Memórias de Héctor escrita por Miss Viegas


Capítulo 1
Lembrando


Notas iniciais do capítulo

Eu definitivamente não me apaixono por um personagem como Héctor já faz tempo. Creio que mais do que uma animação excelente, Viva também dá margem para muitas coisas que posemos supor e imaginar, logo nada mais digno que transformar isso em fic!
Espero que curtam!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/759565/chapter/1

Ele se lembrava de quando partiu.

Depois daquela dor aguda em seu estômago, que parecia queimar por dentro e que talvez tivesse sido o chouriço frito com guacamole, da queda sobre seus joelhos e a perda de consciência, se viu sentado em um banco do enorme departamento que tratava da entrada e saída das almas do outro mundo. Á princípio assustou-se com os ossos aparentes nas mãos e a instabilidade do quadril ao andar, quem sabe não foi pela sua queda de mal jeito provavelmente. Ele sempre ouvira as histórias do Dia de Los Muertos, porém nunca havia morrido para saber. Passada a surpresa e o susto, só no que conseguiu pensar era no rosto de sua Amélia e no sorriso doce de sua amada filhinha Inês. Como elas saberiam o que houve?

Ele estava muito longe de Santa Cecília, o único que podia avisá-las do ocorrido era seu amigo Ernesto, estavam fazendo shows a meses juntos e naquele momento, sentiu a culpa por não ter voltado antes. Sentia tanta falta de casa, do aroma e sabor da comida de sua esposa, das brincadeiras com Inês... Ali naquele banco, com todo esse filme passando em sua cabeça, tão arrependido choraria se ainda tivesse lágrimas. Tentou a todo custo conseguir uma licença para visitar sua família mas foi informado que só poderia visitar o mundo dos vivos no Dia de Los Muertos, sem exceção. Assim que colocassem sua foto na oferenda, é claro.

Ele esperou ávido pelo momento, porém na hora em que passou pelo scaner de fotos não recebeu autorização. Pensou ter havido algum engano, ele era parte da família, tinha esposa, filha, cunhados, como poderia isso de ninguém ter colocado sua foto? Recolheu-se em sua decepção e decidiu aguardar até o ano seguinte, contudo no seguinte assim como posteriormente nas décadas a fio ansiou por Inês ou Amélia colocarem sua foto mas nunca colocaram.

Passadas tais décadas, vendo que nunca conseguia passar pelo scaner e sabendo que precisava ver sua família, tentava a todo custo trapacear na saída do Dia de Los Muertos. Se infiltrava no meio de grandes famílias tentando passar despercebido, se disfarçava, porém o detector sempre travava. Quando tentava ultrapassar os guardas e correr, mal dava 10 passos e afundava nas pétalas de cravos amarelos, como se fossem areia movediça. Nessas horas sentia raiva. Raiva da ponte, raiva de sua morte precoce por um motivo tão bobo, raiva da vida e de sua vida na morte. Tudo que ele queria era ir pra casa... O tempo foi modificando não só sua forma de encarar o Dia de Los Muertos mas sua estadia no próprio mundo deles.

Suas roupas elegantes curiosamente foram ficando diferentes do que eram. A camisa e calça rasgaram-se e ele acabou ficando com aspecto desleixado, talvez uma parte de si tenha deixado de se importar com a aparência. Arrumou um velho chapéu de palha e quase sempre andava sem rumo pela cidade. Até o dia em que descobriu La Favela de los Olvidados, lugar distante, onde todos que não tinham fotos ou oferendas se concentravam, eram literalmente à margem do resto, haviam diversas pessoas, desde velhinhos que morreram em asilos, indigentes, pessoas que se dedicaram a vida religiosa, muitas pessoas solitárias na dor do esquecimento em um mesmo lugar aprendem a se chamar de família, então se chamar de “primo” ou “tio” acabou se tornando comum, se apoiavam até que o esquecimento total chegasse. Lá ele descobriu que quando você é totalmente esquecido no mundo dos vivos, simplesmente desaparece, a Morte Final, como chamam. Viu muitos dos seus amigos sumirem e temia que tivesse o mesmo destino se os anos continuassem passando e ele não conseguisse atravessar a ponte.

No momento em que você passa para este mundo, o tempo passa mais lento, o feriado do Dia de Los Muertos era a única forma de manter a mínima noção de quanto havia se passado. E pelas suas contas, cerca de 20 anos depois, soube que um famoso músico havia morrido. Quando a notícia se espalhou e todos começaram a falar deu pra perceber que se tratava de seu antigo amigo Ernesto. Ele viu ali uma oportunidade de ao menos esclarecer algumas coisas. Queria saber se Ernesto avisara sua família, se elas ficaram amparadas, como estava sua doce Inês, imaginava que ela devia estar muito hermosa na flor da juventude. Qual não foi sua surpresa quando sequer conseguiu chegar perto de Ernesto. Ele era um cantor famoso, logo ficou cercado de uma multidão de fãs e seguranças, era quase impossível para alguém comum ter algum contato mais próximo, tudo era estritamente exclusivo. Deu-se conta do que ocorrera após sua partida: eram suas canções. As canções que ele havia escrito foram cantadas por outro e este havia ganho a fama às suas custas.

Estava maltrapilho, sozinho e sendo esquecido porque Ernesto não havia lhe dado os créditos. Naquele momento a música lhe pareceu um castigo, como se ela tivesse responsabilidade em tudo que lhe havia ocorrido até então. A dor foi mais forte ao sentir que mais anos se passariam com a ausência e a saudade, recolheu-se para a favela e no seu barraco, deitado em sua rede, percebeu que teria que esperar. Por mais que demorasse, esperaria sua amada Amélia e aí sim, poderia abraça-la, beijá-la novamente, explicar tudo o que houve e entender a ausência de sua foto na oferenda. Contudo quando o momento chegou, não foi como ele esperava...

Diante da enorme mesa farta de iguarias mexicanas, Héctor ouvia a música e olhava para sua família naquele Dia de Los Muertos. O primeiro junto dela após uma vida sem atravessar a ponte. Viu Amélia dançando com Tia Rosita e sentiu um amor brotar em seus ossos, considerando que ele era um esqueleto, a quantidade era enorme. Seus cabelos negros e a saia rodada movimentando-se e para ele, Amélia pareceu-lhe a mulher mais encantadora do mundo. Encantadora tal qual na primeira vez em que a vira...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Memórias de Héctor" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.