Imortal escrita por Toro


Capítulo 2
Capítulo 2 - O Casal


Notas iniciais do capítulo

E aí, gente bonita!

Cá estamos de novo, com o segundo capítulo! Vamos ver como tá esse pessoal três anos depois. Boa leitura! ٩( ᐛ )و



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757427/chapter/2

França, 1342

 

Jehan cruzava a aldeia apressadamente, sem se importar com os cumprimentos não respondidos ou os eventuais protestos indignados daqueles em que esbarrava. Não havia tempo, precisava encontrar Gidie o mais rápido possível. Com um pouco de sorte, ele ainda estaria nos arredores.

Os limites da aldeia foram atravessados de forma tão ligeira que em poucos minutos o camponês já não reconhecia mais o chão onde pisava. Mas ele não se importou, apenas continuou sua busca incansável.

Sentiu o desespero tomar conta de si ao constatar o óbvio: talvez Gidie já estivesse distante, até mesmo em outra aldeia. Ofegante, Jehan diminuiu os passos, até parar completamente em uma clareira desconhecida.

Tentando recuperar o fôlego, ele se recostou em uma árvore próxima, finalmente se permitindo olhar em volta, e o pavor ficou claro em seus olhos. Não só desconhecia o lugar em que estava, como também não fazia ideia de onde viera, ou mesmo em que direção ficava a aldeia. Estava perdido.

— Droga! — Praguejou para si mesmo, enquanto escorregava até o chão, sentando-se no amontoado de folhas secas.

Naquela manhã, Gidie havia se despedido e partido para a próxima viagem. Naquela mesma manhã, um pouco mais tarde, Melisende havia finalmente recebido a visita da curandeira que tanto esperava, e tudo parecia estar indo de acordo com os planos. Mas não foi.

Jehan, então, havia decidido buscar ajuda de Gidie, e confiado em sua própria sorte de encontrar o outro não muito longe dos limites da aldeia. E mais uma vez naquele dia, seus planos haviam falhado.

O som do vento batendo nas árvores e de eventuais animais passando por ali eram os únicos presentes. Sentindo a pressão do silêncio esmagador, Jehan se encolheu o mais próximo do tronco que conseguiu.

O sol brilhava alto no céu, mas o frio estava começando a se tornar notável. Em algumas horas o ar estaria gélido, o suficiente para que o camponês encontrasse dificuldades de respirar. Derrotado, ele escondeu o rosto nas mãos, na esperança de que aquele dia não passasse de um pesadelo infeliz.

Um calor repentino tomou conta de seu corpo, e ele demorou alguns segundos para perceber que resultava de um tecido pesado jogado sobre suas costas. O aroma familiar e reconfortante encheu suas narinas, e ele levantou a cabeça lentamente, vendo a costumeira capa vermelha entrar em foco, caída sobre seus ombros.

Confuso e surpreso, ele ergueu a vista, e seu olhar cruzou com o do dono da capa. Não foi capaz de conter um suspiro aliviado ao reconhecer o rosto que tanto ansiava por ver naquele momento, mesmo que agora carregasse uma expressão preocupada.

Antes mesmo que o camponês pudesse formar uma linha de raciocínio coerente sobre o que dizer ou por onde começar, as lágrimas se formaram involuntariamente, e deixou escapar um soluço. Em pouco tempo, estava chorando enquanto tentava em vão buscar as palavras ideais.

Assustado, o bardo sentou-se ao seu lado e passou os braços pelos ombros do mais novo, envolvendo-o em um abraço reconfortante. Jehan permitiu-se afundar o rosto nas vestes avermelhadas, enquanto mais e mais lágrimas escorriam por sua face.

Por alguns minutos nenhum dos dois foi capaz de dizer nada, e os soluços de Jehan eram o único barulho a quebrar o som ambiente da floresta. Aos poucos, os prantos do camponês foram diminuindo e sua respiração retornando ao normal.

— O que aconteceu? — Perguntou o bardo, enfim quebrando o silêncio.

— A curandeira — começou Jehan, fungando —, ela veio finalmente. E disse — ele fez uma pausa, tentando impedir que as lágrimas voltassem a se formar —  que não tem jeito. Não é um problema e não existe uma cura.

Gidie mordeu o lábio inferior, seu rosto expressava a mesma preocupação de antes, mas agora com um pouco de pesar. Ele não foi capaz de dizer nada, de forma que esperou o camponês se sentir à vontade para continuar.

— O padre descobriu. — Anunciou, por fim, e dessa vez não conseguiu conter os olhos marejados.

O mais velho arregalou os olhos, numa expressão de puro horror e o ar lhe faltou na hora. A mão no ombro do camponês apertou com força, mas o outro não pareceu se incomodar.

— Hoje à noite. — Ele conteve mais um soluço. — Hoje à noite, em apenas algumas horas, Cateline vai…

Jehan não conseguiu concluir a frase, mas não foi preciso. Ambos sabiam do que se tratava. Gidie aproximou-se mais do camponês, apertando o abraço, tentando em vão amenizar o desespero da situação.

— E Melisende? — Questionou o mais velho, baixinho, temendo a resposta.

— Está segura. — Disse, enxugando o rosto com as mangas. — Por enquanto. — Acrescentou.

— O que faremos? — Ele baixou ainda mais o tom de voz.

— Eu não sei. — Admitiu o camponês. — E é por isso que vim atrás de você. Na esperança de que este bardo iluminado nos mostrasse uma solução. — Explicou, forçando o tom formal que tanto usavam um com o outro, a fim de de aliviar o clima pesado.

A preocupação no rosto do bardo, porém, se intensificou. Conhecia o outro bem o suficiente para entender que o uso do tom formal naquele momento significava que, no fundo, Jehan ainda não havia perdido as esperanças. Uma pequena parte dele ainda acreditava que poderiam salvar a curandeira da execução iminente.

Gidie suspirou pesadamente, antes de perguntar, por fim:

— Onde está Cateline?

Jehan prendeu a respiração por um momento, e seu rosto pareceu encher-se de expectativa. Ele secou desajeitadamente o que restara das lágrimas em suas bochechas e endireitou a coluna, encarando firmemente o mais velho.

— Presa. Há apenas dois guardas — começou —, se conseguirmos distraí-los por tempo o suficiente para—

— Não. — Interrompeu o bardo. — Nem pensar. Isso seria caminhar diretamente para a fogueira.

— Mas…

— Mas — continuou —, há uma solução. Diga-me, o quanto o padre viu?

— Ele não viu. — Respondeu Jehan, incerto. E então, seus olhos se arregalaram, e ele pareceu entender o que o outro queria dizer. — É isso! Ele não viu.

— O que significa que alguém dedurou. E quantas pessoas sabiam da situação com Melisende? — Perguntou, sério.

O mais novo pareceu ponderar por alguns segundos, e seus olhar percorreu os arredores nervosamente. Sua expressão se contorceu em um misto de medo e choque, e ele levantou-se bruscamente, deixando a capa do outro cair de seus ombros.

— O pai dela! — Exclamou, assustando o bardo. — Ele foi contra o tempo inteiro. Disse que não deveríamos nos meter com essas coisas, que Deus sabia o que estava fazendo. Mas é claro!

— Isso! — Concordou Gidie. — E se conseguirmos provar que ele estava errado, que foi tudo um grande mal entendido antes do cair da noite—

— Conseguimos salvar a vida de Cateline — completou —, e não precisaríamos fugir para garantir nossa segurança.

O bardo apenas assentiu com a cabeça e pôs-se de pé rapidamente, jogando a capa de forma desajeitada sobre os próprios ombros e pegando o alaúde que só então Jehan notara estar ali, sobre um amontoado de folhas.

Gidie guiou o mais novo para fora da clareira, adentrando a floresta, parecendo saber exatamente qual direção seguir. E provavelmente sabia, afinal, já havia atravessado aquela mata incontáveis vezes.

O sol ainda não havia se posto quando os dois avistaram os limites da aldeia, e a esperança preencheu o peito do camponês. Em pouco tempo, já estavam atravessando as ruas tão conhecidas à passos largos, atraindo alguns olhares curiosos por onde passavam.

Mas antes mesmo de chegarem ao destino, a figura de uma moça correndo entrou em foco repentinamente, e parou milésimos de segundo antes de colidir com os dois. Ela estava ofegante, e eles a reconheceram na hora.

— Cateline — começou a voz trêmula de Melisende — está sendo levada agora.

O bardo e o camponês se entreolharam horrorizados, e o ar faltou em seus pulmões. Jehan estendeu a mão para Melisende, que aceitou, sem encará-lo nos olhos. Sua palma estava suando frio, e ela tremia.

A camponesa guiou os recém-chegados para longe dali. Nenhum dos três foi capaz de dizer nada, e a cada passo o clima pesado tornava-se mais sufocante. A respiração de Gidie estava pesada, e ele apertava com força o alaúde em uma de suas mãos, enquanto a outra segurava firme o ombro do mais novo. Jehan lutava em vão contra suas próprias lágrimas, enquanto Melisende mantinha o olhar fixo no chão à sua frente.

— Talvez — o camponês quebrou o silêncio —, talvez ainda dê tempo.

A mão em seu ombro estremeceu, enquanto a de Melisende apertou sua própria. Nem a camponesa nem o bardo viraram-se para encará-lo.

Foi com horror que Jehan levantou o olhar e constatou que haviam chegado ao destino. E que era tarde demais.

Ali, rodeada por rostos tristes, preocupados ou raivosos, estava Cateline. Seu vestido longo e verde estava levemente surrado na barra, e uma parte de seus cabelos castanhos havia se soltado da trança que costumava ser tão bem arrumada.

Suas mãos estavam atadas em sua frente, e era possível ver a pele avermelhada por baixo das cordas. Apesar de tudo, sua expressão não demonstrava nada além de valentia e decisão.

O estômago de Jehan revirou ao perceber a estaca de madeira um pouco atrás da curandeira, com todos os preparativos prontamente organizados.

O camponês agora tremia forte, enquanto fitava a moça sendo amarrada sem nenhum cuidado à estaca por dois homens. Seu olhar, porém, permanecia inabalável, e ela não pareceu se incomodar com a brutalidade.

Um terceiro homem se aproximou da cena, segurando uma tocha. Jehan sentiu um forte enjôo, e o suor frio estava cada vez mais intenso. Seus joelhos cederam e ele foi amparado pelo bardo e a camponesa, mas não foi capaz de encarar nenhum dos dois.

A visão de Jehan ficou turva, e as vozes agora se misturavam ao crepitar da chama recém-acesa. Gidie e Melisende intensificaram o aperto, e era possível sentir o desespero deles. Em meio aos sons indistinguíveis, o grito de Cateline se destacou de forma clara:

— Fui eu mesma! — Vociferou ela. — Eu enfeiticei a jovem para que acreditasse que trazia a cura divina! Ó pobre Melisende, enganada pela feiticeira e amaldiçoada pela vida. Ferida, pobre Melisende! Tola e estupidamente fiel, confundiu a feiticeira com a voz do Senhor! Pobre, pobre e miserável Melisende!

Foi com pânico que Jehan sentiu o aperto em seu lado direito se afastar, e um baque foi ouvido. As chamas agora estavam altas, e a curandeira gargalhava enquanto bradava seus pecados em alto e bom som, para todos que quisessem ouvir.

A visão do camponês agora era apenas borrões em tons alaranjados, distorcidos pelas lágrimas. O cheiro de queimado beirava ao insuportável, e ele tateou ao seu lado até sentir a figura trêmula de Melisende, aos prantos.

Reunindo toda a força que conseguiu naquele momento, ele puxou a camponesa, pondo-a de pé, cambaleante, a fim de afastá-la dali.

Repentinamente, braços fortes o envolveram e ergueram no colo, levando-o para longe. Ele tentou gritar, mas logo uma mão firme em sua boca impediu-o de emitir qualquer som mais alto.

Aos poucos o rosto do ferreiro entrou em foco. Seus olhos estavam vermelhos, o suor escorria-lhe pela testa e ele estava ofegante. Ainda assustado, Jehan levantou um pouco a cabeça, e avistou Gidie poucos passos à frente, carregando Melisende desacordada.

Aliviado, ele deixou-se recostar novamente nos braços fortes, enquanto fechava os olhos tentava normalizar novamente a respiração. O cheiro de queimado ainda estava presente em suas roupas, e os gritos ecoavam de forma incessante em sua mente.

Eles seguiram em silêncio por algum tempo. Através das pálpebras, Jehan era capaz de perceber a iluminação do crepúsculo, indicando que já estava anoitecendo, embora não soubesse dizer quantos minutos ou horas haviam se passado desde a execução.

O camponês sentiu o homem deitando-o sobre uma superfície macia que constatou ser grama. Ele permaneceu deitado, apenas ouvindo o som dos outros se movendo por perto, tentando absorver o máximo do que acontecia ao seu redor, a fim de espantar as recentes memórias.

— Aqui. — A voz do bardo o despertou de seu transe.

Jehan sentou-se no gramado e se permitiu finalmente olhar em volta. Melisende estava deitada há pouco menos de um metro ao seu lado, coberta com a capa de Gidie, ainda desacordada. O ferreiro não parecia estar nas proximidades, mas antes que o camponês pudesse perguntar, o mais velho adiantou-se:

— Roul voltou para a aldeia. Ele foi falar com o padre. — Explicou.

— Onde estamos? O que aconteceu? — Indagou Jehan, sentindo-se confuso e derrotado.

— Você desmaiou. — Respondeu. — Vocês dois, na verdade. — Acrescentou, inclinando a cabeça na direção da camponesa inconsciente.

O mais novo não respondeu de imediato, apenas baixou o olhar para a grama, e pôs-se a arrancar as folhas, aflito, a fim de se distrair de alguma forma.

O som das roupas de Melisende se movendo indicaram que ela estava por fim acordando. Jehan a encarou em silêncio, enquanto ela sentava-se e olhava em volta, parecendo tão desamparada quanto ele.

Receoso, o camponês segurou-lhe a mão, e ela apertou a sua de volta, tentando inutilmente passar um pouco de segurança para o marido.

— Ouviu o que ela disse? — Questionou a voz falhada de Melisende. — Ela mentiu. Mentiu para levar toda a culpa. Cateline mentiu para me—

A frase foi cortada por um soluço brusco, e a camponesa desabou em lágrimas. Nem Jehan nem Gidie ousaram dizer nada, e a dor era clara na expressão de cada um.

Em pouco minutos, o ferreiro havia retornado e agora estava sentado em frente ao casal, ao lado de Gidie, esperando o clima pesado amenizar para que pudesse falar. O que não aconteceu, de forma que ele começou mesmo assim:

— Vocês estão seguros. — Anunciou. — O padre quer vê-los na igreja amanhã antes do pôr-do-sol, e disse que tem a cura.

Os outros três trocaram olhares confusos.

— Cateline me contou tudo ontem à noite. — Ele mordeu o lábio inferior antes de continuar: — Ela sabia que era um risco, sabia que seu pai iria denunciar a situação para o padre. Ela também pediu desculpas por contar seu segredo para mim.

Melisende conteve um soluço e apertou mais forte a mão de Jehan. Gidie olhava do casal para o ferreiro, sabendo que não seria prudente se intrometer naquele momento.

— Eu sinto muito pela situação de vocês. — Disse Roul. — Mas o padre assegurou que tem a cura, e que contando seis meses depois de amanhã, Melisende poderá ter filhos. Segundo ele, se trata de uma maldição da própria — ele fez uma careta — bruxa Cateline.

— Você sabia. — Rosnou Jehan. — Você sabia e não fez nada para impedi-la! Você compactuou com essa mentira estúpida!

— E por minha causa! — Exclamou Melisende, encarando o ferreiro de forma acusadora. — Tudo isso por causa de algo que sequer era da sua conta!

— Melisende, se acalme, eu—

— Não me acalmo, Roul! — Bradou ela, mais lágrimas escorrendo de seus olhos. — Cateline praticamente se jogou na fogueira para tentar me curar, você sabia disso e se negou a ajudá-la!

— Ela pediu isso! — Retrucou o ferreiro, alteando a voz. — Ela sabia que se desse errado, como imaginava que daria, o padre iria cuidar de seu caso!

— Que se dane o meu caso! — Gritou, se levantando bruscamente. — Que se dane os filhos que não vou ter, estamos falando de uma vida que existia de verdade e foi parar na fogueira! E você sabia!

Antes que o ferreiro pudesse responder, o som do alaúde foi ouvido, e os três viraram-se para o bardo, que agora segurava o instrumento e havia começado a tocar uma melodia triste.

Eles permaneceram em silêncio, ouvindo a canção melancólica, sentindo a adrenalina da discussão se esvair, dando lugar à angústia e a dor da perda.

— Não adianta discutirmos isso agora. — Afirmou o bardo, após tocar as últimas notas. — Não vai mudar o que aconteceu, não vai mudar a situação atual e só vamos culpar uns aos outros em um ciclo infinito até brigarmos de verdade e destruirmos a relação que temos.

— Gidie tem razão. — Admitiu Jehan, cautelosamente. — Não vamos trazer ninguém de volta, e nossa condição não vai mudar se não fizermos nada. E o que temos a fazer agora é o que Roul disse. Que por sua vez — ele suspirou —, era o que Cateline tinha planejado desde o princípio.

As palavras pareceram atingir os outros dois, pois nem a camponesa nem o ferreiro continuaram a discussão, e o clima infeliz pairou no ar sobre eles novamente.

O bardo tornou a tocar seu alaúde, e os outros permaneceram em silêncio, sentindo cada nota preencher seus ouvidos, como se tivesse o poder de amenizar a dor que agora compartilhavam. Nenhum deles parecia disposto a voltar para a aldeia naquele momento.

Jehan se aproximou de Melisende, passando um dos braços por trás da moça, em um meio-abraço, e recostou a cabeça em seu ombro. A camponesa, por sua vez, apoiou o rosto nos cabelos negros do rapaz, sentindo o que restara do cheiro de queimado impregnado em Jehan. Ou talvez ela própria tivesse tomada pelo cheiro e só percebera naquela hora.

Os dois fecharam os olhos, e permitiram mais uma vez as lágrimas rolarem por suas faces agora inchadas e coradas.

Roul se recostou em uma pedra próxima, chorando baixinho enquanto tentava não se condenar pelo trágico fim de Cateline.

Gidie continuava a tocar a melodia triste, com os olhos marejados, encarando o céu nortuno através da copa das árvores e sentindo a brisa gélida parecendo perfurar até seus ossos.

Naquela noite, não haviam estrelas visíveis. Naquela noite, não havia o barulho das canecas ou as risadas na taverna. Não havia cerveja ou sorrisos, histórias emocionantes ou poemas épicos recitados à beira de uma fogueira. Apenas o frio cortante, os nós nas gargantas e uma frágil esperança massacrada que não esperava mais nada de fato, acompanhada da melodia melancólica do bardo para seus ouvintes igualmente feridos.

Jehan não percebeu quando caiu no sono, tampouco foi capaz de sonhar. Acordou de forma súbita, sem ter certeza de que havia dormido de verdade. E se não fosse pelos raios de sol iluminando a floresta, o camponês não pensaria que já havia amanhecido.

Ele se levantou cuidadosamente tentando não acordar Melisende, sentindo todo o corpo dolorido e pesado. O ferreiro dormia na mesma pedra na qual se apoiara durante a noite, e o bardo já não estava ali. Foi com um certo alívio que Jehan percebeu a capa vermelha sobre a camponesa, indicando que Gidie não havia partido para a próxima viagem ainda.

Uma mão tocou-lhe o ombro, e ele virou-se para encarar seu dono. O bardo lançou-lhe um olhar sério e fez sinal para que o acompanhasse.

Jehan o seguiu, receoso, até a beira de um rio, e observou em silêncio enquanto o mais velho sentava-se em uma rocha e indicava uma outra ao seu lado. O camponês seguiu os passos do outro, abaixando-se no local indicado.

— Eu sinto muito por ontem — começou, pesaroso —, talvez se tivéssemos chegado alguns minutos antes…

— Não — ele suspirou —, nada teria sido diferente. Esse era o plano de Cateline. Ela planejava levar a culpa de qualquer forma, morrer como feiticeira para que o padre oferecesse a cura de bom grado. Não foi culpa sua, nem minha, nem de ninguém. Foi a decisão dela priorizar o problema de Melisende. E por mais que não concordemos com isso, só podemos respeitar tal decisão.

— Quando foi que este menino tão iluminado se tornou uma pessoa tão bela e admirável? — Perguntou o bardo no tom tão usado entre os dois.

— Este pobre camponês — disse, tentando acompanhar o tom — teve um exemplo magnífico para seguir. — Ele forçou uma risada, que nem de longe soou tão genuína quanto esperava.

Gidie forçou um sorriso também, e afagou os cachos do mais novo, orgulhoso. Jehan havia desenvolvido com o passar dos anos uma capacidade de compreensão surpreendente, afinal.

A conversa fluiu normalmente, os dois tentando de qualquer forma desviar a mente do ocorrido no dia anterior.

Quando voltaram ao local de antes, Melisende e Roul já estavam acordados e permaneciam em silêncio, preparando-se para voltar à aldeia. Não pareciam guardar nenhum tipo de rancor, a discussão agora soava como uma memória distante.

Os quatro ajeitaram suas respectivas vestes e rumaram em direção ao povoado sem trocar muitas palavras. Ao chegarem, o ferreiro seguiu seu próprio caminho até sua casa, despedindo-se brevemente dos outros.

O bardo, então, acompanhou o casal até a igreja, onde o padre já estava à espera. Porém, não lhe foi permitido a entrada, de forma que permaneceu do lado de fora, encostado no muro baixo, aflito com o que poderia acontecer lá dentro.

O tempo parecia passar mais lentamente que o normal, os segundos se arrastavam, e Gidie estava cada vez mais temeroso, sem nenhuma notícia sequer. Pôs-se a andar de um lado para o outro, impaciente.

E se a fome que começara a sentir não era um indicativo das horas passando, o sol brilhando alto no céu certamente era.

As pessoas passavam na rua como de costume, parecendo ter esquecido completamente a execução pública que haviam presenciado um dia antes. Afinal, não era um acontecimento tão incomum assim, e os afetados eram quase sempre apenas os familiares e amigos do condenado. Mesmo estes costumavam evitar deixar transparecer a tristeza, com medo das consequências.

O bardo sentiu o estômago roncar, mas assim que decidiu procurar algo para comer, as portas da igreja se abriram, revelando Jehan e Melisende. O casal foi ao encontro de Gidie, parecendo trazer boas notícias pelas expressões em seu rosto.

— Eu fui curada! — Anunciou a camponesa, tentando conter a emoção.

E então, o bardo envolveu os dois em um abraço apertado, deixando escapar um suspiro de alívio. Os camponeses retribuíram o abraço, animados, e por um breve momento, o presente era o mais importante.

Gidie acompanhou os dois até a taverna, onde se permitiram, pela primeira vez em muito tempo, desfrutar de uma boa refeição, oferecida pela irmã de Melisende. Eles sabiam, porém, que era uma escapatória momentânea, e logo a angústia tomaria conta de seus emocionais novamente. Mas ali, naquela hora, a cura da camponesa e a esperança de uma nova vida era o que importava.

As horas pareciam minutos, e os segundos voavam tão rapidamente que era difícil acompanhar. Quando se deram conta, a noite já estava caindo, e os trabalhadores começavam a chegar de suas longas jornadas no campo.

Os três seguiram para fora da taverna, até a porta da casa que agora pertencia ao casal. Gidie forçou um sorriso triste, sentindo o clima entre eles mudar completamente.

— Quanto tempo? — Questionou Jehan, tentando esconder a tristeza.

— Não sei. — Respondeu o bardo com sinceridade. — Depende de meus ouvintes, depende da minha sorte.

— A aldeia não é a mesma sem sua ilustre presença, bardo. — Disse a camponesa em seu tom mais elegante, fazendo uma mesura.

— Encantado com seus elogios, bela dama. — Ele fez uma reverência. — E vejo o quanto Jehan lhe ensinou. Fala quase como alguém da nobreza. E acredite, eu conheci nobres. — Acrescentou, rindo de canto.

— Talvez eu pertença à nobreza e este seja um mero disfarce. — Brincou.

Os três riram da encenação, e logo as risadas deram lugar ao silêncio da despedida. O bardo cumprimentou a camponesa com mais uma reverência, antes de ser puxado para um abraço de Jehan.

— Quando você voltar — começou, decidido, bagunçando os cabelos do mais velho —, teremos mais um membro na família.

Gidie sorriu, esperançoso. Jehan tinha razão. Eles só podiam respeitar a decisão de Cateline e seguir em frente com o plano.

O bardo então afastou-se do camponês, e com um último aceno de cabeça, virou-se em direção à saída da aldeia e seguiu em frente, até sumir completamente na escuridão. Jehan e Melisende se entreolharam, sabendo exatamente o que o outro estava sentindo sem que precisassem dizer uma palavra sequer. Aquele seria um novo começo para os dois, afinal.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E acredite, ele conheceu nobres mesmo.

Pobre Melisende. Pobre Roul. Jehan também. Pelo menos, o pior já passou, não é mesmo?

Bem, é isso. Sintam-se à vontade para deixar comentários e até a próxima! ٩( ᐛ )و



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Imortal" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.