I already know escrita por Bilirrubina


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Olá meus amores.
Eu podia estar matando, roubando, ou fazendo parte de algum esquema de corrupção, mas não. Estou aqui cumprindo 2 desafios numa só Oneshot.
Ela faz parte do Projeto Black Power e também do Desafio dos 100 dias (ambos do Spirit)



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Era para ser apenas um domingo em família, um almoço simples e nada mais. Porém tudo aquilo havia se transformado numa tortura para nós três. Estar sentada a mesa com aquelas pessoas só me fazia sentir pior. Creio que eles também sentiam isso. Nós queríamos apenas continuar vivendo, se é que podíamos chamar aquilo de “vida”.

Meu pai, um homem de meia idade, mantinha os olhos em seu prato. Eram visíveis suas rugas de preocupação, que se acentuaram nos últimos meses. Minha mãe, que normalmente mantinha sua maquiagem bem-feita e cabelos bem trançados, fitava o lugar vazio à minha frente sem um pingo de cor no rosto. E eu, bem, eu me sentia tão vazia quanto aquele lugar. Simplesmente não conseguia aguentar aquele clima. Olhava para os vasos de plantas suspensos no canto da sala enquanto enrolava um cacho em meus dedos, com a cabeça mergulhada em tempos distantes e saudosos.

— Segura essa escada direito pelo amor de Jesus! – ele falou enquanto olhava para mim, com medo – Se você me deixar cair, vai ver só, menina!

— Calma, Dajan. – tentei conter uma risada – Se cair, do chão não passa...

Apenas senti o olhar severo de minha mãe sobre mim. Mas quando virei para ela, vi que escondia um sorriso em seus lábios tingidos de vermelho.

— Seu irmão está fazendo um favor, trate de firmar essa escada direito, Viviane!

Novamente olhei para ele, meu irmão mais velho por apenas 2 minutos. Tinha os mesmos olhos castanhos que eu, a boca bem desenhada e carnuda que amávamos e os dez centímetros a mais que eu invejava. Ele por fim ajeitou os dreads e falou.

— Segura bem, Vivi, vou furar agora.

Meu irmão estava fazendo uma série de furos para colocarmos um conjunto de vasos de plantas suspensos. Eu tinha visto num blog de decoração e mostrei para minha mãe, que adorou a ideia e permitiu. Aproveitando que Dajan estava de férias da faculdade, pedi para que ele instalasse os vasos, já que nosso pai morria de medo da furadeira.

O barulho era alto e cada vez mais a sala se enchia de pó. Por um breve momento soltei a escada e levei as mãos ao meu rosto, porque tinha acabado de espirrar.

— VIVI! Segura! – ele desligou a furadeira na mesma hora.

— Não posso nem espirrar mais? A culpa é sua por fazer tanta poeira!

— Minha? – colocou uma mão na cintura e me fitou de cima – Foi minha essa ideia de pôr essas plantas aqui? Por mim deixava do jeito que tava. – murmurou.

— Não, foi minha ideia. – nossa mãe nos interrompeu – Agora acabem logo com isso antes que os vizinhos reclamem. Vou pegar o aspirador de pó.

E depois de mais um pouco de discussão e de eu ter fingindo derrubar meu irmão da escada uma vez, finalmente os vasos estavam no lugar, ao lado da janela da sala. Coloquei ambas as mãos na cintura e observei orgulhosa o nosso trabalho.

— Ficou ótimo, Dajan. – mostrei meu polegar – Se a carreira como jogador de basquete não der certo, já tem um emprego na minha empresa de decoração e paisagismo. – pisquei o olho esquerdo para ele.

Ele sequer se deu ao trabalho de responder, apenas revirou os olhos e foi para a cozinha.

Sem dúvida nenhuma o que mais sentia falta era incomodar Dajan, o que eu fizera minha vida toda. Mas também sentia falta das nossas conversas, dos segredos, das vezes em que juntos enganamos nossos pais para irmos a festas. Sentia falta do seu abraço apertado, do seu cheiro e até do jeito em que ele bagunçava os meus cabelos. Sentia falta de ouvir sua voz, da sua risada que contagiava a todos, de vê-lo jogar pelo time da faculdade e da sensação de orgulho quando ele fazia uma cesta de três pontos.

Com cuidado, enxuguei uma lágrima antes que ela descesse. Fitei o frango assado em meu prato e aquilo fez meu estômago embrulhar. Ergui a cabeça e encontrei o olhar de meu pai. Ele me respondeu com um sorriso triste, como se ele soubesse exatamente o que eu sentia, ou melhor, a falta de apetite que compartilhávamos. Aqueles meses sem Dajan estavam sendo um verdadeiro tormento.

Todos os dias eu me questionava onde ele estaria agora, porque ele tinha sumido, o que realmente tinha acontecido naquela noite, quem o levara... Queria acreditar com todas as forças que ele talvez estivesse em algum lugar sem memórias, ou mantido em cativeiro por alguma razão, ou tivesse sido colocado num programa de proteção a testemunhas ou simplesmente tivesse fugido. Eu sei, nenhuma possibilidade parecia real, mas se ele estivesse vivo... A cada dia que se passava menos certeza eu tinha disso. E meus pais também.

Duzentos e quatorze dias passaram-se desde que ele tinha desaparecido.

Não tínhamos nenhuma notícia nem da polícia, nem do detetive particular que contratamos. As pessoas comentavam que provavelmente ele teria disso morto por alguma dívida com o tráfico. Simplesmente por ser um jovem negro, puramente por termos vindo da periferia, cruelmente por preconceito.

Elas não conheciam o meu irmão.

Dajan era um atleta, ele queria jogar na NBA. Ele não desistiria do seu sonho por nada. Ele não era um criminoso e não tinha deixado tudo para trás por vontade própria.

— Eu não estou com fome. – falei, não aguentava mais ficar naquele ambiente melancólico e silencioso – Vou distribuir mais alguns cartazes.

E sem esperar pela resposta dos meus pais, levantei-me. Peguei um maço de cartazes de “Desaparecido” e um rolo de fita adesiva, que estavam em cima da mesinha de centro. Calcei meus tênis e por um momento olhei meu par de patins brancos. Lembranças de quando praticava enquanto meu irmão jogava na quadra do condomínio encheram o meu peito. O que eu não daria para que aqueles dias voltassem?

Praticamente tudo.

Deixei minha casa e peguei um Uber para uma parte da cidade que eu ainda não havia ido. Desci do carro numa esquina qualquer e comecei a pregar os cartazes com o rosto de meu irmão estampado nos postes e muros. Meus pais sempre faziam aquilo quando saíam do trabalho e eu quando tinha tempo livre. Geralmente quando estávamos juntos, tentávamos traçar teorias e procurar pistas no local do desaparecimento, porém nada daquilo nos levou a lugar algum e ultimamente sequer tínhamos mais forças para isto. Nada conseguiu nos responder para aonde ele tinha sido levado. Tudo parecia um esforço inútil.

Toda vez que o telefone tocava dizendo que havia um jovem negro não identificado no IML, nosso coração apertava. Corríamos a toda velocidade para aquele local e toda vez que víamos que não era ele, sentíamos um misto de alívio com receio. Será que da próxima vez seria o Dajan que veríamos deitado na mesa de metal?

Viver nessa incerteza estava nos matando aos poucos.

Viver não, sobreviver.

Onde se encontravam nossos sonhos, nossas esperanças, nossa vontade de viver? Estavam todos com Dajan, onde quer que ele estivesse.

Parecia que nestes dias vivíamos numa linha temporal diferente, algo entre realidade e pesadelo. Nossa percepção de tempo era outra, ao mesmo tempo em que parecia que Dajan dormiu em seu quarto há um dia, também parecia que não víamos seu rosto há décadas. Só tínhamos a certeza de que tudo estava durando demais e que não aguentaríamos por mais tempo.

Espalhei por aquele bairro todos os meus cartazes. Olhei para o céu e vi que o sol estava se pondo. Eu não queria voltar para casa. Não queria voltar para aquele inferno em que não poderia fazer nada. Mas a cada minuto que eu passasse na rua durante a noite, eu sabia que meus pais ficariam mais preocupados. Peguei o celular e novamente chamei um Uber.

Quando voltei para casa, já era noite. Ainda dentro do carro notei estacionada em frente ao meu lar uma viatura da polícia. Apressada, saí do veículo e corri. Ao entrar em casa, vi meus pais abraçados no sofá, chorando juntos. Ao lado deles, o policial responsável pelo caso de Dajan.

Não era preciso nenhuma explicação.

Eu já sabia.


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Notas finais do capítulo

Glossário:
• NBA - National Basketball Association, principal liga de basquetebol profissional da América do Norte;
• IML - Instituto Médico Legal.

Espero que tenha gostado
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