Polly escrita por Ariel F H


Capítulo 1
Polly




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BIP.

INÍCIO DA GRAVAÇÃO.

— Sou o delegado Carlos Prestes. Está aqui para prestar depoimento sobre o assassinato de Leonardo Pereira. Tem plena consciência disso?

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Sim. Tanto faz.

— Qual seu nome?

— João.

— Nome completo, por favor.

— João Augusto Pereira.

— Quantos anos você tem?

— Dezesseis.

— Está na escola?

— Não. Abandonei ano passado.

— Seu pai não disse nada sobre isso?

— Ele não sabia.

— Não contou a ele?

— Não.

— E sua mãe?

— Morreu ano passado.

— E o tempo que deveria estar estudando, o que dizia para seu pai?

— Você acha que ele me perguntava?

— E não perguntava?

— Não.

— E você nunca falou sobre isso com ele?

— Não.

— Tudo bem... E o que fazia quando deveria estar na escola?

— Sei lá...

— Você com certeza fazia algo.

— Jogava bola com uns caras.

— Só isso?

— Geralmente.

— Que caras?

— Uns amigos.

— Certo. Por que abandonou a escola?

— Eu ia só pela merenda, mas começou a faltar. Não fui mais.

— Em que série estava?

— Oitava.

— O que aconteceu com sua mãe?

(SILÊNCIO — 02 SEGUNDOS)

— Isso importa?

— Tudo importa.

— Algumas coisas não.

— Por exemplo...?

— A morta da minha mãe não importa.

— A morte da sua mãe não importa pra você?

— É claro que importa pra mim... Mas pros outros não.

— Bem, eu gostaria de saber um pouco sobre a morte da sua mãe.

(SILÊNCIO - 07 SEGUNDOS)

— João? Tudo bem?

— Ela tentou fazer um aborto clandestino. Morreu na sala de operação.

— Ela trabalhava?

— Sim, era diarista.

— Seu pai a obrigou a abortar?

— Não. Ele não sabia.

— Então foi por vontade própria?

— Eu não diria com essas palavras...

— Então alguém a obrigou?

— Não, eu só não diria que foi por vontade própria.

— O que quer dizer?

(SILÊNCIO - 03 SEGUNDOS)

— Eu não sei. Não é o tipo de coisa que as pessoas simplesmente querem fazer.

— Ah, certo... Bem... Seu pai tinha um emprego?

— Fixo? Não. Ele fazia uma coisa ou outra, mas de uns tempos pra cá era só bebida mesmo.

— Leonardo era alcoólatra?

— A palavra alcoólatra foi inventada pra ele.

(SILÊNCIO - 03 SEGUNDOS)

— Você bebe?

— Eu? Não. Odeio álcool.

— Usa drogas?

— Isso importa?

— Usa?

(SILÊNCIO - 03 SEGUNDOS)

— Não, não uso.

— Já experimentou alguma?

— Ah... Sim.

— Quais?

— Maconha.

— Só?

— Sim.

— Quando?

— Eu tinha onze anos. Encontrei nas coisas do Leonardo.

— Faz uso frequente da maconha?

— Eu? Não. Eu falei, não uso drogas.

— Os adolescentes da sua idade costumam fumar muita maconha...

— Não sou igual à eles. Leonardo é... Era. Ele gostava de maconha... E outras coisas.

— Leonardo é seu pai... Certo?

— Sim.

— Por que não o chama de pai?

— Porque ele não é.

— Não é seu pai?

— Ele só doou esperma.

— Então você não o considera como um pai?

— Não.

— Leonardo... Era agressivo?

— Sim.

— Ele agredia você?

— Eu... Minha mãe. Mas nós nunca o deixávamos tocar na minha irmã, ou tentamos... Desde o ano passado tenho tentado sozinho.

— Então Leonardo já era agressivo antes de sua mãe falecer?

— Sim. Mas piorou depois.

— Piorou? O quanto?

— Ele já quebrou meu nariz. Já quebrou um vidro de vodca na minha cabeça, também.

— Quando foi isso?

— Faz tempo...

— Por que sua mãe não pediu divorcio?

— Ela tinha medo.

— De quê? Ela podia denuncia-lo a delegacia da mulher.

(RISADA SECA)

— Aham.

— O que acha de engraçado nisso?

— Ela denunciaria ele... E daí? Que merda ia adiantar? Nenhuma.

— Não acredita no poder das autoridades? No poder de uma denúncia?

— Autoridades...

— Por que está rindo?

— Eu não acredito em nada.

— Nem mesmo na polícia?

— Eu não acredito em nada que venha de gente branca.

(SILÊNCIO - 02 SEGUNDOS)

— Já ouviu falar que quem não tem sangue preto nas veias tem nas mãos? Pois é...

— Por que...

— Além disso, ele tinha uma arma. Ela tinha medo.

— Foi com essa arma que você cometeu o crime?

(SILÊNCIO - 02 SEGUNDOS)

— Sim. Foi.

— Onde a encontrou? A arma.

— Debaixo da cama dele.

— Leonardo tinha porte legal?

— Eu não sei, mas provavelmente não... Ele é... Era ex-detento.

— Quando você aprendeu a atirar?

— Ontem.

— No dia do assassinato.

— Isso.

— Você disse que tentava fazer com que seu pai não agredisse sua irmã...

— Tentava.

— Não conseguia?

— Acho que você já sabe a resposta pra isso.

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Sua irmã estuda?

— Sim. Levo ela todas as tardes para a escola... Ou levava.

— Como ela volta para casa?

— Vou buscar também.

— É um pouco longe de sua casa para ir e voltar duas vezes por dias. Descer o morro...

— Eu não volto. Fico na rua.

(SILÊNCIO — 05 SEGUNDOS)

— No dia do crime, você não foi levar sua irmã para a escola, certo?

— Não. Deixei ela na casa de uma amiga minha.

— O que aconteceu?

— No meio do caminho, ela me contou.

— Contou o que?

— O que ele fez... O que Leonardo fez... Ou... Não tenho certeza se foi uma vez só.

— Ele a espancou?

— Não. Leonardo... Ele... Violou ela.

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Quando aconteceu?

— Em janeiro. Minha irmã contou que foi no dia do aniversário dela.

— Já faz... Quase onze meses.

— Sim.

— No dia do crime, ele não tocou nela, certo?

— Não.

— Você percebeu que algo estava estranho? Digo, na época em que o ato ocorreu...

— Sim... Mais ou menos.

— O que percebeu?

— Ela estava quieta. Não falava com quase ninguém mais. Achei que era algum problema na escola, então comecei a levar ela e trazer todos os dias. Ela melhorou um pouco, mas nunca mais foi como era antes.

— Sua irmã... Chama-se Mariana, certo?

— Sim.

— Ela não contou nada do abuso para você, ou outra pessoa?

— Não. Acho que ela não entendia o que aconteceu. Era muito inocente... Ainda é.

— O que acha que a fez contar para você?

— Isso importa?

— Por que acha que não importa?

— O que vocês vão fazer? Comigo... Pra onde Mariana vai?

— Nós precisamos conversar primeiro... Você precisa me contar o que aconteceu.

— Nós estávamos andando... E no caminho vimos que um cara tentava arrastar uma mulher pra longe. Eu percebi que algo estava errado então ajudei ela. A moça agradeceu depois... Então minha irmã perguntou o que tinha acontecido e eu tentei explicar... Daí... Hã... Bem, então eu disse para minha irmã que um homem nunca tem o direito de tocar em uma mulher, a menos que ela dê liberdade a ele... Porque eu lembrei da minha mãe me falando isso... Então ela se virou para mim e falou “até mesmo se o homem for o papai?”. Eu fiz ela explicar melhor porque tinha dito isso... Aí comprei um sorvete para ela e a deixei na casa da minha amiga. Então voltei pra casa.

— Ela te deu mais detalhes sobre o estupro?

(SILÊNCIO - 03 SEGUNDOS)

— Não muito... Ela... Ela não entende direito o que aconteceu.

— Depois que levou sua irmã para a casa de uma amiga...

— Eu fui até a minha casa. Leonardo estava lá.

— Foi aí que cometeu o crime?

— Sim.

— Era por volta das três e meia da tarde, certo?

— Certo.

— Leonardo estava sozinho em casa?

— Sim. Deitado no sofá, dormindo. Peguei a arma debaixo da cama dele.

— Ele reagiu?

— Estava um pouco bêbado, mas reagiu, sim.

— Foi aí que você atirou?

— Foi.

— Duas balas no peito e outra fatal na cabeça.

— Isso.

— Houve luta corporal?

— Não.

— Sente arrependimento?

(SILÊNCIO - 03 SEGUNDOS)

— Não. Não sinto.

— Nem um pouco?

— Ele era horrível. Nunca nos deu nada, só sofrimento. E tocar na minha irmã... Na própria filha. Eu não ia deixar. Quando ela me contou... Eu fiquei com tanta raiva, só queria explodir a cara dele.

— Então você assume que cometeu o crime?

— Assumo. E não me arrependo.

— João, você completou dezesseis anos mês passado... E a maioridade penal diminuiu pra dezesseis... Sabe disso, não sabe?

— Sei.

— Você vai ser julgado como um adulto pelo assassinato. Tem consciência disso?

— Tenho.

— Algo mais a declarar?

(SILÊNCIO —04 SEGUNDOS)

— Para onde Mariana vai?

— Vocês tem algum parente... Talvez uma avó ou...

— Temos uma tia.

— A guarda de Mariana passará para ela, mas se recusar, irá para um orfanato.

— Minha irmã vai ter apoio psicológico? Eu acho que ela precisa...

— Nós vamos providenciar isso.

(SILÊNCIO — 02 SEGUNDOS)

— Gostaria de dizer mais alguma coisa, João?

— Não. Tudo bem.

— Encerramos aqui, então.

BIP.

FIM DA GRAVAÇÃO.

 

 

BIP.

INÍCIO DA GRAVAÇÃO.

— Você gosta de brincar com bonecas?

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Qual é o nome dela?

(SILÊNCIO — 08 SEGUNDOS)

— Quantos anos você têm?

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Você está com medo de falar? Não precisa ter medo de nada daqui em diante. Está segura comigo. Ninguém vai te machucar.

(SILÊNCIO — 05 SEGUNDOS)

— Quer que eu vá embora?

(SILÊNCIO — 12 SEGUNDOS)

(RANGER DE CADEIRAS)

(SUSSURRO)

— O que disse? Perdão... Não ouvi.

— É Polly... O nome dela.

— É um nome lindo, para uma boneca muito linda. Ganhou de presente?

— Minha mamãe me deu. O que é isso?

— Isso? É um aparelhinho. Grava tudo o que estamos falando. Gostou dele?

— É legal.

— Posso te dar um depois de conversarmos. Posso me sentar?

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

(RANGER DE CADEIRAS)

— Tudo bem em conversar comigo?

— Acho que sim.

— Quer mais um biscoito? Não? Tem certeza? Pode pegar se quiser. Tudo bem.

— Onde está meu irmão?

— Pode ver ele depois... Também falei com ele mais cedo.

— Por que ele não está aqui?

— Ah... Ele está lá fora, te esperando.

— O que você quer?

— Apenas conversar. Tudo bem?

— Tá...

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Quantos anos você tem, Mariana?

— Tenho sete.

— E seu irmão?

— Ele é mais velho.

— Sabe o que ele fez?

— Sim. Ele destruiu o lobo mau.

— Por que diz isso?

— Porque foi o que ele disse que fez.

— Sabe o que isso significa?

(SILÊNCIO - 04 SEGUNDOS)

— Tudo bem. Tem mais irmãos?

— Não.

— Gosta do que tem?

— Sim. Ele me protege.

— E seu pai, gosta dele?

(SILÊNCIO — 06 SEGUNDOS)

— Não?

— Papai não gosta da Polly. Ele pegou ela sem pedir se podia.

— Polly, sua boneca, certo? Seu pai pegou sem pedir? Isso te deixou triste?

— Sim.

— Posso ver Polly? Não?

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Você não vai machuca-la... Vai?

— Não. Não vou. Pode ter certeza. Polly está segura.

— Tudo bem.

(RANGER DE CADEIRA)

(SILÊNCIO — 12 SEGUNDOS)

— Mari... Posso te chamar assim?

— Pode. É bonito. Mamãe me chamava assim.

— Mari, o que é isso na Polly? Entre as pernas dela?

— É para proteger ela. O lobo mau não pode tocar aí. Pode me devolver? Polly está ficando triste.

(RANGER DE CADEIRA)

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Por que Polly está triste?

— Ela gosta de ficar perto de mim. Estranhos deixam ela triste.

— Eu não sou um estranho. Sou?

(SILÊNCIO — 05 SEGUNDOS)

— É pelo o que eu contei ao maninho? Ele pareceu bem chateado...

— O que contou para ele?

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Não quer me contar? Tudo bem.

— Às vezes... Eu ficava em casa com papai.

— Sozinha?

— Sim. De tarde.

— Não deveria estar na escola?

— Não era todo dia.

— O que vocês faziam?

— Eu gostava de brincar na rua. Ele preferia brincar na cama.

(SILÊNCIO — 05 SEGUNDOS)

— O que ele fazia?

— Eu não sei. Era uma coisa estranha.

— Ele machucava você?

— Acho que sim. Eu não pedia pra ele fazer aquilo. Doía. Mas ele fazia do mesmo jeito.

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Contou para alguém o que seu pai fazia? Além do seu irmão?

— Não.

— Por quê?

— Ele disse que era nosso segredinho. Que era coisa de família. Coisa de pai e filha... Ele dizia isso.

(SILÊNCIO — 02 SEGUNDOS)

— Como se sente sobre isso?

— Eu quero meu irmão. Quer ficar com a Polly?

— Como?

— Pode ficar com ela, por favor?

— Mas Polly não gosta de estranhos?

— Você não é um estranho.

(RANGER DE CADEIRA)

— Quer que eu fique com ela?

— Sim.

— Por quê?

— Você vai cuidar dela?

— Claro.

— Eu não consigo cuidar dela. Eu tentei, mas ela se machucou.

(SILÊNCIO — 04 SEGUNDOS)

— Posso pegar um biscoito?

— Gosta de biscoitos? Pode pegar o pote inteiro, se quiser.

— Mesmo?

— Mesmo.

— Obrigada. Posso dividir com meu irmão?

— Claro. Ele está lá fora.

— Posso ir?

— Sim. Não quer ficar com a Polly? Não vai sentir falta dela? É sua.

(SILÊNCIO — 03 SEGUNDOS)

— Não. Não consigo mais cuidar dela.

— Tudo bem. Cuido dela para você. Quando quiser ela de volta, é só pedir.

— Obrigada.

— Não tem de quê. O biscoito está bom?

— Sim. Posso levar para meu irmão?

— Pode. A porta está aberta. Isso... Consegue abrir?

(RANGER DE CADEIRAS)

(SILÊNCIO — 15 SEGUNDOS)

(SUSPIRO)

(SILÊNCIO — 05 SEGUNDOS)

BIP.

FIM DA GRAVAÇÃO.


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