Jaoam - A Mão do Dragão escrita por MMenezes


Capítulo 1
Capítulo 1 - O Último Santo


Notas iniciais do capítulo

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Como um cão, Jaoam abria a cova com os esforços excruciantes das próprias mãos; a esquerda demonstrando-se tão eficiente quanto uma colher furada. A terra lhe retribuía as cócegas dobrando, roendo e quebrando suas unhas. Estranhamente, não sentia dor alguma provinda das feridas. Havia uma mais profunda — uma dor — que o corroía de dentro pra fora, um pecado que o consumiria até o dia de sua morte.

Jaoam havia vivido toda uma vida nas montanhas, como um eremita; era uma palavra que expressava bem o que eram, por mais que o pai nunca gostara do som dessas sílabas. Somos o que somos, pensava. Deixavam os ermos apenas ocasionalmente, em momentos de procissões ou de motivo maior.

De certo, já havia passado dos trinta; sua idade nunca lhe fora muito certa. Toda a certeza que tinha era de que já era velho demais para ser jovem e novo demais para ser um velho. Estava no limbo da existência. Sem caminhos ou destinos. Seu pai lhe fazia fora conforme andava, mas agora ele não passava de um corpo rígido aguardando impaciente por sua cova.

Jaoam era um homem modesto, sem atrativos, nada belo, pobre de bolsos mas rico de espírito; diziam. Na juventude era desconfiado como um cão que aguarda um próximo chute, mas aquele sentimento de pequenez ficara para trás conforme passara a se ver tão grande quanto os demais homens sob o sol. Fora ensinado a não desejar muito, pois o desejo era a porta para a morte da alma, dizia seu falecido pai; e este assunto fora o centro de muitas discussões. Pai Myriel lhe fora tudo na vida, por isso tinha por ele um sentimento de débito perpétuo.

Obediência, lealdade, devoção… Ofertar-lhe o mundo ainda seria muito pouco, a pessoa que lhe permitira conhecer o sol merecia muito mais.

E o que eu lhe dei? Apenas desgosto, pensava sob lágrimas amargas.

Os olhos leitosos e espantados do velho ainda estavam estampados em sua memória, frescos como nabos recém colhidos.

Perdera um pai ao cair da última noite, e o mundo… perdera seu último santo.

Enterrava-o na encosta pedregosa da montanha, sob a sombra da vigilante e reverente santareira, onde o sol da manhã aquecia o solo e a relva. Ele gostaria de ser enterrado aqui, sempre foi seu lugar favorito, pensou Jaoam. O solo áspero tornava-se mais resistente e intransponível conforme a sepultura se alargava. Alguém se oferecera para ajudá-lo, mas recusou, declarando que este era o seu papel, que apenas ele poderia fazer aquilo.

Mas não tardou, e o solo, enfim, tornou-se intransponível para suas mãos, como uma parede de ferro, e viu-se forçado a continuar a aprofundar a cova com o auxílio de uma pá.

Sua hedionda mão esquerda era uma abominação agourenta, um misto de deformação e desgraça. Os dedos se contorciam uns sobre os outros como raízes de um carvalho antigo. Dedos escuros e inarticulados. A mão de um demônio, diziam; raramente em sua presença.

Folhas brancas caíam sobre suas cabeças, como a neve dos invernos. Logo não restaria uma folha naqueles galhos, sabia bem disso. Era Pai Myriel que alimentava o espírito da árvore, sem ele os frutos se tornariam feios e amargos, o tronco e as raízes vermelhos como sangue.

Pela primeira vez, sentiu as mãos doerem, e tomou aquilo como um castigo merecido.

Quando o buraco estava apropriado, pegou nos braços o corpo do velho e o repousou no fundo da sepultura. Tão leve, pensou. Sempre foi assim tão leve? Pai Myriel era um homem dado a procissões, vigílias, renúncias e jejuns, pensando agora, era compreensível sua leveza. Sua enorme alma era tudo que tinha para dar peso ao corpo, e era tudo o que ele alimentava. Cobrira seu rosto com um lenço branco; para esconder-lhe a expressão retorcida e assustada do momento da morte. Sempre pensei que manteria as feições passivas e bondosas inclusive na morte. Mas estava enganado. Pai Myriel teve na morte uma máscara que nunca sugerira usar em vida.

Padeceu desejando minha morte, me amaldiçoando, tinha certeza disso.

Espantou aqueles pensamentos e despediu-se uma última vez do homem que foi seu único benfeitor.

Então, cobriu-o com terra até que o corpo franzino e indefeso desaparecesse por completo. Logo os vermes comeriam sua carne, seus ossos apodreceriam e tudo que restaria do santo homem seriam as lembranças e seus ensinamentos. “Essa vida é efêmera Jaoam, nada que façamos tem valor, exceto o bem que fazemos aos outros, é a única coisa que ficará para trás quando voltarmos ao pó da terra.” Dizia Pai Myriel. Preciso, como sempre.

Quando bateu o último punhado de terra, esperava olhar para trás e se ver sozinho. Sentiu-se plenamente feliz por estar enganado. Todo o vilarejo ainda estava presente, compartilhando de seu pesar em uma cerimônia tão reverente que mais parecia o velório de um rei.

— O homem se torna um com a terra novamente. Abençoado seja o velho Myriel. Merecia viver mil anos e muitos mais, heh, mas a idade chega para todos, como é devido. Hoje foi ele, amanhã será eu, e um dia nenhum de nós estará mais sob esse sol — disse Dona Mercyana, lutando contra as lágrimas. Talvez ele vivesse mil anos se não fossem minhas palavras, pensou Jaoam, inconsolável. — Sempre terá um quarto em minha estalagem para você meu filho, não precisará viver naquela cabana velha repleta de fantasmas agourentos.

Ela deu a Jaoam um abraço firme e demorado.

— Não há problema em chorar meu filho, diante da morte até as nuvens choram — ela dizia, tentando convencer-lhe a derramar mais algumas lágrimas.

Mas Jaoam já se sentia fazio.

Os demais vieram um a um. Deram-lhe abraços apertados, palavras gentis, ofereceram abrigo.

Mas para Jaoam nada daquilo tinha valor. Eram abutres que por toda a vida se alimentaram das entranhas de seu pai, aproveitando-se de sua boa vontade.

Mais tarde naquele dia, quando o céu começava a vestir o luto e as folhas da santareira cobriam o chão como um tapete de lã, enfim tivera algum espaço.

Não chegou a despedir-se dos poucos que ainda lhe faziam companhia, apenas virou as costas para a sepultura já coberta, e subiu a encosta da montanha, ciente de que a partir dali estaria sozinho.

O casebre onde vivera por toda a vida com Pai Myriel havia sido construído pelo próprio quando Jaoam não passava um rebento que só sabia engatinhar; claudicando como um cavalo manco, por causa da mão deformada. Jaoam era uma daquelas miseráveis almas que por algum motivo a vida lhe vira as costas de todas as maneiras possíveis. Nascera deformado, pobre e não demorou a ser abandonado. “Uma maldição”, diziam os aldeões quando o encontraram vagando na floresta como um animal selvagem.

“Devolva-o pro mato. Entregue-o às feras. Jogue-o em um buraco. Tem o dragão no corpo. 

Jogue-o da montanha. Ele vai trazer a desgraça pra gente.”

Mas Pai Myriel, alma cândida, vivida e experimentada, desafiou a turba tempestuosa.

— É apenas uma criança, que mal ela pode nos fazer se não aquele que nós fizermos a ela primeiro? Ficarei com o garoto se ninguém o quiser, será meu filho e eu serei seu pai.

Pai Myriel era na época apenas um estranho àquele lugar. Um velho andarilho que vagava sem rumo e lugar. Antigo vigário de uma ordem religiosa esquartejada pelo tempo e pela obsolescência de uma era onde as pessoas, subitamente, concluíram que já não precisavam tanto assim do deus dos Patronos.

A Casa Alva havia sido uma instituição milenar, uma das inumeráveis heranças deixadas pelos santos heróis que desafiaram o Usurpador. Mais de mil anos haviam se passado desde então, e muitos reis haviam sido coroados desde que fora proibido haver reis sobre a terra. O único rei real, era aquele que reinava do sol, este fora o primeiro ensinamento que se recordava. Mas tudo que deve ser lembrado, se é esquecido.

— Mesmo leis rígidas e escritas em pedra podem ser facilmente maleadas, basta um bom argumento e uma quantia significativa de espadas em histe — dissera o pai.

No tempo que Pai Myriel fora de líder religioso à eremita foi o tempo em que o mais recente rei de Elvorem, a águia no trono dourado, Urthas Doraster, havia decretado que nada havia de especial nas árvores santas ao qual os devotos da Casa Alva tanto estimavam, portanto, elas poderiam ser entregues ao machado sem nenhuma cerimônia. Existia uma Casa Alva para cada santareira, e uma santareira para cada lugar aonde deveria haver uma Casa Alva. Eram obras idílicas, árvores possuidoras de uma madeira rubra tão preciosa quanto o próprio rubi, e seus frutos eram únicos e abençoados. “Era a árvore das árvores.” Dizia Pai Myriel. “Mas bastou um decreto, e do dia para a noite mil anos de filantropia passaram a valer menos do que um punhado de lenha.”

Tão pior quanto o próprio ato, fora como ele fora lembrado. A Guerra do Pau Santo não era um nome que inspirava respeito.

Jaoam sempre pensou que uma guerra entre lenhadores, marceneiros e comerciantes contra um bando de beatos e beatas indefesas não era guerra alguma, mas um massacre.

Muitos devotos morreram se negando a deixar a árvore sucumbir ao machado, mas muitos também pegaram em armas e desafiaram seus algozes, por mais que fossem julgados e execrados por seus próprios irmãos e irmãs.

Pai Myriel não seguira nenhum dos dois destinos, diante de dois destinos, criara um terceiro. Quando o perigo bateu a sua porta, seguira pelo caminho que lhe parecera mais coerente.

A porta dos fundos.

— Um dia morreremos, meu filho. Mas enquanto esse dia não chega buscamos viver. Faço mais bem ao mundo vivo do que morto — ele dizia, sem nenhum ressentimento por ter abandonado sua fé. — Nunca abandonei minha fé, o que deixei para trás foram paredes pintadas de cal. As boas obras que fazia ainda faço, e nenhum decreto de um dito rei pode me impedir de fazer o que fui ungido a fazer.

Este era Pai Myriel, o homem que vagou por Elvorem sem ter onde dormir ou onde morrer, tendo na bagagem apenas uma crença inabalável de propósito ainda não alcançado.

Encontrou seu lugar quando encontrou uma esquelética árvore em uma montanha. Seca, indiferente aos olhos de qualquer lenhador. Precisava apenas de boas mãos e uma boa alma a lhe regar e assim frutificaria e faria sombra. Convencido de que encontrara seu lugar, instalou-se naquelas bandas e se tornou para o vilarejo ao pé daquela montanha um homem de muita serventia.

Viveu para abrir caminho por entre corações endurecidos.

Até que a criança com a mão deformada fora encontrada.

Se não fosse por ele, Jaoam agora seria apenas um punhado de ossos corroídos por vermes. Ele me permitiu a vida e me chamou de filho, e o que eu lhe dei em troca?

O casebre em que viveram por toda a vida havia sido construído voltado para o leste, para que os primeiros raios de sol os iluminasse. Era essa a primeira benção do dia. Então vinha a oração matutina. Seguida um parco desjejum, seguido de uma generosa dose de ensinamentos e orações.

Sem Pai Myriel e toda sua luz, não passava de um cão sozinho correndo atrás do próprio rabo.

Eu seria capaz de ser sozinho a luz que ele era? A questão o deixava ainda mais pesaroso. O mundo havia perdido a última centelha capaz de trazer luz aos corações enegrecidos.

O céu sobre sua cabeça era uma mortalha obscura e sem vestígios de luz, até a lua se escondia por trás das nuvens, e as estrelas — lendas tão antigas quanto os Patronos — eram apenas histórias contadas para encantar crianças. 

Sem estrelas e sem santos, o que será desse mundo? Esse foi seu último pensamento antes de vislumbrar a lua. Estava vermelhíssima, e por um momento ela lhe lembrou os olhos de seu pai ao morrer.


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Notas finais do capítulo

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