Alheio escrita por Pan Alban


Capítulo 1
Espectador


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Talvez algumas pessoas que já me acompanhem estranhem esse conto, já que é original, mas eu estou tentando publicar tudo o que já escrevi, espero que alguns tbm gostem de um original rs Eu já tinha esse conto escrito, mas decidi tomar coragem e publicar.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757518/chapter/1

Seis e vinte e sete da manhã. O corpo repousa na cadeira e põe-se a balançar.

O ranger da madeira velha já é uma velha companheira, assim como o cigarro que fora apagado por outrem duas horas antes, deixado no cinzeiro ao seu lado, e o café sem açúcar recém moído em seu colo.

Balança o corpo com as forças das pernas sonolentas e mantém o movimento com o tronco túmido.

Do lado direito uma mesinha decorada com a toalhinha branca de crochê, um relógio sem som e o cinzeiro cheirando a cigarro; do lado esquerdo um pedaço de chão encerado, um banquinho e o retrato de uma mulher com seus filhos. A sua frente uma janela sem grades, apenas vidro limpo com contorno de alumínio.

Ali passa seus dias, suas noites, desde que a outra janela fora fechada. Então o sono bate e se retira para o quarto.

Mas, o dia estava em seu início. Seis e vinte e nove da manhã.

Além do ranger ritmado e ressonante, do cigarro largado pela metade e da xícara com café amargo aquecendo as mãos, há mais uma peça para se encaixar no nascer do sol perfeito, no começo do dia calculado às seis e trinta da manhã, um pequeno e pomposo pássaro azul.

"Bom dia, sempre pontual!" graceja o pequeno emplumado agitando suas asas até se aconchegar no parapeito com suas costas para a poltrona e o bico quase tocando o vidro da janela.

Recebe um sorriso discreto e corriqueiro como cumprimento. Mas ele já não vê, enfim o sol se erguia, o cheiro de cigarro não mais incomodava, o café já estava menos quente e o show começava.

Não é necessário estender o corpo para ver, mesmo balançando em cadência é fácil ver mãe e filha parando no ponto de ônibus. A mulher leva sacolas nas mãos e a menina enrola uma mecha de cabelo no dedo.

"Ela apanha do marido. Vê o roxo no cotovelo? Isso foi de ontem." A voz do pássaro azul canta. Apenas as sobrancelhas se erguem, mas é bem pouco, enquanto os olhos deixam o vestido colorido, as sacolas de plástico pesadas e encontram a marca escurecida na pele dela.

O café continua quente.

Um garoto atravessa a rua e fica ao lado da filha da mulher, ele lê uma revista e não percebe que ela o observa.

"Ele roubou aquela revista antes de ontem, foi perseguido pelo dono da venda por dois quarteirões."

Um fungar de desdém agora foi a resposta.

O ônibus passa e somente a mulher embarca. A menina fica para trás e conversa com o garoto, ao lado deles um idoso se senta.

"Logo ela estará contando para as amigas que conheceu o amor da sua vida, e no dia seguinte estará condenando os verdadeiros apaixonados."

Um gole no café e uma careta foram as respostas.

"O velho? " continua o pássaro azul sem tirar os minúsculos olhos pretos da janela "Matou mais pessoas na guerra que qualquer um do seu pelotão. Seus alvos favoritos eram crianças sem armas. Repugnante."

"Repugnante" a primeira resposta verbalizada faz o pássaro agitar suas penas e as finas perninhas.

A menina e o menino entram no próximo ônibus. Um carro preto, com vidros escurecidos, para em frente ao idoso e o leva dali.

"Alguém terá o fim que sempre mereceu." As penas chacoalham com deslumbre.

O café está em repouso no colo. A cadeira range. O relógio não faz barulho.

O cigarro apagado volta a ficar aceso, mas, além dele, um perfume inolvidável se concentra pelo cômodo. Passos ligeiros passam por trás da cadeira. Uma porta se abre e se fecha.

O perfume se vai e um segundo cigarro meio aceso jaz no cinzeiro em cima da mesa.

O pássaro canta pedindo atenção.

"Está vendo aquele ali?" um homem de macacão cinza e cabelos crespos dá passos inseguros enquanto olha para o chão. "Rouba do almoxarifado da empresa onde trabalha."

"Não me surpreendo" a cadeira range fora do ritmo e o pássaro azul se junta ao bufar.

A porta se abre e se fecha. O café já está frio entre as mãos.

Não vem o perfume que deveria vir, apenas o vento.

A porta se abre e se fecha.

Uma mulher atravessa a janela rapidamente com seus saltos polidos, sua postura perfeita e o celular no ouvido. É rápido demais, mas ela chama atenção, é bonita.

"Dormiu com o centésimo homem nesse fim de semana."

As costas doem. Sente falta da almofada que havia ali no dia anterior, e no outro também. Deixa o café na mesa, está gelado.

O pássaro azul voa e pousa novamente. O sol se vai e mais uma pessoa se aproxima da janela. Um conhecido, aquele casaco batido e os cabelos cobrindo os olhos. O conhecido olha para a janela, mas não muito. E então passa.

"Até a madrugada fica pensando" o pássaro azul abre suas asas pronto para ir "o que há do outro lado. Se é mais fácil."

A porta abre e fecha. O perfume fraco passa junto dos passos rápidos.

A cadeira deixa de ranger. Levanta-se assim que viu a lua centrada no céu, deve repousar.

Iria repousar sem saber que a mulher no ponto de ônibus não tinha filha e cuidava do marido esquizofrênico; o menino possuía autismo e era filho do jornaleiro; a menina só pensava em brincadeiras de corda e era vizinha dele, ajudou-o a chegar até em casa; o senhor iria aceitar um chá preto feito pelo filho que lhe buscou no ponto de ônibus e iria esticar a perna dolorida, machucada décadas atrás antes de chegar no campo de batalha e que o fez voltar para casa; o homem de macacão e cabelos crespos sorri para seu primeiro filho prometendo-o ensinar como ser um bom homem, no futuro passaria sua pequena empresa ao seu herdeiro; a bela mulher deitaria ao lado de sua esposa e contaria que não teve sucesso na última entrevista.

Iria repousar com sua alma limpa, sem saber que mais um cigarro estava sendo aceso no quarto de portas trancadas e um vidro de remédios era dedilhado enquanto o conhecido de casaco batido e cabelos compridos se inquietava e quase vencia a indecisão de sua mente perdida.

Do seu lado direito havia uma mesinha, um relógio sem som e o cinzeiro cheirando a cigarro; do lado esquerdo um pedaço de chão encerado e um banquinho. A sua frente uma janela sem grades, apenas vidro embaçado com contorno de alumínio. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Me contem o que entenderam e o que sentiram! Vou amar saber ♥

Um grande beijo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Alheio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.