surtado antes, era porque não havia tido tempo para processar a informação. Agora, tudo se misturava em sua cabeça: os poros abertos na pele de Ethan, com o sangue se misturando ao pus. As veias saltando em seus olhos. O aperto em seus joelhos... deuses, Percy estivera a ponto de morrer!

Se Annabeth houvesse demorado mais um segundo sequer, Ethan teria cravado seus dentes na carne dele.

Ele olhou, transtornado, para a garota adormecida sobre os lençóis. Nenhum deles, sobreviventes, ainda havia matado um monstro daqueles. Todos haviam chegado ali fugindo e correndo — embora Nico tivesse dito que Reyna havia conseguido afastar alguns com aquele mesmo bastão, empurrando-os para longe.

Oficialmente, Annabeth havia sido a primeira a esmagar a cabeça de um deles.

O quanto isso a afetaria, Percy não era capaz de dizer.

Mas a realidade o esmagou com todo o seu peso: Annabeth havia matado um, e aquilo seria apenas o começo. Se planejavam sair daquele auditório vivos, precisavam se acostumar com a ideia de esmagar os rostos familiares que batiam nas portas do lado de fora. Em breve, surgiriam aqueles assustados demais para fazerem isso — ou, pior, aqueles dispostos demais a fazer.

E onde, exatamente, Percy se encaixava nesse critério? Ele seria capaz de deixar um de seus amigos morrer para não passar pelo horror de esmagar um crânio? Ou ele seria capaz de desfigurar os rostos daqueles que um dia chamou de amigos para sobreviver?

Mesmo... mesmo se o rosto fosse o de Grover?

Aterrorizado, Percy apoiou os cotovelos nos joelhos e enterrou o rosto nas mãos. Com a respiração erradica e a cabeça à mil, ele sentia como se estivesse sufocando.

De repente, ele sentiu um toque suave em sua mão. Rachel, muito cuidadosamente, espalmou a mão dele, até estar completamente aberta, e então, com um sorriso pequeno, depositou a mão gélida e frágil de Annabeth sobre a dele.

Por instinto, Percy fechou imediatamente os dedos em torno da mão dela. A garota não acordou, felizmente.

— Isso — Rachel pronunciou-se — fique aqui, ela vai precisar de você quando acordar. Eu vou ver se arranjo algum pano para limpar o seu rosto.

Desse modo, Percy encostou a cabeça na parede, e delicadamente trouxe a mão que segurava a da garota mais para perto, enquanto Rachel apoiava-se em suas muletas e os deixava a sós.

[...]

Algum tempo depois, ele sentiu um movimento na mão direita. Não havia conseguido dormir, mas ao menos os pensamentos em sua mente haviam se acalmando um pouco. Abriu os olhos e viu Annabeth, confusa e com a expressão perdida, lentamente erguer o tronco e apoiar-se em um antebraço.

Os olhares dos dois imediatamente voaram para as suas mãos, unidas. Percy achou ridículo que, em uma situação como aquela, seu corpo ainda tivesse a coragem de deixa-lo vermelho, mas sentiu o rosto esquentando mesmo assim.

Ao menos, Annabeth não pareceu muito melhor.

Alguém se aproximou antes que eles tivessem tempo de envergonharem ainda mais a si mesmos. Piper agachou-se até estar da altura de Percy, e, com um sorriso contido, correu um pedaço de pano (relativamente) limpo, pelo rosto dele.

— Ainda bem que vocês já acordaram — disse — eu me sentiria péssima se tivesse que chutá-los ou coisa assim — ela riu, mas parecia nervosa —, os outros querem falar com vocês na sala de som.

Annabeth de imediato tentou se levantar, mas, pela careta, Percy supôs que seus ombros ainda não estivessem muito bem. O que era compreensível, depois de toda a força que... usara. Ele ajudou-a a se levantar, sob o olhar atento e cintilante de Piper, e foi apenas quando começaram a segui-la, que ele notou que ainda não havia soltado as mãos.

Sentiu-se bem por um segundo, embora tímido. Oras, Annabeth Chase era uma garota bonita (embora, de acordo com outros garotos, fosse difícil perceber, quando ela passava a maior parte do tempo com o rosto enfiado em um livro, e não se dava ao trabalho de pentear o cabelo pela manhã), e Percy achou que tinha direito de sentir-se um tanto enfatuado — e feliz — por estar segurando a mão dela.

Infelizmente, não demorou muito para a realidade os acertar como uma bala.

O corpo havia sido retirado do meio do palco, mas não havia sido decidido o que fazer com ele. Nico estava sentado ao lado dele, com uma expressão sombria. Uma camiseta cinza havia sido jogada por cima do rosto de Ethan (ou ao menos, do que restara dele, mas Percy não queria pensar sobre isso). Quando Piper sinalizou que ele se juntasse a eles, Percy notou, com tristeza, que aquela era a segunda vez que Nico lidava com aquilo.

Quando passaram por ele, Percy olhou para a mão de Annabeth na sua, e disse a si mesmo que ela não era mais a colega de classe orgulhosa e brilhante. Não era mais a mesma garota que prendia um furacão de cachos cor de ouro em um coque porque não tinha tempo para arrumá-lo e nem a garota que havia coberto a capa de seu caderno de desenho A3 com figurinhas do Yankees.

Annabeth era a garota com roupas manchadas de sangue fresco e a memória de ter destroçado a cabeça de um amigo.

Ao alcançarem a sala de som, Percy surpreendeu-se ao perceber que estavam todos lá: Jason, Reyna, Frank, Hazel. Até Rachel, sentada na mesa de som, com as muletas apoiadas ao lado.

Ao vê-los chegar, Leo fez uma expressão de quem finalmente conseguia respirar depois de passar minutos debaixo da água. Aparentemente, estavam todos esperando por eles.

— O que houve?

Com um movimento tão rápido que Percy ficou meio aturdido, Leo retirou a caixinha preta do bolso. Com tudo o que havia acontecido, o garoto havia completamente se esquecido daquilo. De repente, tudo clicou em sua cabeça. Mas foi Annabeth quem exclamou:

— A mensagem!

— Isso! — Leo soou quase tão surpreso quanto ela. Ou talvez fosse só a animação. Percy certamente não sabia dizer a diferença com ele. — Eu precisei mexer nas ondas sonoras de novo, mas acho que consegui criar um sinal forte o suficiente para que possamos responder.

Annabeth avançou, e, por um momento, Percy ficou ressentido com a iminente falta de contato, mas, ao invés disso, ela o puxou consigo. Os dois, bem como os demais, debruçaram-se, olhando sobre os ombros de Leo, enquanto ele mexia nos controles de amplificadores com a destreza de alguém que já havia feito aquilo cem vezes.

O mesmo som de estática preencheu o ar — e o peito de Percy, com angústia —, mas Leo logo esticou o braço para pegar um microfone, conectado à mesa. Bateu duas vezes no objeto, e som se propagou pela sala. Ele sorriu.

— Tudo pronto. Quem vai falar?

Todas as cabeças se viraram para Annabeth. Menos uma. Reyna falou:

— Frank deveria.

Ninguém entendeu muito bem, e Frank começou a titubear, mas então, Leo já havia ligado o speaker, e empurrado o objeto nas mãos do garoto.

— Hã... É, alô?

Segundos se passaram sem resposta, e Frank já parecia prestes a devolver o aparelho para Leo, quando a mesma voz feminina do dia anterior soou:

Frank?

O garoto não respondeu, limitando-se a engolir em seco.

Frank? É você mesmo?

Com todos os olhares sobre ele, Frank fechou os olhos, respirou fundo, e respondeu:

— Sim, sou eu. Oi, Clarisse.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados.



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