Little White Lies escrita por Diamond


Capítulo 1
Some nights, I stay up cashing in my bad luck


Notas iniciais do capítulo

Conforme informado nos avisos, este conto faz parte do Desafio dos Escritores do Grupo Caneta Tinteiro. Aos que não conhecem ainda, o grupo possui páginas no Facebook e Instagram, onde estão sempre abertos ao debate de obras literárias, organizando todos os meses desafios para escritores, leitores e até mesmo resenhistas.

Neste desafio, foi requisitado que criássemos uma história baseada num writing prompt, que consiste numa ideia, por vezes uma trama central que é proposta para que alguém a desenvolva. No caso deste conto, o prompt trazia os seguintes requisitos:

GÊNERO: ROMANCE/ COMÉDIA
IDEIA: Convencido por seu amigo, um homem aceita ir a um encontro às cegas. Ao chegar ao lugar marcado, encontra outro homem a sua espera.
FRASE: “Eu não bebo vinho”

Essa é minha primeira vez escrevendo um texto voltado para o gênero comédia, assim como minha primeira vez escrevendo em primeira pessoa e ainda retratando um casal homossexual. Foram muitas primeiras vezes, então conto com os comentários de vocês para saber onde acertei e onde posso melhorar ~

Sem mais delongas, desejo a todos uma ótima leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757523/chapter/1

A história que falarei aqui é provavelmente a mais estranha que já aconteceu em toda a minha medíocre vida.

Não, espere um pouco! Eu não vou falar absolutamente nada, porque, afinal de contas, eu não estou falando e sim escrevendo. Talvez seja melhor reformular essa frase. Recomeçando...

A história que você vai ler aqui — nossa, muito melhor! — é provavelmente a mais estranha que já me aconteceu em toda a minha medíocre vida.

Preciso confessar que, continuo tentando compreender o que se passou aqui, de modo que, infelizmente, serei incapaz de pontuar quais momentos e falas foram genuinamente verdadeiros ou falsos. Ficará a seu cargo atribuir doses de verdade as situações que serão expostas.

É bem provável, que esteja questionando-se agora: “Como vou atribuir doses de verdade a um relato? Fatos são situações que não podem ser contestadas”. Sendo bastante sincero, eu também pensava assim. Mas como você terá a oportunidade de ver, fui convencido de que um fato só é verdadeiro quando atribuímos a ele uma dose de verdade.

Você vai compreender tudo em breve. Ou não.

 De todo modo, vamos começar.

Era um sábado como qualquer outro, exceto pelo fato de que o universo conspirou para que eu guardasse a minha preguiça na gaveta esquerda da escrivaninha e dissesse a mim mesmo que hoje seria um dia produtivo.

À título de curiosidade, deixo claro que a conspiração do universo ao qual me referi pode ser literalmente traduzida na mensagem automática que recebi da internet banking, me informando que havia muitas faturas a vencer na segunda-feira seguinte.

Continuando.

Sendo bastante sincero, eu gostaria de não ter que considerar revisão de textos como um trabalho real e duradouro. Quem sabe um hobby, ou mesmo um extra para complementar à renda? Mas definitivamente não um trabalho. Não que essa seja uma atividade indigna ou algo do gênero.

O que quero dizer é que tive expectativas bem maiores quando ingressei na Faculdade de Letras, estando todas muita além da árdua tarefa de correção ortográfica em textos acadêmicos ou formatação de monografias e artigos científicos, adequando-os aos padrões da ABNT para um bando de estudantes cuja a preguiça é proporcional ao dinheiro disponível em sua conta bancária.

A grande verdade é que ninguém tem paciência para fazer esse tipo de tarefa e aqui eu me incluo nesse vasto universo de pessoas. No entanto, muito maior do que minha falta de paciência era minha carência de dinheiro.

Como precisava da grana, tive que fingir para mim mesmo que tinha toda a disposição necessária para fazê-lo com a maior satisfação. Essa falsa determinação foi que me fez sentar na cama com as pernas esticadas e meu laptop a postos para começar a trabalhar.

Estava tudo sob controle até a porta do quarto ser aberta sem qualquer aviso por meu colega de morada. Eu até já sabia o que ele queria, o que não tornava a situação toda menos penosa.

— Por favor, diga que pensou com muito carinho naquilo que te pedi.

— Jonathan, pela última vez: eu não vou a um encontro para livrar a sua cara! — Nesse exato momento, a falsa calmaria transformou em desespero e adivinhem só? Eu não ligava a mínima. — Talvez isso o ensine a não ser tão mulherengo, e não marcar dois encontros na mesma hora.

— Qual é cara, é apenas uma noite. Uma única noite, será que é pedir muito? Não é como se tivesse algo a perder com isso. Se não for tão insuportável quanto costuma ser, pode até mesmo se dar bem.

— A questão é que eu não quero me dar bem! Tudo que preciso é de um pouco de paz para trabalhar, e adivinhe? Você não está ajudando.

— Não seja estúpido, todo mundo quer se dar bem, principalmente num sábado à noite. — Aquela altura, Jonny começava a falar em tom de choramingo, tal como uma criança birrenta faria. O que me faz lembrar: ele é uma criança birrenta, apesar da carteira de motorista e da absurda quantidade de cerveja que estocava dentro de casa.

— Minha mãe sempre me disse que eu não sou todo mundo — respondi, me sentindo bastante inclinado a expulsá-lo dali aos chutes. Não se espante, é uma cena corriqueira em nosso reino banhado a farpas, xingamentos e derivados de cevada. — Além do mais, preciso terminar essas revisões, ou não terei como pagá-lo pelo aluguel do quarto. Pior do que morar com você seria ter que viver debaixo de uma ponte.

— Então é isso, tudo se resume ao dinheiro?

— Sim, Jonathan, tudo se resume ao dinheiro! Lembre-se de que eu sou uma prostituta gananciosa em mundo machista, capitalista e misógino!

Talvez não tenha percebido que estava falando alto demais. Poucos instantes depois o interfone começou a tocar, indicando que havia algum vizinho incomodado com o barulho. Decidi não dar mais atenção ao meu pior melhor amigo, e voltei a encarar o texto em tela. Estava claro que seria impossível ler algo com ele ali, contudo, ignorar sua existência trazia algum conforto para mim, principalmente quando sabia que isso o irritava ainda mais.

— Já que está tão preocupado assim com o aluguel, façamos o seguinte: eu te dou cinquenta por cento de abatimento este mês se você for ao encontro por mim.

As palavras aluguel e abatimento proferidas numa mesma frase soaram como música aos meus ouvidos. Eu estava brincando em relação a ser uma “prostituta”, mas aqui eu me obrigo a confessar que sou mesmo um tanto ganancioso, e que vivo em um mundo incontestavelmente capitalista. É, talvez o pequeno Jonathan merecesse um pouco da minha atenção, no final das contas. Fechei a tela do notebook, encarei-o com atenção e seriedade. Não estávamos ali de brincadeira, mas sim tratando de negociatas comerciais bastante delicadas.

— Dois meses de abatimento — disse, enquanto tentava ensaiar meu melhor sorriso de investidor vitorioso, na esperança de remeter a imagem do Lobo de Wall Street. É, aquele mesmo do filme.

— Dois meses?! Ficou maluco? Como espera que eu me mantenha desse jeito? Não, André, cinquenta por cento de abatimento.

— Por mera curiosidade, já enviou seus pedidos de concessão especial temporária ao Ministério da Magia? Não sei se eles estão dispostos a lhe conceder o vira-tempo que você precisará mais tarde — retruquei, enquanto tornava a abrir meu notebook, no intuito de retornar ao trabalho.

— Como você pode ser tão insensível? — ele queixou novamente. — Achei que eu fosse seu melhor amigo!

— Agora a oferta subiu para três meses de abatimento — calmamente respondi, sem tirar os olhos da tela. Estou certo de que Fred e Jorge Weasley ficariam orgulhosos de mim nesse momento.

— André! — Confesso que nessa hora estava começando a ficar com pena. Ele balançava as pernas freneticamente enquanto girava o relógio no punho, parecendo estar prestes a ter um ataque de nervos. Não consegui compreender a razão para tanto drama, se ele poderia simplesmente cancelar um dos encontros. Mas, se eu bem o conhecia, era provável que a sua baixa capacidade de processamento cerebral ainda não tivesse chegado àquela conclusão. — Dois meses, em parcelas alternadas e não se fala mais nisso. É minha oferta final.

Levantei os olhos para ele novamente, na esperança de fosse a última vez que eu tivesse que fazer aquilo. Não era como se eu estivesse saindo com alguém atualmente. E também não havia nada programado para hoje. Dois meses de abatimento. Mesmo em parcelas intercaladas, era bastante dinheiro. Me pouparia de uma porção de revisões insuportáveis.

— O que é mesmo que eu tenho que fazer?



As coisas começaram a dar errado no exato momento em que cheguei naquele café. O local era até bem decorado, mas estava abarrotado de pessoas — que definitivamente não eram minha espécie preferida —. O burburinho das conversas era tolerável, ainda que não muito agradável, e havia um sentimento coletivo de vergonha alheia com a escolha da música ambiente do dia.

Se eu já não tinha muitas expectativas com a simples ideia de um encontro às cegas, às especificidades da situação tornaram a coisa toda ainda pior. Naquela tarde, tive o desprazer de descobrir que Jonathan mantinha em seu telefone um aplicativo próprio para agendar Blind Dates com pessoas que tivessem um certo número de interesses em comum.

Isso, por si só, já explica o fato de praticamente não nos vermos em casa. Afinal de contas, “beber cerveja” e “transar” são provavelmente os interesses mais frequentes da nossa geração, o que faz dele uma pessoa bastante requisitada. Pelo que me disse, eles jamais haviam conversado, pois o próprio programa era responsável por verificar os interesses em comum, as datas disponíveis de seus usuários e fazer a reserva em algum estabelecimento bem avaliado pelo Trip Advisor.

Bastante funcional e prático, sou obrigado a reconhecer. Isso, é claro, até uma atualização de sistema conflitar com as permissões do software e agendar dois encontros para a mesma data.

Eu sugeriria que ele cancelasse o encontro, mas a partir do momento em que o perdão das minhas dívidas estava em jogo, essa já não era uma alternativa nada interessante.

Também poderia ter perguntado o que o fez pagar seis reais por aquela porcaria, mas me lembrei que existem alguns detalhes de sua vida privada que eu, sinceramente, não tenho o menor interesse em saber.

Agora, cabia a mim encontrar a afortunada às 18h30min mesa de número 13 deste café, entretê-la com algum assunto totalmente irrelevante por uma ou duas horas, me despedir com a promessa de telefonar no dia seguinte — algo que definitivamente não irei cumprir —. Finda esta etapa, poderia finalmente recompensar a mim mesmo pelo excelente trabalho com maior sorvete que eu puder encontrar e, enfim, retornar para o conforto e segurança de meu quarto alugado.

Não parecia ser uma tarefa tão difícil assim.

E lá estava eu, parado diante da mesa de número 13, que ficava localizada  desgraçadamente bem ao centro do café, às 18h45min, com possivelmente a maior cara de otário da história. Sinto te informar, Jonathan, mas parece seu amado aplicativo, mais uma vez, falhou com a sua única missão.

É bem verdade que eu poderia ter me sentado enquanto esperava e talvez assim chamar menos a atenção dos demais clientes —, mas minha cabeça trabalhava em tantas coisas ao mesmo tempo que a ideia não me ocorreu.

Teria Jonny feito isso para me pregar uma peça? Plausível, mas ele não desperdiçaria dois meses de aluguel com algo tão pequeno assim. Me ocorreu a feliz possibilidade de voltar para casa mais cedo do que planejava, mas se assim o fizesse, certamente não receberia os abatimentos que tanto precisava. Deveria então fingir que o encontro fora bem-sucedido, quando na verdade desperdicei duas horas da minha vida encarando uma parede, enquanto escutava músicas ruins?

Sabe esses longos momentos de reflexão, em que a mente se distancia do mundo real e começamos a encarar fixamente um ponto aleatório, tal qual um psicopata prestes a entrar em colapso faria? Pois bem, enquanto estava perdido em devaneios, eu encarava a cadeira da frente de maneira distraída. Os pensamentos só se dissiparam no momento em que um All Star vermelho, no tradicional modelo Chuck Taylor, cruzou meu campo de visão. E então pensei comigo mesmo: “É um pé bem grande”.

O dono do tênis levemente surrado era um homem bem aparentado, provavelmente na casa dos vinte e oito anos. Trajava vestes casuais, dando-me a impressão de que talvez ele fosse mais novo do que imaginei. Mantinha o pé esquerdo apoiado sobre o tampo da cadeira e parecia compenetrado em amarrar os cadarços.

— Desculpe, o que disse? — sua voz era baixa, grossa e tinha um sotaque engraçado que eu não soube definir de onde vinha. Terminando de amarrar seu próprio cadarço, ele retirou o pé de cima da cadeira e passou a me dar total atenção.

— Perguntei se essa mesa é sua.

Seu cabelo era um meio-termo entre o loiro e o castanho claro. A pele era bastante bronzeada, conferindo-lhe um certo ar de surfista. Por alguma razão, o homem me pareceu ser muito velho para surfar, apesar de o ter considerado um tanto jovem instantes atrás. Cheguei a conclusão de que não fazia a menor ideia de quantos anos deveria ter.

Ele encarou a mesa por alguns segundos, como se ponderasse sua resposta. Subitamente, tornou o olhar para mim, aparentando estar pronto para responder. Então, tudo começou com aquela primeira pequena mentira.

— Sim, é claro — respondeu, com bastante naturalidade. Arrastando a cadeira, o rapaz tomou o assento para si e apoiou os dois cotovelos sobre a mesa. — Por favor, sente-se.

Certo, essa sim era uma tremenda brincadeira de mal gosto. Muito engraçado, Jonathan, me mandar para um encontro num encontro às cegas, só para que eu desse de cara com outro homem.

Comecei a olhar em volta, procurando câmeras de celular apontadas para mim e, para a minha decepção, a movimentação dentro da cafeteria permaneceu anormalmente inalterada. Ainda assim, eu tinha certeza de que havia algo muito errada ali.

— Que tipo de expressão é essa? — O homem inquiriu, com um ar curioso e o olhar atento voltado para mim. Possivelmente estava se questionando qual a razão para a minha falta de reação.

— Se chama decepção, estou certo de que está acostumado a ver isso por aí.

Chame-me de grosso ou mesmo mal-educado se quiser, mas eu estava literalmente puto com aquela situação toda. Aproveito este momento para deixar bem claro aqui, de que eu não sou gay, e que a mera prospecção de ter um encontro com outro homem, especialmente, um desconhecido, era absurda e até mesmo revoltante.

As pessoas costumeiramente se assustavam com minhas falas agressivas, e eu não posso dizer que me incomodo com isso. Geralmente, elas buscavam alguma desculpa pouco convincente para desaparecer de vista, o que me conferia longos minutos de isolamento e paz. No entanto, o estranho não pareceu se afetar nenhum pouco. Muito pelo contrário, a expressão curiosa se transmutou em um sorriso, o que me deixou um tanto perturbado, afinal, que diabos de reação era aquela?

— Escute companheiro, tenho certeza que houve algum engano. — Iniciei, desta vez tentando ser um pouco mais delicado, já que a grosseria gratuita não parecia ter sido eficiente em afastá-lo dali. — Estava esperando por uma pessoa aqui, você sabe, uma outra pessoa.

— Que outra pessoa? — Ele inquiriu, com a mesma naturalidade de antes.

— Bom… — Teria realmente que dizer isso em voz alta? Nossa, como eu odeio a minha vida. — Não sei dizer com certeza, era meio que um encontro às cegas...

Ele não conseguiu conter uma risada e por uma fração de segundos consegui captar o vislumbre de uma fileira de dentes muito brancos e alinhados. Senti uma súbita vontade de socar a cara dele, o que fez meus dedos formigarem de desejo. Calma, respire fundo, lembre-se que você não tem dinheiro sequer para pagar o aluguel, imagine um processo por agressão.

— Então, não houve engano algum — o desconhecido respondeu, com o que parecia ser um sorriso vitorioso.

— Sem essa! Olha, não me leve a mal, mas tudo que quero é encontrar alguma pessoa bonita e que seja capaz de me tolerar.

— O que te leva a crer que eu não sou essa pessoa?

Tentei, juro como tentei, mas foi realmente impossível não rir nesse momento. Mas não foi uma risada discreta e descrente, como quando ouvimos uma história absurda. Tratou-se de uma legítima gargalhada debochada, que ecoou pelo ambiente agitado, conseguindo até mesmo se sobrepor a música ruim, chamando a atenção de alguns clientes.

— Se não pode fazer isso por si mesmo, então faça isso por mim. — Aquilo me soou como uma súplica e seus olhinhos brilhantes de cachorro pedinte apenas contribuíram para aumentar ainda mais minha revolta.

— Cara, eu nem conheço você!

— E nem terá outra oportunidade se decidir simplesmente sair por aquela porta e ir embora — ele pontuou, apoiando um dos braços nas costas da cadeira de um jeito irritantemente descolado. — Além do mais, não é como se tivéssemos de fazer algo mais, sabe? Podemos só sentar aqui, conversar um pouco e depois cada um retorna para as suas devidas casas.

Senti meu corpo se inclinar levemente para frente e para trás. O velho hábito de imitar uma cadeira de balanço, enquanto ponderava alguma coisa. Embora não quisesse sequer estar ali, para começo de conversa, já estava preso aquele encontro de um jeito ou de outro, de modo que não parecia má ideia agradar um pouco meu estômago e, com sorte, diminuir alguns dias da minha expectativa de vida com alguma comida nada saudável.

— Não fique tão cheio de si — afirmei, enquanto puxava a cadeira e tomava o assento. — Estou apenas com fome e não tem nenhuma outra mesa livre.

— É claro que sim — respondeu, sem nenhuma convicção em minhas palavras.

Por ora, decidi ignorar e me concentrar no cardápio a minha frente. Li todas as opções disponíveis ao menos três vezes, na esperança de isso fizesse o tempo voar e acabar com aquilo o quanto antes. Havia uma pequena chance dele ficar entediado e com isso decidir por fim a essa brincadeira de péssimo gosto. Aviso mental: enfiar a cabeça do Jonathan dentro do sanitário assim que eu chegar em casa.

— Você tem aqueles canudinhos com curvas e voltas? Eu adoraria beber num desses. — Precisei levantar a cabeça, pois não tinha certeza se havia escutado direito. A julgar pela cara do garçom que o atendia, aquele pedido fizera tanto sentido para ele quanto para mim. — Ah, eu adoraria se eles puderem ser azuis, inclusive.

Aviso mental: enfiar a cabeça do Jonathan dentro do sanitário assim que eu chegar em casa e dar descarga três vezes. Que diabos de pedido era esse, e por que isso faria alguma diferença no que quer que ele tivesse escolhido para beber? Nem mesmo a pessoa mais otimista do mundo poderia ver um encontro desses com bons olhos. Você vai me pagar caro por essa Jonny.

— E você, o que vai querer? — a voz do garçom me despertou do agradável som da descarga que pairava dentro da minha cabeça como música. Ele olhava para mim com certo espanto, imaginando que esquisitice eu pediria para combinar com o daquele cara.

— Uma fatia de bolo, por favor — balbuciei o primeiro item do cardápio, desejando que toda a clientela mentalmente sã do estabelecimento tivesse feito o mesmo pedido. Após uma rápida anotação, o rapaz se afastou o mais rápido que pode. Faça isso amigo. Corra, Forrest, corra!

— Antes de qualquer coisa, eu preciso deixar bem claro que isso não vai funcionar.

— Isso o quê?

— Isso tudo, esse lance de encontro às cegas — respondi enquanto coçava a cabeça. — Não sei como você fez para conseguir marcar um encontro com outro cara, mas falo sério quando digo que, o que quer que esteja tramando, não vai funcionar.

— E por que não? — Eu poderia jurar que ele estava de sacanagem com a minha cara,  contudo, suas perguntas soavam como genuínos questionamentos.

— Porque eu não sou gay, está bem? — Respondi entre dentes, pois reafirmar esse tipo de coisa era humilhante. E também, deveria ser algo óbvio.

— E você acha que eu sou?

— Eu imagino que sim, já que está tratando a situação toda com tanta naturalidade.

— Na verdade, eu nunca entendi muito bem porque as pessoas ligam tanto para esse tipo de detalhe. — Olhando por cima do ombro, ele voltou sua atenção para uma xícara que o casal da mesa ao lado havia acabado de derrubar. — Você meio que acabou de dizer que só conversa com pessoas que compartilham a mesma sexualidade que você, sabia disso?

— Ah, não comece, está bem? Pode ir cortando esse seu sarcasmo, é a forma mais medíocre de demonstrar inteligência.

— As únicas pessoas que dizem isso são aquelas que não são nenhum pouco engraçadas.

Eu ia socar a cara dele, juro por Deus como ia. Por sorte, o garçom chegou naquele exato momento, trazendo nossos pedidos. Perceber que ele havia realmente conseguido o maldito canudo azul com curvas e voltas me deixou ainda mais irritado. Tentei descarregar minha raiva no bolo, de modo a evitar um desastre. Felizmente, o doce estava muito bom.

— Você não disse o seu nome ainda — ele comentou, após um longo gole no que parecia ser uma mistura de soda com sorvete.  

— Você também não disse o seu — respondi entre os dentes, tentando me focar muito no mais no bolo do que em seu maldito rosto simétrico. Como uma pessoa poderia ter o rosto tão visualmente harmônico quanto aquele?

— Pode me chamar de Arthur, se quiser.

— André. — Tive que cobrir a boca com a mão, pois tinha certeza de que havia chantilly no canto da minha boca. — Eu diria que “é um prazer conhecê-lo”, mas eu estaria mentindo.

— Você é sempre agradável assim, ou somente nos fins de semanas? — Arthur questionou, com aquele cínico sorriso estampado em seu rosto. A vontade de socá-lo estava atingindo níveis incontroláveis.

— Eu sou sempre assim. Mas como oferta especial, estou lhe dando um bônus de 50%, por conta da casa.

Sua risada ecoou pelos meus ouvidos e fez com que seus dentes de propaganda fossem largamente exibidos. Por que tudo nele parecia me incomodar tanto? Eu nunca fui exatamente fã de nenhum ser humano, mas este espécime, em particular, parecia me afetar mais do que os demais.

— E o que pretende fazer depois daqui? — Ele continuou, aparentando estar realmente empenhado em dar prosseguimento aquela conversa que não nos levaria a lugar algum.

— Voltar para o meu quarto, local de onde eu jamais deveria ter saído.

— Você quis dizer “voltar para casa”, não?

— Não, minha vida é miserável demais para arcar com uma casa inteira — retruquei, enquanto limpava os cantos da boca. Findo o doce, findo o encontro. Ergui as mãos e sinalizei para o garçom, indicando que estava pronto para pagar a minha conta. — Minhas finanças só me permitem alugar um quarto.

— E com o que você trabalha? — Questionou, enquanto apoiava o queixo em uma das mãos, observando a  bebida girar e rodopiar pelo canudo até finalmente atingir seus lábios.

— Com revisão de textos, mas isso não é nem um pouco interessante! — Todas aquelas perguntas estavam me deixando mais nervoso do que se estivesse numa entrevista de emprego. — A minha vida muito menos, e eu não entendo o propósito para todas essas perguntas! Por que não fala da sua vida ao invés da minha?

— Seria muito prepotente falar da minha vida assim. Faria muito mais sentido se você me perguntasse alguma coisa.

— Mas eu não vou, porque nada disso realmente me interessa!

Se sou uma pessoa estressada? Talvez um pouco, mas sabe de uma coisa? Foda-se. Desde pequeno sempre tive problemas para interagir com outras pessoas e lidar com situações inéditas. Ser grosseiro era a única forma de manter seguro das coisas que me assustavam. Ao menos era isso que todos os psicólogos passaram a vida inteira dizendo aos meus pais.

A grande questão aqui era que ele não parecia se incomodar com absolutamente nada do que eu dizia, o que me deixava totalmente inquieto. Nunca desejei tanto o meu próprio quarto quanto nesse momento.

O garçom finalmente se aproximou com a conta. Eu só queria sair dali o mais rápido possível, tanto que nem mesmo parei para conferir o valor. Sacando minha carteira com rapidez, joguei minha única e última nota de vinte reais sobre a mesa, levantando num salto logo em seguida.

Sentir o vento se chocar contra o meu rosto serviu como um calmante natural, aliviando a sensação claustrofóbica que o maldito encontro criou. Olhei para os lados, tentando decidir qual caminho seria o mais curto de volta para o apartamento. Eu não podia pegar um Uber, ou mesmo um ônibus, porque simplesmente deixei todo o meu dinheiro para trás, junto daquele cara estranho.

— Aonde nós vamos agora? — Sua voz praticamente brotou ao meu lado, e instintivamente pulei para longe dele.

— “Nós”, primeira pessoa do plural, não vamos a lugar nenhum. Já “eu”, primeira pessoa do singular, estou voltando para casa.

— Eu vou com você. Nosso encontro não acabou ainda — Arthur respondeu em meio a um sorriso. — O “blind date” só acaba depois que eu deixá-lo em casa. Está no contrato.

— Não precisa, mesmo. — Minhas palavras não pareceram afetá-lo, de modo que estava na hora de adotar um discurso mais persuasivo. — Estou eximindo-o dessa obrigação. Pode partir agora, Dobby, você é um elfo livre!

— Você é engraçado. — Novamente, sua risada contagiante se fez audível, e eu não sabia por quanto tempo mais poderia refrear o desejo socá-lo bem no meio do nariz.

— Não, eu não sou — retruquei, novamente aborrecido, enquanto tornava a andar. Apesar dos meus protestos, ele estava me acompanhando mesmo assim. Não era para ele me seguir até a minha casa, a última coisa que precisava era de um maníaco como aquele sabendo exatamente onde eu morava. — Estou falando sério, cara. Vá para casa, ou para o inferno, tanto faz para mim. Apenas me deixe em paz!

— Mas eu realmente gostei da sua companhia — ele pareceu sincero em suas palavras, o que me deixou um tanto perturbado. — Tanto é que quero aproveitá-la até o último minuto.

— Sua perseverança é realmente admirável. — As palavras escaparam de minha boca e eu mal pude acreditar que estava realmente elogiando-o em alguma coisa. — Por que não escreve um livro de autoajuda, ou algo assim?

— Prefiro cálculos — respondeu com simplicidade, e a mera menção da palavra “cálculo” me fez olhar para ele como se portasse alguma doença altamente infecciosa. — Você disse que faz revisão de textos. Que tipo de textos, exatamente?

— Textos acadêmicos.  Já tínhamos decidido parar de falar sobre mim.

Finalmente chegamos à minha rua, o que me trouxe um alívio imensurável. Só mais alguns minutos, e eu estaria totalmente livre desse desgraçado sedutor. Não que ele estivesse me seduzindo, ou nada do tipo. Uma música familiar começou a soar e pude vê-lo sacar um Iphone de última geração do bolso de sua jaqueta. Já não bastasse a personalidade estranha, tinha que ser um riquinho de merda também? Me senti instantaneamente tão humilhado quanto à Seleção Brasileira após o histórico 7x1 contra a Alemanha.

— Bernardo falando. — Tornei o rosto no mesmo instante, estupefato, e pude contemplar o exato momento em que ele fechou os olhos com força, como se tivesse acabado de cometer um erro terrível. — Eu ligo para você depois, está bem?

— Achei que tivesse dito que o seu nome era Arthur. — Minha voz soou plena como nunca na vida, mas por dentro eu estava borbulhando de raiva.

— E você acreditou nisso? — Seu questionamento veio acompanhado de uma sobrancelha erguida, de maneira bastante presunçosa.

— É claro! Que razão eu teria para achar que você estava mentindo, afora o fato de agir como um maníaco perseguidor?

— Bom, tecnicamente, eu não estava mentindo. Você perguntou o meu nome e eu disse que poderia me chamar de Arthur, se quisesse. Logicamente, isso te autoriza a me chamar de qualquer outro nome de sua preferência.

— Isso nem de longe é uma conclusão lógica! — Esbravejei, com certa fúria. — E você é um doente.

Finalmente, meu condomínio! Enterrei dois dedos no interfone e esperei que o porteiro dorminhoco se desse conta de havia um morador tentando entrar. Rápido, seu idiota, tem um maníaco parado bem ao meu lado aqui fora! A porta finalmente se abriu, e eu entrei o mais rápido que pude. Para a minha infelicidade, o Arthur — ou Bernardo —  fez exatamente o mesmo.

— Você não precisa me acompanhar até a porta, eu não sou uma garota.

— Nunca achei que fosse — ele respondeu com simplicidade, enquanto admirava as áreas comuns com certa curiosidade. — Belo condomínio.

— Não é meu, tudo que possuo é um quarto alugado, lembra? — Praticamente bufei a resposta, apressando os passos para chegar ao hall. Aguente firme, André, seus descendentes irão escrever longas epopéias a respeito do seu sacrifício. — Ah cara, fala sério!

Se tinha algo que eu odiava mais do que o porteiro dorminhoco era o aviso de “elevador em manutenção” pendurado na sala de espera. Instintivamente, me dirigi até a escada de incêndio e rezei para todas as entidades superiores que conhecia para não ser estuprado no meio do caminho.

Com sorte, cheguei inteiro até o quinto andar, exceto, é claro, pelos pulmões que pareciam querer sair pela minha boca. Eu realmente precisava praticar mais exercícios.

— Então, parece que chegamos ao fim, não é mesmo? — O homem estranho iniciou, parecendo realmente triste pela primeira vez. — Definitivamente, não foi o encontro que eu estava imaginando. Foi muito melhor, na realidade.

— O que diabos você estava imaginando?

— Que você fosse se apaixonar por mim até o final do encontro.

Naquele instante, eu não soube precisar que o ardor no meu rosto se devia a vergonha ou a raiva. Possivelmente uma estranha mistura dos dois. Esfreguei os olhos e as bochechas com força, no intuito de acordar daquele pesadelo e ver que tudo não passou de um delírio psicótico. Confesso que eu me sentiria muito mais calmo caso se tratasse de um. Infelizmente, quando tornei a abrir os olhos, ele ainda estava lá.

— Escute, eu adoraria dizer que foi uma noite encantadora e que estou ansioso para nos vermos novamente. Mas estaria mentindo, caso eu fizesse. Tudo isso foi muito estranho, você é um esquisito do caramba e, nesse momento, tudo que eu quero é deitar na minha cama e fingir que essa noite nunca aconteceu.

Sei que pode ter sido um tanto cruel da minha parte falar dessa forma, mas sinceramente, o que mais esperavam que eu fizesse? Além do mais, acreditem quando digo que estava sendo totalmente sincero ao proferir aquelas palavras. Não era o tipo de grosseria que a gente fala e se arrepende logo em seguida, como mostram os filmes. Eu realmente quis dizer aquilo, porque tudo que queria era vê-lo desaparecer da minha vista.

Para o seu alívio, o esquisito —  cujo o nome verdadeiro ainda me era desconhecido —  não aparentou se ofender com aquilo. Na verdade, ele permaneceu ali estagnado e com as mãos enfiadas dentro da jaqueta jeans, me encarando como uma cara de quem tentava ler meus pensamentos e invadir a minha alma. Isso soou poético, mas na ocasião, foi bem bizarro.

Acabei desistindo de tentar encontrar alguma lógica, onde simplesmente não havia nenhuma. Tinha certeza de que ele iria embora quando sentisse fome ou sede, tal qual um cachorro abandonado. Saquei as chaves de casa e tentei abrir a porta o mais rápido que pude.

— Eu não acredito que você fez isso!

Jonathan e eu não éramos o melhor exemplo de organização, mas jamais, em hipótese alguma, cheguei a ver nosso apartamento naquele estado. Eu gostaria de descrever a cena toda, mas isso me tomaria muito tempo, parágrafos e sinônimos para a palavra “caos”.

Deixo a imagem deplorável de nossa sala de estar a cargo da sua imaginação e, se isso lhe servir de ponto de partida, seria bastante verossímil inserir aqui sons de coisas se quebrando e a visão de objetos voando de um lado para o outro.

Debaixo da mesinha de centro, pude vislumbrar Jonny, que se encontrava encolhido em posição fetal, tentando mais do que tudo nessa vida proteger sua cabeça do impacto que o faria ter um derrame. Enquanto isso, uma moça de cabelos crespos muito bem trançados apanhava em mãos tudo aquilo que pudesse ofender a integridade física de meu incorrigível amigo. Que dizer dessa belíssima moça, a quem mal conheço e já considero tanto?

— Eu realmente não quero atrapalhar, então desejo aos dois uma boa noite de discussões. Enquanto isso, estarei em qualquer lugar que não seja aqui.   

Foi tudo que disse, enquanto fechei a porta com pressa, receoso de me tornar a próxima vítima de algum “objeto-aleatório-bala-perdida”.

Encostando a testa no trinco, rezei para que a moça desconhecida conseguisse matá-lo até o final na noite, pois caso contrário eu mesmo teria que fazê-lo quando voltasse mais tarde. Jamais deveria ter saído de casa, para começo de conversa. Agora, afastado do conforto da minha cama e de meus livros, precisaria procurar abrigo em qualquer lugar que não fosse uma praça pública ou um parquinho.

Girei sobre os calcanhares e lá estava ele, parado e com as mesmas malditas mãos enfiadas dentro da jaqueta jeans, me observando com uma paciência digna de Buda. Por alguma razão, aquela pose toda me deixava nervoso de tal forma que jamais poderia justificar o porquê. Ainda assim, permaneci fiel a ideia de que que ele iria embora a qualquer momento. O encontro havia acabado, o que significava dizer que eu não lhe devia mais uma única palavra.

Em silêncio, deixei o apartamento para trás e desci os lances de escadas em direção a rua. Ouvi seus passos ecoarem atrás de mim, mas tentei não me importar com isso. Ele está descendo porque finalmente decidiu ir embora, disse para mim mesmo.

Quando alcancei uma movimentava avenida, segui caminhando ladeira abaixo em direção ao centro, ainda sentindo sua presença inquietante atrás de mim. Talvez a casa dele fique na direção do centro, pensei com meus botões. Tentava pensar num lugar onde pudesse passar a noite, mas era simplesmente impossível de racionar sabendo que aquela figura estranha continuava atrás de mim. Ele vai dobrar em alguma esquina a qualquer momento, repeti mentalmente, a cada minuto acreditando menos naquelas palavras.

Somente quando já havia percorrido uma boa distância — ainda que sem rumo definido — foi que cheguei a uma triste e desesperadora conclusão: ele não iria embora tão cedo quanto eu havia imaginado.

— Será que pode parar de me seguir? São sete horas, vá para casa, ou um bar, ou onde quer que você costuma ir nos sábados à noite.

— Eu não saio muito e já tinha reservado minha noite toda para você, de qualquer forma — ele respondeu, enquanto dava os ombros de maneira despreocupada.

Até mesmo pensar parecia difícil, sabendo que esse perturbado estava no meu encalço. Antes que se questione, não, correr não era uma opção, simplesmente porque eu sou mais sedentário que um hipopótamo.

As ruas iam ficando vazias, já que boa parte da população se dirigia aos bares e boates, deixando as áreas predominante residenciais parcialmente abandonadas e propícias a assaltos. Eu não tinha outros amigos por perto a quem pudesse recorrer e meus pais moravam num outro estado, o que me deixava sem muitas opções viáveis.

— Escute, você pode vir para a minha casa, se quiser — o homem sugeriu, após algum tempo de caminhada silenciosa. Tornei o rosto e esbocei o que imagino ter sido uma expressão de: “você perdeu o juízo?”.

— Estou desesperado, mas não a esse ponto. Além do mais, eu nem sei o seu nome verdadeiro.

Nem bem eu havia terminado de proferir aquela sentença, uma grossa gota de água se chocou contra a lente dos meus óculos. Olhei para cima de maneira instintiva, buscando a calha responsável por aquilo, mas não havia nenhuma. Ao invés disso, vi o céu tornar-se escuro e cinzento muito rapidamente, não tardando  para que muitos pingos sucedessem aquele primeiro.

Suspirei fundo, enquanto sentia a blusa de malha pesar e grudar contra meu corpo. E então questionei mentalmente: tinha como esse dia ficar ainda pior? Tornei o rosto para trás, na esperança de que a chuva tivesse feito aquele estranho desaparecer, mas ele continuava lá, com as mesmas estúpidas mãos enterradas dentro da jaqueta jeans, me encarando com um sorriso provocante.

— Eu moro há um quarteirão daqui. Gostaria de reconsiderar sua resposta agora?

Eu odeio tanto a minha vida.



As luzes acenderam-se rapidamente, me deixando cego por alguns segundos. O pequeno apartamento era branco como um quarto de UTI, salvo uns poucos móveis de cor preta, com detalhes em aço inoxidável. Instantaneamente, pude sentir o cheiro de riqueza exalando daquelas paredes e foi o bastante para que meu humor piorasse ainda mais, se é que era possível.

Esgueirando-se por um corredor estreito, meu anfitrião desapareceu por trás de uma porta de correr, o que me conferiu alguns segundos livres para explorar o ambiente. No entanto, dado o tamanho reduzido, não havia muito o que fazer. O singelo molho de chaves jogado sobre a bancada da cozinha chamou minha atenção, em função de uma pequena placa identificadora atada a ele. Tomando-o entre os dedos, pude ler claramente em letras de fôrma: Proprietário–Guilherme. Tudo parecia uma grande piada de mau gosto, que mostrava ser ainda pior cada vez que eu buscava por mais explicações.

Estava tão compenetrado no nome disposto ali que sequer reparei o momento em que ele retornou, me dando conta de sua presença somente no instante em que repousou uma felpuda toalha sobre a minha cabeça.

— Que significa isso? — Questionei, enquanto lhe mostrava a placa identificadora.

Uma risada discreta escapou por seus lábios, mas ele nada disse. Ao invés disso, caminhou preguiçosamente sobre a sala até atingir um pequeno frigobar vermelho. Agachando-se com destreza, ele rapidamente sacou uma alongada garrafa escurecida.

— Quer um pouco?

Eu não bebo vinho — respondi com imediatez, sem nem ao menos refletir. Mas pensando melhor, eu realmente estava com sede, então não demorei em adicionar. — Mas uma cerveja cairia bem.

Acenando positivamente, ele retirou uma long neck esverdeada de dentro do refrigerador e voltou caminhando da mesma maneira preguiçosa, parando a dois passos de distância de mim.

— Eu odeio você, sabia?

— Qual a razão disso? — ele questionou, soando bastante incrédulo.

— Eu realmente preciso dizer? — retruquei, enquanto abria a cerveja e bebi um longo gole. — Você é estranhamente assustador.

— E mesmo assim você está na minha casa, numa noite chuvosa, bebendo uma gelada e conversando comigo. — Um novo largo sorriso surgiu em seu rosto, enquanto bebericava de sua taça de vinho.

E apesar de toda minha vontade de socá-lo novamente, precisava admitir que ele estava certo. Mas não é como se eu tivesse tido a opção de evitar tudo isso, ou ao menos quis pensar assim na ocasião. Era estranho descrever a sensação, quanto mais tentava afastá-lo, era como se mais próximo estivesse. Havia alguma coisa ali, um magnetismo ao qual eu não conseguia me dissociar. Uma espécie de empuxo, ou coisa parecia. Não sei dizer ao certo, pois sou de Humanas.

Com um gesto rápido, ele virou-se e seguiu em direção à varanda. Supondo que deveria acompanhá-lo, imitei seus passos enquanto finalizava o conteúdo da garrafa que tinha em mãos. Ele parou por um segundo, apenas para tirar mais uma cerveja de dentro do frigobar, e retomou a caminhada.

Esfreguei o cabelo algumas vezes com a toalha de antes, apenas para evitar de apanhar um resfriado. O estranho anfitrião não se incomodou em fazer o mesmo, devia julgar que o pano jogado sobre os fios molhados era mais do que suficiente.

Toda aquela situação me fez refletir. Apesar de seu comportamento incomum, o homem não era inconveniente ou desrespeitoso comigo, o que deveria ser considerado um feito incrível, dada as circunstâncias. Estive tão nervoso e introspectivo durante toda a noite, que até então não me permiti aproveitar nada daquele encontro. E mesmo sem desfrutar daquelas horas, lá estávamos nós, compartilhando bebidas e admirando o cair da chuva na avenida escura. A realização fez meu estômago dar voltas, em um misto de culpa e constrangimento.

Subitamente, ele fez uma pergunta. Antes que pudesse ser traído por meu próprio cérebro, decidi respondê-la com rapidez e naturalidade. Era estranho iniciar um diálogo daquela maneira, sem troca de farpas e alfinetadas. Fazia tanto tempo desde a última conversa em que não expressei gratuitamente meu desprezo pelos pessoas ao meu redor que sequer me recordava da sensação. E sem me dar conta direito, as horas se passaram rapidamente, sem me preocupar com qualquer protocolo a ser seguido.

A quase todo instante, ele me questionava se eu realmente acreditava nas coisas que afirmava ou perguntava. Refreando o ímpeto de soar grosseiro algumas dessas vezes, respirei fundo e respondi como se já não tivesse ouvido aquilo uma dezena de vezes:

— Por que você faz isso? — Decidi indagar após algum tempo, corroído pela curiosidade. — Essa pergunta, “você acredita nisso”?

— Porque as pessoas falam e agem com tanta certeza, como se tudo na vida resultasse de conceitos pré-definidos. Ora tomam posicionamentos, ora agem com tanto ceticismo. Tentam vender ideias como verdades universais, sem sequer escutar opiniões contrapostas — respondeu, e fez uma pequena pausa para contemplar a rua, enquanto tomava mais um gole de vinho. Àquela altura, já deveria ter bebido ao menos metade da garrafa. — Não sei, mas eu costumo pensar que um fato só é verdadeiro quando conferimos a ele uma dose de verdade.

Então, eu vi. Esteve o tempo todo ali, diante dos meus olhos a noite inteira sem que eu conseguisse perceber. Por vezes, confesso que me questiono como consegui chegar ao ensino superior com níveis tão baixos de percepção e sagacidade.

— Nada disso é verdade, não é mesmo? — arrisquei, e percebi o instante exato em que ele passou a me encarar com mais intensidade. — Quero dizer, nenhuma das coisas que você disse durante a noite é realmente verdade, estou certo?

— Em grande parte, sim — o homem confessou, sem aparentar constrangimento ou nada parecido. Estava em paz consigo mesmo. Enquanto isso, minha cabeça funcionava de maneira ruidosa, tal como uma máquina a vapor. — Mas eu não posso contar a verdade — ele disse, após algum tempo em silêncio.

— Por que não?

— Você vai achar que eu sou maluco.

— Eu já achou que você tem 27 parafusos a menos, de qualquer maneira. — respondi de imediato, arrancando-lhe uma rápida gargalhada. — Não dá pra ficar pior do que isso.

— Sendo bem honesto, eu só entrei ali porque queria usar o banheiro — ele mordeu o lábio inferior, enquanto me encarava com certa ansiedade. Precisei piscar e retomar o raciocínio muitas vezes antes de tornar a falar.

— Espere, deixe-me ver se entendi direito: você estava num momento absolutamente comum, me encontrou em pé diante daquela mesa e achou que seria uma ótima ideia contar meio milhão de mentiras sem nenhuma razão aparente, é isso?

— Basicamente.

— Posso perguntar o porquê disso tudo?

— Achei que poderia ser divertido — ele respondeu, com uma simplicidade ímpar. Senti meu rosto se contorcer em uma careta tão estranha que o fez questionar logo em seguida. — Por que está me encarando assim?

— Estou mentalmente pedindo ao universo que faça você entrar em combustão espontânea — retruquei com irritação, desde vez sem nenhuma vontade de tentar parecer amigável. Na realidade, minha vontade de socá-lo havia retornado com o triplo de intensidade.

Estávamos ambos escorados na sacada da varanda, cada um com suprimentos de bebida alcoólica em mãos. Em breve o sol daria tímidos sinais de mais um nascimento, acompanhado por ruas abarrotadas de transeuntes mal educados e buzinas de carros impacientes. Depois de todos os acontecimentos e dada a hora avançada, eu me sentia meio zonzo, sem saber ao certo se minha confusão se devia as conversas mirabolantes, a cerveja, ao sono ou a uma desastrosa combinação os três elementos.

Arthur – ou Bernardo ou Guilherme – observava distraidamente o lado oposto da rua abaixo de nós. Fiquei mentalmente grato por este detalhe, pois caso contrário, acabaria percebendo que eu o encarava fixamente naquele instante. No que ele estava pensamento? Creio que jamais poderei responder a esta pergunta. No que eu estava pensando? Também não tenho muita certeza, pois a partir daqui as memórias já não estavam mais tão claras.

Aquela havia sido uma noite memorável em diversos sentidos, o que não necessariamente significava que eu gostaria de repetir a experiência num outro momento. As conversas, livres de qualquer lógica superficial e aparente, me entreteram de uma maneira que jamais imaginei. A estranha companhia daquele homem foi responsável por me fazer experimentar algumas novas sensações, totalmente inéditas para a versão antissocial e antipática do meu eu de 23 anos mal vividos. Inclusive, foi exatamente este fato que me fez concluir o seguinte: se esta era uma noite para descobertas, por que parar agora?

Sabe aquela vozinha que nos diz para fazer algo realmente espontâneo depois das duas horas da manhã? Eu não costumava escutá-la, mas naquela ocasião, simplesmente não me importei de fazê-lo. Com um giro sobre os calcanhares, me coloquei diante dele, de modo que ficamos um de frente para o outro. Rapidamente, a rua deixou de ser um cenário interessante e seus olhos se voltaram para mim. Nossa diferença de altura era mínima, embora ele tivesse um porte físico aparentemente mais saudável que o meu.

Por mais inacreditável que isso possa parecer, ele não proferiu uma única palavra. Ao invés de ironia e perguntas esquisitas, aqueles segundos foram preenchidos por um silêncio confortável. Eu o encarava nos olhos e ele fazia exatamente o mesmo, ainda que estivesse estampado em seu rosto uma genuína expressão de curiosidade, que aliada a sobrancelha direita levemente arqueada parecia dizer com muita clareza: “Me surpreenda”.

E foi o que fiz. Ou ao menos, quero imaginar que fiz. Porque nunca, nem mesmo em meus sonhos mais malucos e obscenos, eu poderia me imaginar beijando outro homem, o que justifico aqui pela pura e simples falta de vontade em fazê-lo. Mas naquele momento, tive um imenso interesse em descobrir.

Foi interessante constatar que seus lábios eram quentes e doces, talvez por conta do vinho que ele degustava minutos atrás. Após os minutos iniciais, seus dedos habilidosamente se esgueiraram pelo cós da minha calça, obrigando-me a uma perigosa aproximação. Suas mãos permaneceram ali, acariciando os ossos do meu quadril e cintura enquanto eu me ocupava em percorrer minhas mãos espalmadas em seu pescoço, sentindo a textura da pele.

Tentei a todo custo deixar minha mente livre de pensamentos, para que pudesse focar somente no beijo, mas não foi algo exatamente fácil de fazer à princípio. Somente quando ele sugava delicadamente meu lábio inferior é que os resquícios de raciocínio começaram a se esvair de minha mente. Devo pontuar que ele era muito bom nisso, inclusive.

Não sei dizer quanto tempo ficamos em pé ali, testando novos ângulos, curiosos em descobrir como o outro reagiria a um determinado tipo de estímulo. Por fim, tive que tomar a iniciativa de nos separarmos, receoso de que mais do que aquilo me fizesse ter pensamentos e desejos estranhos. Eu não queria que ele interpretasse isso como um convite para algo mais, pois naquela ocasião era bastante óbvio como eu não era capaz de controlar minha própria curiosidade.

— Achei que você não gostasse de vinho — ele respondeu, em meio a um meio sorriso. É, ele sabia exatamente aquilo que eu estivera pensando, o que era um tanto aborrecido.

— Sabe, não foi tão estranho quanto eu imaginei que fosse ser — respondi logo em seguida, consciente de que a frase poderia ser interpretada de mais de uma maneira.

— Porque seria estranho? Você só me beijou.

Optei por não responder aquele apontamento. Ainda não tinha absoluta certeza de que havia realmente feito aquilo. Minha mente logo começou a trabalhar em busca de uma justificativa para aquilo, mas bebi o restante da minha quarta — ou seria quinta? — cerveja e espantei as preocupações para o dia seguinte, quando eu estivesse sóbrio e longe dali.

Não havia muito o que fazer depois daquilo. Terminamos nossas bebidas em silêncio e então finalmente decidi que estava na hora de voltar para casa. Com um pouco de sorte, o sangue do cadáver de Jonathan teria poupado meu quarto, e talvez assim, eu pudesse dormir um pouco, antes de ligar para o IML.

A despedida seria estranha, assim como tudo que aconteceu naquela noite.

— Me desculpe — ele mencionou, em um tom de voz baixo, aparentando estar sentindo-se culpado por alguma coisa. Seu olhar pesaroso era inédito para mim e não combinava em nada com aquela aparência debochada.

— Você não fez nada errado — pontuei, enquanto atravessava a soleira da porta, em direção ao elevador. Eu sei, era uma resposta totalmente inverídica, mas havia havia tantas coisas erradas naquele encontro que, de repente, passaram a ser tão certas... Eu simplesmente não sabia como reagir a tudo isso.

 — Você vai se arrepender disso — o homem disse, com muita certeza, enquanto eu me afastava a passos vagarosos de seu apartamento.

— É bem provável — respondi, tornando o rosto, apenas para vê-lo de braços cruzados e a expressão fechada. — Mas eu não me importo, mesmo.

Minha resposta foi, de alguma maneira, capaz de desmanchar aquele semblante sério. Sua risada tímida ecoou pelo corredor vazio e silencioso. Ele tinha um sorriso bonito e vê-lo uma última vez fez com que eu me sentisse intimamente alegre também.

Por fim, ele acenou rapidamente, antes de fechar a porta. Fiz o mesmo e retornei para minha casa em seguida.



O apartamento continuava destruído. Havia cacos de vidro de todas as cores espalhados pelo chão. O sofá estava virado, a cozinha era um desastre completo. Próximo a porta do meu quarto, estava o celular de Jonny. Afora a tela trincada, o aparelho resistiu heroicamente a noite de selvageria que se passou aqui. Seu sacrifício e lealdade serão lembrados para sempre, pequeno guerreiro.

Haviam muitas notificações na tela, e uma delas era justamente do aplicativo de encontros. A mensagem era bastante objetiva e simplesmente não pude reprimir a vontade de rir naquele momento. “Seu encontro foi cancelado. Mais sorte na próxima”. Quer saber? Acho que ele não precisa saber disso, no final das contas. Deletei a notificação e deixei o telefone sobre a bancada da cozinha.

Entende agora porque digo que essa foi a noite mais estranha de toda a minha vida? Eu estava isento de dois meses de aluguel, em parcelas alternadas, consegui comer o melhor bolo de chocolate da cidade ao som da pior música possível e beijei um cara pela primeira vez na minha vida. Eram muitos acontecimentos memoráveis para uma noite só. Talvez por essa razão eu não sentisse sono algum ao adentrar no meu quarto. Ao invés disso, havia a vontade incrível de escrever.

A razão pela qual eu decidi escrever isso? Acredito que algumas coisas valem a pena serem eternizadas. Mesmo que seja somente em um arquivo de Word, com fonte Times New Roman, tamanho 12, redigidas em espaçamento 1,5cm, reforçado por citações, considerações finais e referências bibliográficas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!