Insone escrita por Min Lunera


Capítulo 1
Capítulo Único




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Quando a noite caía e o firmamento se enchia de pontos brilhantes, a Fortaleza do Céu ficava mais silenciosa. Os sonhadores aquietavam-se por fora e se voltavam para o ritmo anacrônico do Imaterial. Os filhos da Pedra, por sua vez, mergulhavam no inconsciente sem cores ou sons.

Na calada noturna, uma sinfonia serena ribombava. Canção que só eu escutava, ritmo que ia e vinha como ondas numa praia pacata.

No meio dos devaneios que flutuavam em cada aposento, os pensamentos insones ressoavam mais altos do que o normal. Me atentei a eles e revi tudo o que incomodava os aflitos: fogo, lágrimas, sangue, vermelho, vermelho, vermelho…

A memória amarga de Refúgio era recorrente, pungente como ferida infeccionada. Cortes que se recusavam a cicatrizar, medos que poderiam estremecer o chão caso se libertassem dos corpos mortais.

Tanto trabalho a fazer, não posso ficar parado, era o que eu sempre falava quando precisam de ajuda. Era por isso que eu existia.

Naquela noite, fiz como nas noites anteriores: viajei pelo vento e percorri atalhos entre o Imaterial e o plano físico. Sussurrei para a cozinheira se acalmar; sugeri um chá calmante para o copeiro; relembrei o cavalariço de uma oração que ele tinha aprendido quando criança, o velho riu e se esqueceu de mim num piscar de olhos, murmurando a prece.

Sentei na muralha perto dos portões, deixando as pernas suspensas. Boa parte do peso da angústia havia evanescido. Me acalmei aos poucos.

A névoa das montanhas começou a envolver o ar e alguns insetos faziam ruídos. No pátio, uma grande fogueira estava acesa e era constantemente alimentada. Havia um grupo sentado ao redor do fogo, mas de consciência menos perturbada do que os outros que ajudei. Eles contavam anedotas, comentavam sobre o dia que passou e revelavam os desejos pelo dia que estava por vir.

O vento me trouxe um murmúrio. Começou baixo, como um felino resmungando. Fechei os olhos e me concentrei, aquela frequência era familiar.

Era o comandante Cullen. Ele observava as conversas de longe, nas ameias. A meia-luz me ocultava de seus olhos, embora eu estivesse na minha melhor discrição.

Vermelho, traição, tortura, fogo, queda, abandono, mortes, desonra, desalento. Uma espiral de correntes e aço quente. Orações entrecortadas a Andraste ressoavam entre as imagens distorcidas. Era a terceira ou quarta noite que ele não conseguia repousar a cabeça no travesseiro.

Por mais que eu fizesse de tudo para ajudar a qualquer um, algumas coisas estavam fora de meu alcance. Quanto mais antigas as dores se tornavam, mais difícil era arrancá-las. Como farpas que se multiplicavam ao redor de uma flor frágil. Como…

… lírio vermelho se alimentando de toda vida que via pela frente.

As memórias dele arranhavam sua alma o tempo todo, juntavam forças quando ele dormia. Não era à toa que o comandante estivesse com os olhos tão cansados.

Então foi quando testemunhei pela primeira vez…

Uma das pessoas ao redor da fogueira se levantou e anunciou:

— Senhores, a conversa está ótima, mas vou me recolher.

Era Lavellan, a Inquisidora Alma de Lebre. Eu estava tão atento às vozes mais altas — mais desesperadas — que não a percebi. Ou então havia percebido, mas ela estava tão descontraída com a conversa que seus pensamentos eram brandos, tranquilos.

Olhos que ficam dourados à luz do fogo. Um sorriso que se forma a cada palavra bondosa. Uma figura etérea entre a bruma.

Os pensamentos rodopiavam pelo ar ao redor de Cullen e caíam nas ameias, fracos, tímidos. Me aproximei mais um pouco, sem alarde. Queria escutá-lo melhor. Então pude ver com mais detalhes: as memórias agudas e escarlates tornavam-se borrões, misturavam-se com memórias mais recentes.

Reunião na Sala de Guerra. Fazia pouco tempo que tínhamos arrumado os aposentos do térreo. Quase nenhuma palavra entre Lavellan, Leliana, Josephine e eu. Estávamos todos cansados e com a cabeça cheia.

De repente, a Inquisidora sorriu e apontou para o sul de Ferelden:

— Vamos ajudar os magos que ficaram!

Josephine argumentou antes de mim:

— Com todo respeito, Vossa Excelência, mas depois do incidente em Refúgio com Corypheus, temo que o arl e o povo de Rocha Vermelha não gostarão da ideia.

— Não precisa ser um apoio direto. Podemos acolher os poucos que não se dobraram à vontade do magistrado de outra forma. — Olhou para Leliana.

A espiã-mestre entrou num acordo com Lavellan. Quando a Inquisidora se retirou, perguntei para as colegas:

— Será que é uma boa ideia?

— A intuição dela é melhor do que a minha na maior parte das vezes — Leliana respondeu com aparente desdém. — A Inquisidora tem meu voto de confiança. Sem contar que ela pode não ser maga, mas é dalishiana. E todos dizem que a viram com Andraste. É uma época de quebra de padrões, não acham?

— E os templários estão conosco para o que der e vier — Josephine completou.

Pensamentos se emaranharam, vergonha súbita como um soco por engano numa briga de anos atrás. Tambores altos, cavalos correndo, mas tudo entre as costelas.

Lavellan subia as escadas devagar, admirando o céu antes de a neblina abraçar a fortaleza. O comandante, tão resoluto e centrado na maior parte do tempo, hesitava entre voltar para as sombras de sua torre ou ficar estático, fingir que não a observava de longe.

Era final de tarde, eu tinha acabado de reorganizar as patrulhas na mudança de turno. Era difícil circular com facilidade entre os escombros, mas manter as pessoas da fortaleza a salvo era mais do que prioridade.

Alguém descia os degraus ao meu lado, ouvi a voz antes de vê-la:

— Está tudo bem?

— Inquisidora. — Arrumei a postura.

Um dos batedores apareceu com um informe de Leliana. Abri o envelope, li e dei minha resposta para ele. Lavellan permaneceu por perto. Quando o rapaz se retirou, ela quase soletrou:

Inquisidora Lavellan. É estranho, não é? Acho que vou demorar bastante para me acostumar.

— Um título merecido, Vossa Excelência. Você fez um ótimo trabalho em Refúgio.

Ela parou de sorrir. Oh, droga.

— Queria ter feito mais. Perdemos muita gente. Como estão as pessoas?

Olhamos para as barracas de feridos. Tentei suavizar a situação e respondi:

— Vamos nos adaptar. Os recursos para reformarmos a Fortaleza do Céu já estão a caminho.

Ela olhou para a marca que carregava. Veios de esmeralda ramificavam-se na mão pequena.

— É, espero que sim. Digo, acredito que vamos nos recuperar, mas… — hesitou. — Eu quase morri. E se eu não tivesse sobrevivido?

Confessei num átimo:

— Eu não sei o que faria.

As palavras foram mais rápidas do que o pensamento. Sem contar as intenções que soaram destoantes do que eu pretendia. Pelo menos, destoantes do que eu pretendia tarde demais.

— Prometo que… não deixarei isso acontecer de novo — tentei me recompor sem muito sucesso.

Os olhos cor de sangue estavam arregalados quando terminei de falar. Lavellan olhou outra vez para a marca. Fingi que estava organizando o bloco de papel que estava nas minhas mãos. Se eu estivesse sem luvas, era provável que teria encharcado as páginas.

— Digo o mesmo sobre não deixar você… Vocês em perigo outra vez.

— Solas, você não pode adotá-lo como se fosse um cachorrinho!

Vivienne discutia com o elfo no pátio acima. Lavellan se despediu:

— Com licença, tenho que ver o que aqueles dois estão fazendo.

Intenções veladas, mas boas, puras. Ervas que nasciam no chão outrora coberto de cinzas.

Mas veio o pudor como geada fora de época, e enfim Cullen recuou. Passos pesados em direção aos próprios aposentos, palavras entaladas na garganta.

Não era a primeira vez que eu testemunhava um caso daqueles. Mas mesmo assim me perguntei outra vez: por que esconder algo tão bonito e verdadeiro?

Ele gostava dela, ele via o que eu via na maior parte do tempo. Tinha dormido tão mal quando Lavellan havia partido para as Planícies Exaltadas, tinha comemorado em silêncio quando ela havia voltado com boas novas…

Mortais eram tão complexos. Cogitei de ir atrás dele e exercer meu trabalho, mas…

O que aconteceu? Ele está bem?

Lavellan vislumbrou as costas de Cullen antes de ele adentrar a torre do outro lado. Coração apertado, saudades de casa e medo do futuro. Por fim era possível ver suas fragilidades.

Fui ao encalço da Inquisidora, queria saber quais eram suas necessidades daquela vez. Os devaneios dela ecoavam baixos pelo salão vazio.

Noites em claro ao redor da fogueira, brincadeiras com o irmão que partiu há anos, um shemlen que era melhor nas mentiras do que no bandolim…

De repente, ela parou, virou-se para trás e olhou para mim.

— Oi, Cole.

— Você pode me ver? – gaguejei sem querer.

— Como na maior parte do tempo. — Ellana sorriu atravessado. Havia ansiedade e tristeza em sua voz. — Cole, o que eu faço?

Eu sabia a o que ela se referia. Mas respondi outra pergunta:

— Fale com ele.

Lavellan olhou ao redor, conferindo se estávamos a sós.

— Vocês se parecem em várias coisas — continuei — e são diferentes em outras inúmeras. É… algo bonito.

— E isso é o suficiente?

— Você tem a resposta.

Ellana riu e desviou o olhar para o chão. O rosto ficou rosado de embaraço.

— Eu não sou boa nessas coisas.

— Ele também não. Mas o que você sente sobre isso?

Conforto, foco no meio do caos, boas lembranças, o guardião que merece ser protegido, um rosto amigo depois de tanto sofrimento em Adamant.

— Confie na sua intuição. — Desapareci no ar de propósito, me materializei na balaustrada e observei.

Lavellan ficou parada por um longo tempo, refletindo. Era diferente daquela vez, ela sabia disso. Por que uma mágoa antiga tinha frutificando tanto, mas um sentimento bondoso e sincero não conseguia vingar?

— Obrigada, Cole — ela murmurou. — Já sei o que fazer.

Como eu amava meu propósito existencial.


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