Premonição: Trilhas da Morte escrita por PeehWill


Capítulo 1
Vazio


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal! Tudo bem?

Vocês devem estar se perguntando o que aconteceu com minha antiga quinta fanfiction. Então, depois de problemas acerca de bloqueio e hiatus, resolvi dar uma virada e trazer uma espécie de reboot dela. Nova ambientação, trama, personagens e trazer um novo ar para minha saga. Prometo que foi a melhor saída que encontrei pra entregar uma ótima história a vocês!

Neste capítulo temos apenas a apresentação de alguns personagens. Suas fotos podem ser encontradas aqui (recomendado que vejam antes de começarem a ler):
http://peehwillfanfictions.blogspot.com.br/2018/04/cast-premonicao-trilhas-da-morte.html

Apesar de introdutório, é um capítulo bastante especial. Eu já revisei, mas se encontrarem algum errinho, não se acanhem em avisar, ok? Espero que gostem e aproveitem!



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Foi difícil para Serena encontrar uma farmácia aberta durante a madrugada. A maioria encontrava-se fechada e poucas eram as que possuíam funcionamento 24h, como os supermercados da região, principalmente porque a cidade pacata em que vivia não exigia muito dos estabelecimentos. Foram incontáveis quarteirões à pé até que a mulher encontrasse, por fim, o que procurava.

Assim que desceu do ônibus, minutos antes e a algumas poucas quadras dali, sentiu a mudança brusca de temperatura. A rajada de ventos frios era soprada contra seu casaco branco, enquanto andava a passos largos e apressados rumo à porta da farmácia. O ponto de luz do estabelecimento, que escapava das janelas e da sinalização em forma de seta neon na placa, guiavam-na pela escuridão da noite. Os grilos emitiam seu som sincronizado, acompanhando-a no trajeto, e o chão ainda estava úmido por conta de uma chuva que caíra mais cedo, de modo que Serena pisou em uma das poças sem se importar com sua bota molhada.

Ela subiu o batente e empurrou a porta de vidro, adentrando no estabelecimento e sentindo uma pequena vertigem causada pela excessiva quantidade de paredes e objetos brancos espalhados pelo local. Logo, seus olhos acostumaram-se com a claridade e se depararam com uma farmácia bastante comum, com o cheiro de farmácia comum impregnando suas vestimentas.

Prateleiras recheadas de remédios imediatamente atraíram sua atenção, um estalo dentro da sua cabeça para lembrá-la do porquê de estar ali àquela hora da madrugada. Então, andou calmamente entre as seções, observando de maneira atenta cada caixa de medicamento descansando sobre as gôndolas. Poderia levar todos eles se quisesse, mas não seria necessário, apenas alguns lhe eram especiais. Ergueu o olhar, fitando os rótulos mais altos, quase inalcançáveis. Contudo, na verdade, nenhum deles estaria tão longe do alcance de suas mãos.

Não só no sentido literal, já que Serena Young era uma mulher alta e de porte atlético, que mesmo dentro de roupas grossas e pesadas — como o casaco, a blusa cinza de mangas compridas e a calça jeans preta que vestia —, aparentava estar em forma. Seus cabelos dourados foram amarrados em um rabo de cavalo simples, feito às pressas. O rosto comprido parecia ter sido lapidado à mão: nariz e sobrancelhas finas, proporcionais aos lábios também finos e rosados. Seus olhos eram como duas orbes azuis, grandes e expressivas, que giravam sem vida pelo corredor da seção. As últimas noites mal dormidas haviam roubado todo seu brilho convencional.

Ela piscou algumas vezes e coçou o queixo sisudo, conferindo a prateleira que estava bem na sua frente. Adiante, atrás do balcão, manteve um rápido contato visual com o atendente no caixa, que acenou gentilmente.

Serena olhou para os lados em um gesto automático e recolheu duas caixas de comprimidos, empurrando-as para dentro da cestinha azul que pegara de um suporte ao entrar. Inicialmente, ela não soube dizer de onde surgira aquela preocupação, mas logo reconheceu como sendo uma resposta rápida do seu subconsciente em situações que a deixavam tensa. Estava praticamente sozinha ali, mas seu corpo vez ou outra dava sinais de que alguém pudesse estar presente e tão próximo, a ponto de surpreendê-la. Convenceu-se de que já deveria ter se acostumado às consequências psicológicas de se trabalhar, por tanto tempo, com a parte perigosa da cidade.

Há seis anos, Serena trabalhava no departamento de polícia da cidade. Era seu trabalho zelar pelo bem estar das pessoas. Ter diversas precauções e estar preparada para qualquer tipo de situação era essencial, mas ela acabava trazendo obrigações demais para dentro da própria vida, que iam além do que poderia lidar. Ser uma policial nunca esteve em seus planos, não era um dos seus grandes sonhos de criança, como muitos dos companheiros de uniforme; muito menos houve alguma espécie de influência familiar sobre a decisão. Ela conhecia os riscos e sabia da enorme responsabilidade que recairia sobre seus ombros a partir daquele momento, mas decidiu que não perderia a oportunidade e se agarrou a ela. Como se não tivesse mais nada além disso.

Na cesta azul, reuniu todas as caixas e frascos de comprimidos que tomaria durante a semana e prontamente se dirigiu ao balcão do caixa para pagá-los.

— Serena?

A voz grossa e familiar ecoou pelo recinto outrora silencioso, lhe arrancando uma onda de eletricidade dos pés à cabeça e forçando seu corpo a parar no meio do corredor. Fora fácil descobrir de quem se tratava antes mesmo de virar para encará-lo. E disposta a transparecer tranquilidade, a loira virou e cumprimentou:

— Seth! Como vai? — Acenou com a cabeça.

— Estou bem. Que surpresa te encontrar por aqui a essa hora!

— É… Também não esperava que tivesse que vir tão tarde. — Serena sorriu, desconcertada. Tentou esconder ao máximo sua cesta de medicamentos atrás do corpo, não queria que a conversa durasse mais que o necessário ou tomasse um rumo desagradável. — E você, quando foi a última vez que te colocaram em uma ronda noturna?

— Posso dizer que, felizmente, esse não é o caso. — Sorriu.

Fazia tempo desde que Serena vira aquele belo sorriso pela última vez. E para quem o via todos os dias, era uma sensação diferente presenciá-lo em outra ocasião que não fosse em serviço. Seth continuava trabalhando no departamento de polícia, mas ao contrário de antes, não ao seu lado. Depois que a mulher pedira afastamento de suas atividades para resolver problemas pessoais dos quais ele não tinha conhecimento, se viu tendo que conviver com outro parceiro nas ruas. Era uma experiência completamente nova. Ninguém se comparava à forma como Serena encarava suas lutas diárias, eles costumavam ser uma dupla imbatível. Seth sentia falta daquilo.

— Acabei pegando uma chamada de motorista bêbado antes de largar o turno e ficando preso nisso por algumas horas. — Suspirou aliviado por ter se livrado do homem imprudente. — Sabe como é.

— Que dor de cabeça, hein? — Serena comentou, fazendo uma careta. — Lembro que precisávamos de muitas cartelas de analgésicos depois disso.

— Pois é... — Seth quebrou em um meio sorriso desta vez, partilhando das mesmas recordações. — Quando pretende voltar? — Ele perguntou, esperando uma resposta otimista.

A loira não sabia o que responder, já que estava às cegas sobre a previsão do seu retorno. Ela ainda precisava de um pouco mais de tempo até se estabilizar e estar pronta para enfrentar um dia cheio de trabalho novamente. A saída que encontrou foi cortar o assunto:

— Desculpa, mas eu tenho que ir.

Serena começou a retirar as caixas da cestinha e por sobre o balcão com pressa, enquanto o atendente passava os medicamentos pelo leitor de código de barras.

— Eu posso te dar uma carona, se quiser. — Sugeriu o policial, observando por alguns segundos os nomes estampados nas pequenas caixas coloridas.

— Não precisa se incomodar, Seth. — Ela enfiou rapidamente os remédios dentro da sacola e forçou o melhor sorriso que conseguiu.

— Ei, até parece que não me conhece! Não vai ser esforço nenhum, quero ajudar. Já está muito tarde pra conseguir um ônibus. — Insistiu. — Só tenho que pagar meus comprimidos.

Contudo, a mulher não se opôs e concordou, faria aquilo pelos velhos tempos.

 

x-x-x-x-x

 

Sebastian Torres ou Seth, como ficara conhecido após entrar no departamento de polícia, não tirava os olhos da estrada. Atrás do volante, via os grandes faróis acesos do próprio carro se destacarem no breu da estrada deserta. Haviam alguns postes iluminando o caminho, mas a distância entre eles fazia com que pedaços da estrada ficassem quase que completamente engolidos pela noite. Do seu lado, sentada no banco do carona e recostada contra o vidro frio da janela, Serena continuava calada desde que saíram do centro da cidade. Ela fitava as árvores passarem velozes do lado de fora e evitava ao máximo manter contato visual com Seth.

O homem era, de longe, a pessoa mais charmosa que Serena vira em anos. Na casa dos trinta, forte e de traços latinos marcados pela pele levemente bronzeada. Tinha nariz reto e cílios avantajados que destacavam os pequenos olhos castanhos, da mesma cor de seus cabelos. Seus lábios eram o que lhe chamavam mais atenção, por serem grandes e carnudos. E apesar da policial nunca tê-lo visto com segundas intenções, era inevitável que se sentira atraída por ele de certo modo.

A fim de evitar que o silêncio pudesse se tornar mais constrangedor, Seth tentou arriscar:

— Não precisa me dizer o que está acontecendo, mas te conheço por tempo suficiente para saber que não está bem.

— Obrigada, mas não tem que se preocupar comigo, de verdade. — Serena respondeu séria, tirando uma mecha loira do rosto.

Seth sentia muito pelo distanciamento que ambos sofreram nos últimos meses. Ele poderia ter feito algo a respeito e estado com a amiga naqueles momentos turbulentos, mas não era uma escolha utilitária que partia apenas dele. Serena era tão importante quanto ele naquele processo. Primeiramente, começou com algumas faltas no serviço e quando comparecia, ficava distraída boa parte do tempo. Semanas depois, passou a fugir das conversas, tornando-se indiferente a assuntos sérios. E por último, escondeu-se atrás de uma casca intransponível de frieza e orgulho até pedir o afastamento provisório.

Independente do motivo e mesmo se quisesse, o latino não conseguiria ajudar alguém que se recusava a receber ajuda. Talvez, através do reencontro, poderia reaproximar-se da companheira de trabalho.

— E como estão as crianças, ainda morando com a mãe? — Foi a primeira vez que Serena o encarou dentro do veículo.

Por um segundo, Seth pareceu surpreso com a pergunta, mas logo lembrou-se de que seus problemas conjugais já existiam antes do afastamento da loira e os dois já haviam comentado esporadicamente sobre o assunto. Sebastian estava divorciado da esposa há pelo menos um ano, depois de um término conturbado causado por ciúmes e questões profissionais. Assim, foi determinado pela justiça que a guarda dos filhos, Romeo e Daniele, de quinze e nove anos respectivamente, ficaria com a mãe por tempo indeterminado. Embora os altos e baixos no relacionamento a partir de então, o homem conseguiu que além dos finais de semana estipulados pela ex-mulher para ver os filhos, as crianças poderiam passar algumas semanas das suas férias ao lado do pai.

— Sim, estão morando com ela. A boa notícia é que estão vindo passar alguns dias comigo. Não vejo a hora de abraçá-los. — Seu peito encheu de alegria só de imaginar.

Pelo retrovisor, Serena viu os olhos de Seth brilharem.

— Fico contente por isso, eu sei o quanto ama aquelas crianças. — Respondeu, surpreendendo-o novamente com um toque em seu ombro.

As crianças moravam em uma cidade vizinha com a mãe e o padrasto, de modo que a saudade não apertava tanto. Poucos quilômetros os separavam do pai, que poderia vê-los a qualquer momento, mas enquanto fora dos dias combinados, deveria manter a distância mínima contida no acordo.  Às vezes sentia que estava sendo deixado para trás pouco a pouco, mas ninguém mais do que ele sabia o quanto era indispensável fazer valerem as leis. E Seth era um homem que gostava de segui-las à risca.

— Vou buscá-los amanhã à noite na estação de Edenburry. — Ele comentou, vendo-a franzir o cenho.

— Edenburry não fica à duas estações daqui?

— Eles adoram andar de trem e minha ex tem um compromisso por aquelas bandas. — Respondeu satisfeito. — Concordei porque não me importo, sabe? Só de pensar que vou tê-los por perto…

— Entendo. — Ela sorriu de lado.

Serena voltou a olhar além da janela e o latino se distraiu por breves segundos, ao passo que tateou os botões do rádio no painel.

— Seth, cuidado!

O alerta repentino da passageira fez com que o condutor girasse o volante bruscamente, o olhar atordoado na direção do asfalto, quase jogando o carro para o acostamento. Os dois balançaram em seus assentos, enquanto o penteado de Serena ficou prestes a se desfazer.

Voltando ao seu curso normal e se recuperando do susto, a mulher olhou direto para o retrovisor, a tempo de enxergar o animal de pelagem cinza e olhos amarelos vívidos encarando o veículo ir embora.

— Essa foi por pouco… O que foi aquilo? — Seth perguntou, soprando todo o ar preso entre os lábios.

— Um coiote.

 

x-x-x-x-x

 

Da varanda de casa, Serena acompanhou o carro de Seth partir na escuridão, sumindo detrás das árvores que ficavam às margens da estrada e observou essas mesmas árvores chacoalharem com o vento. Morava em um bairro bastante calmo, dificilmente se viam moradores fora de suas residências, principalmente durante a madrugada. Em seguida, girou a chave na fechadura com todo cuidado para não fazer nenhum ruído e entrou sorrateiramente, primeiro retirando as botas e deixando-as sobre o carpete da entrada. Depositou seu casaco em um suporte na parede e caminhou pela sala parcialmente iluminada pelos rastros da luz da lua.

Pé, antepé, ela esgueirou-se até os degraus da escada que dava para o andar de cima, onde ficavam os quartos. Segurava a sacola de modo a não deixar que o plástico denunciasse sua chegada, mas acabou não notando um detalhe. Havia uma luz acesa ao fundo da escadaria, que provinha da cozinha. E enquanto subia os degraus, a luz apagou-se. Serena continuou subindo, até ter a sensação magnética de alguém se aproximando.

Olhou por cima dos ombros, retraída, e sobressaltou com a presença de Joey na base da escada, segurando no corrimão. Seu primo tinha a expressão de quem caíra da cama e provavelmente ainda estava dormindo. Os cabelos castanhos que viviam arrumados metodicamente, agora estavam um pouco bagunçados e um lado do rosto quadrado, amassado por causa do colchão. A pele branca, os olhos castanhos-claros acompanhados do nariz pequeno e dos lábios rosados e finos continuavam inabaláveis. Era um belo rapaz minimamente destruído pelo sono.

— O que está fazendo acordado? — A loira perguntou, mais empenhada em terminar o lance de degraus do que qualquer outra coisa.

— Fui tomar um copo de leite. — Ele coçou os olhos. — Aonde você foi?

— Não estava conseguindo dormir e resolvi dar uma volta.

O rapaz não se importou muito com a resposta. Não parecia algo que ele faria, mas aceitou-a, mesmo que a prima estivesse em posse de uma sacola farmacêutica. Sonolento, ele arrastou os pés nos degraus e falou:

— Você é estranha.

E entrou para o quarto destinado a ele.

Joey Ambrose Cooper era filho de uma tia de Serena por parte de mãe. Antes de consentir que o garoto passasse uma temporada de férias da faculdade em sua casa, os dois tinham trocado poucas palavras em ocasiões bem específicas, como no casamento de outra prima distante, que ocorrera na praia ou no enterro do avô materno, que reuniu boa parte da família. Por mais seletos que fossem aqueles momentos, todos haviam sido marcantes para ambos, o que reforçou a lembrança que cada um tinha do outro, e assim, facilitando a estadia.

O pedido fora feito pelo próprio Joey, através de uma rede social, que só a procurou porque seria sua última chance de tirar as sonhadas férias. Tentou convencê-la com a alegação de não conseguir passar tantos dias em casa, tendo sua mãe sufocando-o sob o mesmo teto. E também pensou que a ideia poderia dar a eles a oportunidade de se conhecerem melhor. Serena ficou reflexiva de início. Ter um adolescente embaixo das suas asas naquela altura poderia lhe acarretar mais problemas, mas no fim, achou válido seu posicionamento. Assim como já possuía um pensamento formado sobre a mãe do rapaz, que a tinha como uma afilhada, mas que nunca pareceu ligar de verdade. A tia era mesmo difícil de lidar, não só pela arrogância, como pela sua atrasada percepção de mundo.

Serena também concluiu que Joey já era bem grandinho, capaz de cuidar das consequências dos próprios atos. E embora acreditasse que não tinha nada a ver com o confronto dos dois parentes — caindo de paraquedas no conflito —, fez questão de deixar claras suas condições, entre elas: o primo avisar à mãe sobre passar algumas semanas ali. O rapaz afirmou também ter economias que poderiam mantê-lo por algum tempo, sem dar trabalho algum à prima na questão financeira.

Sequer passava pela cabeça dele que sua presença dentro daquela casa era um detalhe que fazia muita diferença no cotidiano vazio de Serena.

— Boa noite pra você também. — Ela retrucou, entrando na última porta do corredor, onde ficava seu quarto.

Dentro do cômodo, retirou o pedaço de papel dobrado de dentro do bolso traseiro de sua calça, contendo o número novo de Seth e observou o papel desdobrar-se entre seus dedos. Esperava não se arrepender de tê-lo aceitado. E guardou o papel embaixo da luminária sobre a cômoda, aproveitando para enfiar a sacola da farmácia dentro de uma das gavetas. Antes, abriu o frasco de medicamento que comprou e engoliu um dos comprimidos.

Jogou-se na cama em seguida, estava exausta. Foram poucos minutos, até que estivesse completamente apagada.

 

x-x-x-x-x

 

— Amor, volta pra cama… — Bunny gemeu de maneira dengosa.

A jovem espalhou o corpo preguiçoso pelos lençóis macios da cama e notou o espaço vazio ao lado, relutando em abrir um dos olhos para procurar o namorado. Não o encontrou, de modo que lutou contra os primeiros minutos do despertar e sentou na cama para ter uma visão completa do lugar. Não ouviu nenhum barulho vindo do chuveiro, supondo que o namorado saíra do quarto logo cedo. A tez franzida na direção da janela que dava acesso à varanda, olhando para fora, ela bocejou. Ainda haviam muitas nuvens no céu, acalentando os raios de sol e dando a impressão do início de um dia chuvoso.

Bunny deslizou para fora da cama e andou alguns metros, apanhando peças de roupas que foram jogadas pelo piso de madeira na noite anterior e que ela encontrava pelo caminho. Vestiu uma calcinha preta e seu enorme moletom rosa, com uma estampa de coelhos, deixando boa parte de suas coxas descobertas. Assim como o chão, as paredes também eram recobertas por madeira, já que o local onde estava se tratava de uma enorme cabana de veraneio. Aquele clima bucólico não era o preferido da garota, deixava-a estranhamente sonolenta e entediada, mas pensou em sair da sua zona de conforto na cidade grande e trazer seu namorado consigo. Já vivia uma vida extremamente monótona e regrada fora daquela cidadezinha por conta da faculdade, então achou que só teria a ganhar com a viagem.

— Kai? — Pôs a cabeça para fora do quarto, chamando pelo namorado. Sua voz atravessou o corredor em um eco longo e distante.

Sem respostas, entrou na suíte novamente e andou até a varanda, abrindo a janela de vidro e encostando-se na amurada. Lá embaixo, a alguns metros e sentado de maneira solene no píer de madeira, Kai jogava pedrinhas, vendo-as ricochetearem nas águas verdes do lago.

Bunny sorriu, satisfeita com a vista. O vento agradável da manhã lambeu seu rosto e balançou seus cabelos. Eram uma bagunça de cores nas madeixas volumosas. Diferentes tons de rosas brincavam nos fios ondulados e longos, que iam até abaixo de seus seios. Ela possuía uma beleza singular e o rosto perfeito de uma jovem no auge do college. Rosto pequeno, traços finos e bochechas bem marcadas. A pele negra contrastava com o moletom rosa e sua estatura baixa oferecia a ela uma aparência ligeiramente frágil. O que não batia com sua personalidade calorosa e habilidades atléticas.

Minutos depois, estava saltitando pelo caminho de pedra que serpenteava até o píer, surpreendeu o namorado com um beijo no pescoço. Ficou de pé ao lado do rapaz, fitando a superfície da água.

— Gostou? — Ela perguntou, pondo as mãos na cintura. — Esse lugar é lindo, né?

— Huh? — O rapaz virou o rosto de repente, despertando de pensamentos distantes. — Disse alguma coisa?

— O que deu em você? Está com a cabeça nas nuvens. — Bunny riu, abaixando e abraçando-o por trás, depositando mais alguns beijos.

— Esquece, não era nada demais.

— É por causa da faculdade? Não se preocupe, campeão, eles não vão tirar sua bolsa. Afinal, eles não podem mexer com o artilheiro do time, certo? — Respondeu, afastando o rosto para encará-lo. — A menos que…

— Eu não esteja tendo um bom rendimento acadêmico. — O rapaz completou.

— Eles não ligam pra isso, meu amor. Eles só querem bons resultados nos campeonatos, exportar jogadores para times grandes e conseguir patrocínio. — Bunny rebateu, meio aborrecida. — Além do mais, você me disse que estava indo bem, me prometeu que cuidaria mais dos estudos.

A namorada estava certa sobre a promessa de melhorar em tudo. Kai queria ter seu rendimento em cem por cento, seja no esporte ou nas notas. Entretanto, mesmo mantendo sua reputação como artilheiro do time de futebol da universidade e fazendo-o despontar nas partidas, o jovem vinha decaindo em suas notas. Conciliar a prática esportiva com as aulas estava tomando muito do seu tempo, era um desgaste físico e emocional constante. Ainda sim, deveria estar de pé todos os dias, firme como uma rocha. Kai era forte e conseguiria suportar, mas os reflexos da pressão começavam a preocupá-lo. Seu sonho estava em jogo e não queria que fosse ele a destruí-lo. Não se perdoaria.

— Sim, eu prometi, mas é muita coisa pra minha cabeça agora. — Ele respondeu, levantando. — Quer saber? Não quero mais falar disso. Decidi vir pra cá por um motivo e não foi lembrar da faculdade.

Bunny ergueu as mãos em rendição.

— Por mim, tudo bem. Só achei que poderia ajudar.

— Parece que não funcionou muito. — Ele riu de lado.

— Esquece, ok? — A namorada abraçou-o pela cintura. — Nada mais pode estragar esse momento. Sem pressão acadêmica, sem cobranças… — Beijou seu queixo. — Somos só eu, você e esse lugar maravilhoso!

Kai sentiu-se culpado por não estar tão animado com a viagem que Belinda Ripson planejara por semanas com requinte de detalhes. Desde convencer o pai, o dono de uma famosa rede hoteleira, a emprestar um dos seus melhores bangalôs, até conseguir atividades como trilhas e passeio de caiaque. A propriedade do lago era enorme, as árvores iam até onde os olhos podiam ver e a cabana mais parecia com uma mansão. Possuía dois andares, sendo o primeiro onde ficavam os inúmeros quartos e uma sala de jogos. E no último, um sótão que funcionava como depósito.

Kai não tinha do que reclamar, aquele lugar era um paraíso. Ele tinha certeza de que o problema não era estar ali, e sim, com quem. Há algum tempo, começou a duvidar se Belinda, ou Bunny como fora carinhosamente apelidada pelos seus pais — devido sua paixão por coelhos —, era a pessoa certa. E sabia que, a partir do momento em que eram colocadas dúvidas acerca do relacionamento, só haviam duas opções: dar mais uma chance ao sentimento ou parar de enganar a si mesmo.

Portanto, aceitar aquela viagem era a forma que Kai encontrara de dar mais uma chance a sua relação com a líder do comitê de eventos da universidade. A garota era extremamente inteligente, pró-ativa e popular na instituição, fazendo parte da maioria das atividades extracurriculares. Não foi à toa que sua entrada para o comitê deixou muitos dos estudantes em polvorosa. Ela estava em todos os lugares.

— Não esquece do jantar mais tarde. — Bunny disse de repente, caminhando de volta para a cabana. — Temos que estar lá às oito.

— Estamos de moto, chegamos num pulo. — Respondeu, seguindo-a até a motocicleta estacionada.

O jogador abaixou-se e estreitou os olhos.

— Ah, não… Não pode ser. Droga!

A garota virou, vendo-o chutar o pneu do veículo. Aproximou-se, perguntando:

— Ei, o que houve dessa vez?

— Os pneus estão furados.

— Quê? — Bunny inclinou-se para conferir. — Credo! Parece que foram rasgados, como isso aconteceu?

— Eu não sei, pode ter sido algum bicho à noite. — Kai passou a mão na cabeça, frustrado. — E agora, será que fica pronta até o anoitecer?

A namorada deu de ombros.

— Fomos intimados a comparecer no jantar. Temos que dar um jeito. Podemos ir... De trem, quem sabe?

— Tem certeza? — Ele riu. — Já andou de trem alguma vez na vida?

— Idiota. — Bunny socou seu ombro, abrindo um sorriso e saindo dali logo depois.

O rapaz continuou encarando as marcas violentas na borracha dos pneus, intrigado. Torcia para que, de fato, tivessem sido feitas por um animal.

De repente, sentiu uma brisa fria tocar sua nuca e arrepiou-se, olhando ao redor. Estava sozinho.

 

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O céu levou algumas horas para abrir e deixar o dia raiar na cidade.

A viatura de polícia estacionou de frente para a fachada de uma casa simples, mas com um jardim maltratado e a tinta desgastadas das paredes. Aparentava ser um ambiente esquecido no meio da beleza e semelhança das demais residências. Seth desceu do veículo trajando seu uniforme azul e um par de óculos de sol, sendo recepcionado pela face enraivecida de uma senhora de meia-idade. Ela abraçava os próprios braços, envolvida em seu xale e sentada nos degraus da pequena varanda, encarando o homem da lei aproximar-se.

— Sra. Winters?

Ela acenou positivamente com a cabeça.

— Desculpe a demora. Tive que atender outra chamada nas redondezas, mas o importante é que estou aqui. — O latino respondeu cordialmente. — A senhora está mais calma? Pode me contar o que aconteceu?

— Invadiram minha casa e reviraram tudo. — A voz saiu trêmula e delicada. — Venha, eu vou mostrar.

A Sra. Winters levantou, limpou a saia bordô que ia até abaixo dos joelhos e andou até o batente da porta, tendo o policial no seu encalço. Quando entrou, o homem pôde verificar que a sala estava um pouco bagunçada, com objetos espalhados pelo chão entre porta-retratos, enfeites de parede e  outras pequenas decorações. Na porta, notou que não haviam sinais de arrombamentos, de modo que o homem virou-se para a senhora e indagou:

— Quem quer que tenha feito isso, conseguiu levar algo?

Seth viu o gesto de negação e olhou mais uma vez em volta, passeando pelo cômodo na tentativa de achar o bombom sortido da caixa. Porém, parecia que tudo só estava fora do lugar.

A velha Winters pigarreou:

— Todos os dias acordo cedo para ir ao mercado, questão de meia-hora. Mas hoje, acabei demorando um pouco mais e quando cheguei, a porta estava escancarada e minha sala virada do avesso. — Ela levou uma das mãos nervosas até a boca, mas desistiu de roer as unhas.

— Sra. Winters, é provável que tenha deixado a porta aberta?

— Oh, definitivamente não, querido. Sou bastante cuidadosa com esse tipo de coisa. O bairro parece ser seguro, mas não devemos confiar em ninguém, não é verdade? Qualquer um pode ser um lobo na pele de cordeiro. — Comentou mais para si do que para o homem parado na sala.

O latino percebeu o momento em que a senhora cravou seu olhar no lado de fora, na direção da rua. Ficou parada, fitando um ponto cego por alguns segundos. Os cabelos eram loiros, mas facilmente se viam fios acobreados que lutavam contra as mechas grisalhas, frutos da terceira idade. A pele alva brilhava em contato com o sol, fazendo suas sardas saltarem do rosto de nariz e lábios finíssimos. O grande olhar azul paralisado se perdia gradativamente, refletindo o nada.

— Já que não foi encontrado nenhum indício de arrombamento ou subtração de bens, infelizmente não há muito o que eu possa fazer. Vou pedir que intensifiquem as rondas neste perímetro e arredores para evitar que o caso se repita. — Seth tocou sutilmente o rádio acoplado ao suporte em seu ombro. — Também sugiro que vá até a delegacia e faça um boletim de ocorrência, senhora.

A mulher de quase setenta anos recobrou a atenção e concordou sem ter certeza do que o policial lhe dissera.

— Quer que eu dê uma olhada no andar de cima, antes de ir? — Perguntou.

— Por favor, oficial. E obrigada.

— Que isso, só estou cumprindo com meu dever.

Enquanto o homem subia as escadas, Sra. Winters ajoelhou-se no carpete azul da sala, vasculhando os pertences caídos. Seus dedos engelhados e trêmulos encontraram um em especial. Tratava-se de um porta-retratos de sua filha, quando esta ainda era apenas uma menininha sorridente e cheia de vida. Olhando a fotografia, ninguém poderia dizer que o destino teria traçado um propósito tão obscuro e dolorido para sua menina. Que, anos depois, seu carneirinho seria abatido por um lobo faminto ou que aquela mãe, abraçada a ela e também sorrindo, sentiria tamanha perda de forma precoce.

Virou a foto com cuidado e leu a própria letra, escrita de caneta vermelha:

“Com amor e ternura, de sua mamãe, Florence”.

Por mais frágil e debilitada que parecesse, Florence não derramou uma lágrima sequer. De tanto chorar, ela perdera a capacidade de fazer aquilo novamente. Recompôs-se do momento dolorido e avistou o policial descendo os degraus, acenando com a cabeça. Despediu-se dele e esperou que entrasse na viatura para trancar a porta. Por alguns instantes, seus olhos bateram na maçaneta e um pensamento pairou sobre sua cabeça: seria possível ter deixado a porta aberta?

Encarou de volta a bagunça e suspirou. Teria muito trabalho pela frente.

 

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As árvores da floresta ao redor de Serena erguiam-se como monumentos da natureza, era bonito ver os raios de sol penetrando nas folhas e chegando até o chão. Ela facilmente conseguia deixá-las para trás, controlando sua respiração e sentindo seus músculos pulsarem embaixo da pele, com passos largos e resistentes no asfalto da estrada. Uma mancha de suor molhava seu colo e sua regata cinza, deixando nítido que já estava correndo há algum tempo.

Com os cabelos no tradicional rabo de cavalo, sentia-se leve e novinha em folha. Tinha certeza de que os efeitos dos remédios foram imediatos e que os comprimidos lhe deram uma noite de sono boa o bastante para permitir seus exercícios naquela manhã. Tornou-se um hábito, Serena corria todos os dias, antes de ir para o trabalho. Agora, corria para afastar o ócio e se manter sempre disposta. Eram duros os dias que mal levantava da cama, de modo que estar fazendo a atividade gerou uma expectativa de que finalmente teria um dia bom.

Cedo demais. Seu tornozelo deu um estalo e a loira caiu desajeitada no chão. Ajoelhada sobre a pista, a policial olhou para os lados e viu o momento em que uma caminhonete passou por ela, parando mais à frente. O veículo deu ré, enquanto ela levantava devagar.

Detrás do volante da caminhonete marrom, um homem de cabelos lisos da cor-de-cobre e barba cheia de mesma cor acenou.

— Está tudo bem? — Perguntou gentilmente. — Posso te dar uma carona, se quiser.

— Não, está tudo certo. Foi só um susto mesmo. — Serena suspirou, recobrando a pose e limpando os vestígios de sujeira dos joelhos. — Vou completar o percurso correndo.

O motorista assentiu e fez um movimento positivo, movendo a aba de seu boné. Em seguida, deu partida no veículo, a lataria rangendo por todo o caminho, acompanhando o ronco do motor velho. Segundos depois, sumiu no alto da estrada. Assim como Serena, solitária, que continuou sua corrida que duraria mais alguns minutos até chegar em casa.

 

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Logo que passou pela varanda e entrou na residência, conseguiu recuperar o fôlego perdido e foi direto para a cozinha beber um copo d’água. Escorada na bancada de mármore do cômodo, percebeu que uma música tocava alta no andar de cima. Alguém tinha aproveitado sua saída para extravasar. Após saltar os degraus de dois em dois, bateu na porta do quarto de hóspedes. Mais duas, três vezes.

Já que o barulho impedia que seu primo ouvisse as batidas, a loira não resistiu e entrou no cômodo, torcendo para não encontrá-lo em momentos constrangedores.

— Oi. — Joey cumprimentou-a de onde estava. — Achei que iria demorar um pouco mais.

Ele estava sentado em uma cadeira, de frente para o espelho redondo da penteadeira. Parecia concentrado em passar alguma coisa no rosto. Serena aproximou-se para ter uma visão melhor do que ele aprontava e espantou-se com o que viu.

Uma figura cadavérica impressa na face de Joey, que ria largamente da expressão da mulher.

— O que foi? Parece que viu um fantasma.

Ela observou que sobre o móvel, descansavam vários produtos coloridos: maquiagens, pincéis, tintas, pedaços de papel higiênico sujos da mistura de diversas cores, recipiente com água e cola.

— Pode me explicar o que significa tudo isso? — Serena perguntou, tateando os produtos e tentando esconder as bochechas enrubescidas por conta do mico que pagara ao se assustar.

Para disfarçar, foi até o aparelho de som que achou que sequer funcionava mais e abaixou o volume. Ela pouco se importou com a canção que tocava. Disparou:

— Já ouviu falar em fones de ouvido? Um garoto da cidade grande como você deveria andar munido de um par.

— Obrigado, mas eu já tenho minhas munições, e estão bem aqui comigo. — O rapaz balançou dois pincéis entre os dedos.

Só então, a prima parou para prestar atenção em cada detalhe da arte feita sobre sua pele. Ao redor dos olhos haviam círculos negros e manchas nas maçãs do rosto, dando profundidade à feição cadavérica. Dentes minuciosamente desenhados sobre os lábios e rachaduras na testa, de onde brotavam filetes de sangue, davam mais realidade à composição.

— É uma caveira? — A mais velha perguntou.

— Uhum. O que achou?

Estava verdadeiramente impressionada.

— Você é estranho, mas confesso que tem talento pra coisa.

O rapaz ficou feliz que a prima tenha gostado. Estava acostumado a receber muitos elogios acerca da sua habilidade com maquiagem e efeitos especiais em seu instagram, onde postava os resultados de sua criatividade. Mas assim como existiam os elogios, também existiam as críticas e elas vinham aos montes, duas vezes mais fortes, arrastando sua autoconfiança junto. A maioria não vinham formadas por uma opinião construtiva, e sim, por ódio e preconceito.

Joey tentaria não pensar em nada negativo dali em diante.

— Já que estamos aqui e agora você conhece meu trabalho, será que posso te pedir uma coisa?

— É claro.

— Pode me acompanhar até um evento sobre esse universo da maquiagem e dos efeitos especiais hoje à noite? Vai acontecer em Edenburry, sei que não fica longe daqui. — Ele juntou as mãos. — Por favor, por favor! Um dos meus seguidores me conseguiu passes vips!

— Eu não sei, Joey… — A loira torceu os lábios.

— Você pode ser minha modelo! — Seus olhos brilharam. — Preciso muito de uma para testar minha nova criação, sabe? Eu chamo de Madame Mortífera. O que me diz, huh?

— Jesus, não, Joey! — Riu. — Prefiro ficar só com as entradas.

Talvez um passeio como aquele seria a parte de diversão que faltava em sua vida, de modo que concordou e sentiu o abraço contente do garoto envolvê-la. Ela retribuiu, completamente sem graça.

— Vou me preparar, tenho muitas coisas pra aprontar antes de irmos.

 

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Uma espessa neblina rastejava sobre a plataforma da estação de trem da cidade e uma brisa fria uivava pelas paredes de concreto, até balançar o teto feito de placas de aço. O céu começava a encobrir a lua, espremida atrás das nuvens. Kai e Bunny andavam de mãos dadas na direção da área de embarque, onde várias pessoas já jaziam dispersas, esperando o transporte. O rapaz olhou em seu relógio de pulso, chegaram às 18h00min em ponto. Se o trem não atrasasse, chegariam com tempo de sobra no salão marcado para o jantar beneficente organizado pela família da garota.

Para a filha dos anfitriões da cerimônia, Bunny estava deslumbrante. Usava um vestido preto chamativo, com um colar de pedrarias roxas — presente de uma de suas várias festas de aniversário, e brincos que mesmo pequeninos — brilhavam intensamente ao menor toque de luz. As madeixas rosadas estavam onduladas e esvoaçantes. Kai não imaginava um visual diferente para traduzir a imagem poderosa que a garota queria transmitir.

Ao contrário dela, ele poderia ter se arrumado menos, mas a namorada fez questão que seu acompanhante causasse uma boa impressão. Convenceu-o a enfiar-se dentro de uma fina camisa social de botões branca, com detalhes pretos nas golas e uma calça também social e preta. Sem contar com os suspensórios presos ao seu peitoral. Kai era negro e possuía um porte físico forte e robusto. Seus lábios eram grossos e suas sobrancelhas próximas davam a ele uma expressão quase sempre de alguém que estava aborrecido. Os olhos escuros do rapaz fitaram Bunny bater o salto do sapato, impaciente.

Ele riu do gesto, desconfiando que a namorada estava começando a se arrepender da ideia de fazer o percurso de trem até a cerimônia. Sua suposição foi confirmada quando a jovem se aproximou dele e deitou a cabeça em seu peito, dizendo:

— Será que vai demorar muito?

— Já deveria ter chego. — Comentou.

Olhando mais adiante para o final plataforma, próximo aos trilhos, uma mulher surgiu do nada em seu campo de visão. Ela tinha a pele extremamente pálida, como se todo seu sangue tivesse sido drenado do corpo de uma vez só, e seus cabelos negros feito a noite dançavam ao redor do rosto. Caminhava devagar, cambaleando passo por passo, o vestido sujo voando com a brisa. Kai pensou que poderia ser perigoso demais andar tão perto da borda da plataforma, podendo cair. O pensamento causou-lhe um calafrio.

De repente, a mulher parou e olhou diretamente para ele. O rapaz sentiu o coração palpitar acelerado, lhe causando uma sensação de estranheza inexplicável.

Em silêncio, a mulher ignorou sua presença ou a de qualquer outra pessoa ali presente e virou-se de costas, inclinando o pescoço para frente. Ninguém parecia notá-la, apenas ele. Estaria delirando? Acompanhou-a, enquanto ela olhava de maneira fixa para os trilhos. Primeiro, um barulho distante… E logo a buzina do trem soou alta e ensurdecedora, avisando as pessoas que sua condução já estava se aproximando.

O estudante deu alguns passos na direção da mulher, ciente de que deveria avisá-la do risco. Parou ao notar um funcionário da estação tocar no ombro dela e pedir que se retirasse do perímetro, pelo menos até a condução chegar na plataforma. Não houve tempo nem para piscar. Num momento de distração do guarda, a mulher jogou-se na direção dos trilhos e foi interceptada pelo trem. Ainda que freando, a frente da caixa de ferro estourou seu corpo, jogando algumas partes para longe e arrastando o que restara. Kai presenciou o rastro de sangue e massa disforme que fora espirrado na direção do piso da plataforma e arregalou os olhos, chocado demais com a cena para ter alguma reação.

Então, apenas apertou a mão de Bunny, com quem subitamente se viu de mãos dadas de novo.

— Ai! O que deu em você, amor? — Ela reclamou, encarando as têmporas suadas do namorado. — Sua mão está gelada, parece até que morreu.

Ele olhou em volta, confuso. Estava do lado de fora da estação de trem, momentos antes de entrar.


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Notas finais do capítulo

Vocês viram que já começamos com algumas surpresas, né? E não perdem por esperar, o próximo capítulo não deve demorar e trará muito mais sangue.

Não esqueçam de comentar, dizendo o que acharam. As reviews são muito importantes e um incentivo a mais.



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