Wayward Son escrita por Senhorita Nada


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Essa fic demorou mais do que o previsto devido a várias crises alérgicas, depressivas e a simples e sempre presente preguiça de escrever. Vale a pena enfrentar esses obstáculos, no entanto, e espero que gostem do resultado! Boa leitura e vejo vocês lá embaixo!



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Ele ainda não se acostumou à nova cor do cabelo. O preto apenas realça as marcas roxas em sua pele, o prateado dos piercings e os olhos azuis gelados, ao contrário do ruivo anterior. Ele corre os dedos por entre as mechas ao mesmo tempo familiares e estranhas, apreciando a textura macia e grossa, enquanto o olhar acompanha seu reflexo no espelho fazer o mesmo. O que ele vê encarando de volta é uma figura macabra e intimidadora, cujos lábios se movem num sorriso audacioso.

 

Ele corre a língua pelo lábio inferior, puxando uma das mechas escuras, um som seco de descaso saindo de sua garganta. Tch. Ele vai se acostumar ao preto. Ele se acostumou a coisas piores.

 

A pouca iluminação na sala vem da tela do computador, que continua a mostrar o vídeo que inspirou sua mudança; a imagem rude de um homem desgarrado e apreendido, sua mensagem e suas ideias finalmente ouvidas por um público faminto como o jovem. Hero Killer Stain, dizem os jornais, um louco e assassino. Mas o que ele escuta é a voz do dito criminoso trazendo as palavras mais lúcidas que já ouviu.

 

Palavras de inadequação e injustiça, de heróis falsos e sonhos quebrados. De um ideal social que não existe, nunca existiu, essa ideia de herói e ídolo e família.

 

Há um gosto amargo e metálico em sua boca, e ele nota que mordeu o lábio inferior com mais força do que o pretendido. O sangue em sua língua tem o gosto da fumaça e de memórias ruins. A imagem dele está em sua mente e na tela em loop, a figura do homem envolto em chamas, de um herói.

 

Ele cospe no chão, sem se importar com a mancha vermelha no carpete. Não é como se esse fosse sua casa de qualquer forma. O dono do apartamento é um vulto cinzento e encolhido em um beco sujo, queimado até as feições desaparecerem. Não é o primeiro, e, até ele terminar, não será o último.

 

Alguém precisa carregar o legado do Matador de Heróis. Eles podem parar o nome, mas não a ideia.

 

Ele deixará o que é desnecessário pra trás. O apartamento, quaisquer posses que o identifiquem, seus documentos com o nome antigo, a raiva daquela vida e as lembranças que ela suscita. Ele deixará para trás a ideia de quem era, para se tornar algo maior do que isso, maior do que só ele, e, finalmente, ver uma mudança nesse mundo doente.

 

Ele irá queimar tudo até que não reste nem cinzas.

 

Ele deixa as chamas consumirem o local, um cigarro barato entre seus dedos. A Liga dos Vilões, é o que pensa ao puxar o primeiro trago. É essa a direção que tem que ir.

 

O fogo incendeia os restos do que ele era, e da pira sai apenas Dabi.



A Liga dos Vilões é um bando de fracassados, essa é a conclusão que chega.

 

Um maluco de máscara, uma mulher trans briguenta, uma colegial psicopata, uma Tartaruga Ninja, um Nazghul e a patética desculpa de um líder. É isso que eles são. Dabi imaginava ter expectativas baixas, mas até mesmo ele esperava mais do grupo a que o Hero Killer pertencia. Especialmente da liderança - o Mãozinha, como se referia pelas costas, parecia ser mais ocupado com seus high scores de videogames do que em fazer algo concreto.

 

Ele tentou ser paciente, dar uma chance de certa forma, mas ainda assim, sua frustração era crescente. Depois de ter um ataque quando se conheceram, o Mãozinha se resumiu a resmungar e rasgar o próprio pescoço entre partidas de jogos. Se torna um hobby para Dabi assistir o rapaz mimado que é forçado a chamar de líder, irritá-lo quando possível. Algo na reação dele, na raiva e no ímpeto infantis de alguém que não quer ser contrariado, que lhe parece divertido de uma forma adorável.

 

O tempo se arrasta. A Liga dos Vilões se mantém nas sombras, sem tomar ação relevante, nada além de queimar tempo no bar e irritar uns aos outros para diversão própria. Ele sorri e se enturma pressiona os limites de seus colegas a fim de esconder que está chegando no seu próprio.

 

Perda de tempo.

 

Assim ele nunca chegaria onde queria. Ele nunca conseguiria cumprir o sonho do Hero Killer… Nunca conseguiria matar seu-

 

Endeavor. Herói Número Dois. Nada mais, nada mais...

 

“Ei, imbecil. Quero que faça algo pra mim.”

 

Dabi abre um dos olhos para notar Tomura o espiando por entre os dedos da mão que usava no rosto. A figura esguia de seu chefe estava quase debruçada sobre a dele, sua sombra recaída sobre o moreno deitado no sofá. Era difícil definir sua expressão quando tinha aquela máscara bizarra, mas seu tom parecia controlado o suficiente para que arriscasse uma resposta esperta.

 

“Não sou sua babá. Ela tá lá no bar.”

 

“Não me questione, filho da puta!” As unhas de Shigaraki deixavam marcas vermelhas profundas na pele frágil de seu pescoço, e era impossível não seguir seus movimentos com o olhar, vê-lo traçar de novo e de novo padrões dolorosos em si mesmo. “É importante. Pro plano.”

 

“Oh? Nós temos um plano?”

 

Claro que temos um plano. Você que não era importante o suficiente pra saber.”

 

“Até agora.” Dabi sorri novamente, dessa vez com honestidade, e impulsiona o corpo para cima, ficando frente a Tomura, o pescoço um pouco erguido para olhar em seus olhos. “Você tem minha atenção, Shigaraki. O que você quer?”



Katsuki Bakugou.

 

Ele lembrava vagamente da figura, de quando o Festival Esportivo da UA passou na televisão. Um loiro abusado literalmente estourado. Ele até dera boas risadas ao ver o garoto amarrado e amordaçado em rede nacional, como um cachorro que desobedece ao dono. Ele era direitinho o filhote de cachorro bravo que parecia, um filhote de herói típico - superior e arrogante e obcecado com o próprio poder, em submeter todos a sua vontade. Bem como dizia o Hero Killer.

 

Shigaraki achava que podia transformar o moleque num deles. Dabi não tinha tanta certeza, mas não era de recusar a oportunidade de fazer algo, nem a implícita confiança depositada nele junto com o comando da missão. Ele traria o garoto Bakugou, e o passarinho Tokoyami, e quem mais fosse que estivesse na lista.

 

Seus olhos se focam em um nome particular, mas ele não fala, escondendo suas dúvidas com a máscara de sua arrogância. Lhe é dado um grupo e as informações trazidas pelo informante da Liga dentro da UA, e eles partem.

 

Ele sabe que devia ter orgulho. Afinal, ele trouxe o moleque Bakugou, o que já era um baque suficiente na sempre superiora UA. Mas não é o objetivo alcançado que se prende a sua mente, nem sua luta com Eraserhead, nem os peões que ficaram para trás. É uma frase, um olhar de descrença e falta de familiaridade, é a pressão em sua garganta e uma nostalgia perversa.

 

“Que pena, Todoroki Shouto.”



O sol começa a nascer, apenas alguns rasgos de luz na janela. Ainda assim, ele escuta Shigaraki se mexer e xingar em voz baixa, o leve farfalhar do lençol e a cama rangendo com a nova distribuição do peso. Ele não tá acostumado ao sol, NEET desgraçado. Seria divertido provocá-lo a respeito, e certamente ele o faria em outra oportunidade, mas não hoje.

 

Ele consegue repetir todo o encontro em sua mente, de novo e de novo, ao fechar os olhos. As cenas voltam mesmo quando não quer, durante a madrugada, sussurrando em seu ouvido coisas que ele achava que podia esquecer. Coisas que não pertenciam a Dabi, e sim a outra pessoa - a outro nome, a outra vida.

 

Todoroki Shouto. O nome sai fluido de sua mente como saiu de sua língua, e ele vê surpresa e confusão e compreensão em olhos de duas cores.

 

“Cê tá fumando aqui dentro? Cuzão do caralho.” Ele olha de esguelha quando Tomura o agride com um travesseiro, os lábios ao redor do cigarro aceso se erguendo num breve sorriso. O Mãozinha recupera sua arma improvisada como um escudo contra o inimigo pior que é a luz, nada mais que alguns fios azulados e uma voz abafada escapando por debaixo do travesseiro. “Ao menos encosta a maldita janela.”

 

“Ao contrário de você, nem todos nós somos morcegos, Tomura.” O deboche de Dabi é de certa forma afetuoso, e a irritação de Shigaraki de certa forma adorável. Ele não sabe ao certo como se estabeleceu essa dinâmica - foi quando brigaram pela primeira vez, ou depois que transaram pela primeira vez? Não que um período maior que alguns minutos tivesse se passado entre as duas coisas.

 

“Ninguém acorda de quatro da manhã, filha da puta.” Mãozinha se dá o espaço de erguer momentaneamente sua barreira, apenas um olho avermelhado espiando Dabi de sua sombra particular. “Nem mesmo você. Por que você tá acordado?”

 

“Não consegui dormir.” Ele está surpreso com a própria tranquilidade em ser honesto. É uma moeda tão rara a ser trocada entre pessoas como eles, essa verdade. Ele deixa a fumaça entrar em seus pulmões e a exala lentamente, sorrindo de novo ao ouvir as pequenas tosses de Tomura.

 

“É por conta… Apaga essa merda!” A voz ainda grogue de Shigaraki é interrompida por mais um acesso de tosse antes que ele possa prosseguir. “...Do acampamento?”

 

“Talvez.” Dabi sorri, o mesmo sorriso superior de quando absolutamente não sabe o que dizer. “Você bem que gostaria de saber, Tomura.”

 

“Você viu o seu irmão.”

 

Ele diz como um fato, uma constatação, sem o mínimo aviso para que Dabi não derrube o cigarro e toque fogo nos dois. Ele mal sabe como processar uma reação, um milhão de pensamentos por trás de um olhar aturdido. Como esse desgraçado sabe? é o mais frequente deles. Ele se pergunta se a Liga tem informantes em outros locais além da UA.

 

“Shouto.” Tomura se vira na cama, ficando de lado para observar melhor seu interlocutor. O cabelo azulado emoldura desleixadamente seu rosto, e os olhos ainda sonolentos parecem ver através dele. “É o nome dele, não é?”

 

“Como você ficou sabendo?”

 

“Você bem que gostaria de saber, Dabi.” A voz de Tomura é irônica e mesquinha como o próprio, e ele resiste à vontade de revirar os olhos por pouco. “Eu não deixo qualquer um entrar no meu grupo assim.”

 

“Kurogiri, então.”

 

“Como eu sei não importa.” Shigaraki interrompe, o triunfo infantil de antes dando espaço à irritação crescente com sua relutância no assunto. “O que você vai fazer?”

 

“Sobre?”

 

“Matar o seu irmão.”

 

O quarto fica quieto, desconfortavelmente silencioso. Ele sente o peso daquele olhar avermelhado sobre ele, e quer empurrá-lo ou beijá-lo ou só mandá-lo parar de encarar daquela forma. Ele não quer pensar a respeito das palavras, nem do que elas o fazem lembrar. Ele deixou isso para trás, há meses, numa vida diferente.

 

E ainda assim você nem pensou em levá-lo. Tokoyami e Bakugou não são nada pra você, mas Shouto…

 

É filho dele. É o orgulho dele. Seu precioso bonequinho de heroísmo.

 

Ede quem é a culpa nisso?

 

“Não é ele quem deve morrer.” Ele responde, por fim, depois de um longo trago.

 

“Hm, desde quando isso importa? Merecendo ou não, matamos muita gente.”  Tomura não compra suas desculpas, um sarcasmo crítico pingando de suas palavras. “Ele é um herói. Ele vai lutar com você. Você vai ter que lutar de volta, ou ele vai te prender. É assim que as coisas funcionam. Se vocês lutarem, vai ter que ir pra cima sério. Vai ter que estar disposto a matar e morrer.”

 

Ele não quer ouvir verdades da boca de Shigaraki Tomura.

 

“Como você vai superar o Hero Killer se não consegue superar quem você foi, Todoroki?

 

O movimento foi súbito até para ele. Em um momento, estava sentado na cama, fumando, ouvindo. No outro, ele tinha uma das mãos enroladas ao redor da garganta pálida e machucada de Tomura, o peso de seu corpo sobre o dele. Ele se sente apertar mais forte, sente o sangue que pulsa nas veias dele e o fogo que flui em suas próprias. Ele quer matá-lo, queimá-lo até às cinzas, e também quer fodê-lo até que a única palavra que saia de sua boca seja seu nome.

 

Nunca mais me chame assim. O que eu faço ou como eu luto não é da sua conta, Shigaraki.”

 

Ele solta seu pescoço antes que o último dos dedos finos de Shigaraki toque sua pele. Há um silêncio breve, entrecortado apenas pelas tosses e arquejos de Tomura, antes que ele sorria - e há algo nesse sorriso que, pela primeira vez nos longos meses em que conhece Shigaraki, o perturba.

 

“Faça como quiser… Mas não diga que eu não avisei.”  



O cheiro de fumaça impregna em suas roupas e pele, e ele tosse quando ela alcança seus pulmões. Não é o tipo de fumaça que ele gostaria que fosse. É a fumaça de borracha e vidro, de madeira e concreto e asfalto. A de carne se espalha sutilmente entre elas, como consegue sentir o sangue lentamente empapando sua camisa.

 

A pior parte é a dor. Ele realmente mataria por um cigarro agora…

 

Ele sente as mãos sob sua cabeça, e o mesmo o breve movimento de erguer seu pescoço manda reflexos de dor por sua coluna abaixo. Alguém entra em seu campo de visão, tapando uma parte do céu azulado - alguém com duas cores de cabelo despenteado pela batalha e duas cores de olhos arregalados.

 

“Você vai ficar bem!” Seu irmão mais novo lhe diz, a voz trêmula de apreensão. “A ambulância já está vindo! Fique comigo!” Há um tom de súplica nessa voz que ele nunca ouviu antes, e a quem exatamente Shouto implora, se a ele ou ao destino, Dabi não sabe dizer. Ele sabe, no entanto, que seu irmão sempre foi um mentiroso horrível. A ajuda não vai chegar a tempo.

 

Ele quer rir. Ele pensa em dizer ao maldito Tomura que estava certo. Ele pensa em Twice e Spinner chorando, em Himiko consolando os dois. Ele pensa em Magne, do outro lado, esperando por ele.

 

Ele pensa em seus irmãos e sua mãe, pela primeira vez em anos: no nervosismo de Fuyumi, em jogar bola com ela e seu outro irmão, na voz de sua mãe quando o punha para dormir, no brilho de admiração nos olhos de Shouto. Eles ainda brilham agora, por outro motivo.

 

Ele quer chorar, se pelas memórias ou por como elas o perseguiram até o fim, nem ele sabe dizer.

 

Dabi faz um último esforço para puxar mais do ar e da fumaça, para encher seus pulmões o suficiente. A voz que sai é baixa, abafada, mas ainda audível, ainda forte o suficiente.

 

“Que pena, Todoroki Shouto.”


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Notas finais do capítulo

If you thought this had a happy ending, you haven't been paying attention. ;* Vejo vocês em março no novo Delipa!