Palavras Desbotadas escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Palavras Desbotadas




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O

BONA CRUX

DIU

DESIDERATA

 

Desde novo que visito o cemitério local com frequência. Tornou-se num hábito desde que aprendi com os mortos o valor da vida.

 

Nenhum conhecimento vital ou científico pode ultrapassar o valor da experiência. Sempre me disseram isso, apesar de eu nunca acreditar, graças àquela querida teimosia tão habitual nos adolescentes. Via o mundo com uns olhos diferentes dos de um Homem mortal. O fim parecia cada vez mais longínquo, ofuscado por momentos de glória e por instantes do mais debochado prazer. A pele não encarquilhava, só enrugava temporariamente. E os cabelos não caíam nem perdiam a sua cor. A velhice não passava de um mito, embora as realidades pessoais mudem com a idade.

Era esta atitude que sustentava os meus dias. Preenchia as manhãs com os atos mais pérfidos que poderia imaginar. Corpos nus entrelaçados em orgiásticos bacanais, humedecidos por um qualquer líquido espiritual de menor importância. Assim vivia, contente, nesse meu contrato faustiano com o hedonismo da juventude. A razão era abolida por factos célebres e nomes famosos, por regras exemplarmente quebradas e vozes dissonantes. O coração e o seu bater faziam eco ao ritmo dos sons externos, induzindo em mim um constante estado de pseudo-esquizofrenia, que tinha em si tanto de perigoso como de sexual. Mas isso era de dia, pois a noite sempre estará reservada às perseguições mais vis do raciocínio humano.

As minhas posses monetárias nunca foram propriamente escassas. As estantes estavam ocupadas pelos mais diversos volumes, desde as ciências naturais às filosofias, desde a geometria de Euclides às reflexões de Oscar Wilde. Entre esses múltiplos tomos, estavam livros raros que os meus antepassados haviam tomado a liberdade de colecionar. Conjuntos de folhas encadernadas, escritas à mão por entidades demasiado paranóicas para produzir uma caligrafia atraente, repousavam par-a-par com belíssimos grimórios de couro. Era a esta biblioteca privada que dedicava os meus minutos de insónia.

Relembro perfeitamente os diagramas a carvão dos manuais antigos e os cálculos matemáticos que encontrava inscritos nos textos do Iluminismo francês. Com vivacidade decorei toda e qualquer fórmula alquímica dos artigos de Flamel, aprendi todos os nomes demoníacos presentes na minha velha edição do Clavicula Salomonis e memorizei as antigas preces dedicadas aos Ancestrais. As estrelas serviam de minha única companhia, nesta jornada individual pelas fontes de sabedoria mais obscuras que me chegassem às mãos.

O esoterismo era para mim uma forma diferente de ciência, uma verdade absoluta descrita de forma distinta. Nenhum dogma aristotélico ou newtoniano se poderia comparar ao fascínio em mim provocado por aqueles nefastos guiões de magia negra. Isto é algo que vos sou obrigado a admitir na minha maior sinceridade. Não vos peço que compreendam a minha loucura, apenas desejo que a consigam verificar como uma faceta desta minha pessoa. E que miserável pessoa sou!

A busca pelas informações mais terríveis custou-me cara, pois foi através dessas obras de literatura clássica que me tornei no monstro que sou. Escritos como o Livro Vermelho e os Manuscritos de Liebert levaram-me à ideia de que a consciência e o mundo que nos rodeia são muito mais do que aquilo que aparentam. Se pudéssemos ver a realidade como ela verdadeiramente é, sentir o mundo como ele verdadeiramente foi criado, transcenderíamos assim o véu da mortalidade. A imortalidade nunca seria um fenómeno do corpo. Segundo as escrituras, sempre seria um talento exclusivo da alma.

A minha necessidade de ver tudo e sentir tudo, todas as paixões desde a mais sensível à mais bruta, levou-me a isto. Foi ela a responsável por tudo, posso jurar-vos. As minhas pesquisas, embrenhado naquelas páginas sujas e poeirentas, iam cada vez mais consumindo a noção de mim próprio enquanto indivíduo. Comecei por dissociar-me da cultura e das tradições sobre as quais a minha nobre família edificou a minha infância. Passei a observar as coisas de forma imparcial, sob um véu de ignorância, desprovido de qualquer raiz de moralidade ou ética. Tornei-me num verdadeiro sábio, dono dos seus pensamentos. Libertei-me das correntes que já a custo me prendiam ao meio social e desliguei-me dos poucos relacionamentos que mantinha. Pararia de me ver a mim próprio através das ações de outros. Já nunca mais criticaria a minha aparência, vendo-me num espelho. A partir daí, ver-me-ia pelos meus próprios olhos, quando sempre me observei pelos olhos de outros. Isto porque o único capaz de compreender os meus sonhos e ânsias, os meus receios e instintos mais recônditos, sou eu. E sempre seria eu.

Mas esse eu que via não era aquele que julgava ser, e por isso digo que perdi a minha noção de individualidade. Sem quaisquer antecedentes, tornara-me num ser diferente. Nada me poderia prender ou equiparar. Tornara-me virtualmente invencível. Só que isso não me bastava. Deixar a vida significava atingir a morte, e era só assim que me sentia: morto. Uma total apatia abatia-se sobre as minhas várias ambições, atormentando cada movimento meu. Uma letargia eterna que me perseguia como o arrepiante assobio de uma flauta, assobio esse que sempre se confundia com o sopro do vento.

Não era isso que eu desejava, eu desejava mais. Por isso, continuei a procurar. Mergulhei o mais fundo possível na leitura de excertos heréticos. Incluem-se na lista alguns fragmentos dos diários de John Dee e dos tratados de Platão sobre a natureza da alma. Nada travaria o meu desenvolvimento espiritual. Acontecesse o que acontecesse, lutaria por transcender essa normalidade enfadonha tão inerente ao conceito de humanidade. Assim o disse e assim o fiz.

Longas horas passei aprisionado nas mais tortuosas citações, repetindo-as para mim dias a fio, murmurando-as que nem um louco numa tentativa de as reter na memória. Copiei determinados símbolos vezes e vezes sem conta, para no futuro ser capaz de invocar com grande precisão cada um dos seus ângulos e curvas. Certas runas que me apareciam despertavam em mim um certo grau de inspiração difícil de definir. Essas, registava-as no meu próprio braço, utilizando uma agulha para criar cicatrizes tão idênticas ao caractere original quanto possível. Quando a pele, por estar repleta de ferimentos encarnados, deixou de ser capaz de portar tamanho dicionário de simbologia, tive de recorrer a medidas drásticas: a fina agulha permitiu-me marcar com rigor e precisão os restantes símbolos na superfície das minhas córneas.

A minha memória tornou-se num extenso reservatório de material lícito e ilícito, conhecido e desconhecido, umas vezes religioso e outras anti-religião. Toda a informação, seja ela moderna ou primitiva, acumulada num único cérebro mortal. Pior ainda: passei a tomar perfeita consciência de que as noções de identidade e indivíduo são ilusórias. Partilhava a minha existência com cada um dos sistemas orgânicos que me compõem, com cada uma das minhas milhares de células. Via-me obrigado a tomar controlo de cada uma delas, voluntariamente e em simultâneo. Deixei de me entender como um todo integrado. Não somos indivíduos, somos colónias.

Achei fascinante não ter enlouquecido logo, ou assim pareceu-me. Ocorre que estas experiências acabaram por me mudar em variados pontos, não só intelectualmente, e isso foi algo que me era impossível de prever.

A minha sensibilidade para as coisas do mundo viu-se alterada de um dia para o outro. A música dos pássaros, esvoaçando ignorantes lá no alto, parecia-me cada vez mais próxima. O inconstante movimento dos ratos sobre pequenas poças chegava-me aos ouvidos, estivesse onde estivesse, mesmo se os malditos roedores estivessem a procriar a quilómetros de distância. Os meus olhos ardiam com a luminosidade, induzindo uma comichão tão horrenda que, algumas vezes, me entretinha com a ideia de os arrancar. Nos dias de verão, temia que os globos oculares fervessem no seu próprio fluido. Não conseguia comer, pois uma simples gota de limão sabia como um corte direto na ponta da minha língua. Para além disso, cheguei ao ponto de desistir da ação, mesmo a mais básica, pois o toque tornara-se para mim num exasperante tormento. Experienciava os braços da minha poltrona, na palma das minhas mãos, como se um enorme réptil, revestido de um padrão de escamas húmidas, me cobrisse completamente o corpo. Abraçado pela goela de uma peçonhenta anaconda, os caninos aproximavam-se e o maxilar estendia-se. A água nas minhas costas assemelhava-se ao gástrico suco das profundezas do seu bucho, a luz queimando-me as retinas ao efeito que o mais poderoso dos ácidos tem sobre a epiderme humana.

Os meus sentidos viram-se aprimorados pelo meu estudo excessivo. Alguns culparam uma sobrexcitação nervosa pela minha ridícula aflição. Para os médicos, eram literalmente inexplicáveis estas sensações grosseiras que me iam atormentando aos poucos. O que eu sei é que já não via o mundo como antigamente o contemplava: um oceano de prazeres ocultos e ainda por experienciar. Passei a vê-lo em todos os planos possíveis. Por vezes, julgava-me estar num lugar bastante diferente daquele em que estava. Perdia-me em sonhos, o que me levou à conclusão de que esse estado onírico que consideramos frívolo é nada mais nada menos que outro plano de existência, um outro folheto desta nossa realidade. A escrita comum era-me agora impossível de traduzir, miríades de sentimentos e paixões fechadas nas mesmas folhas de papel. Contudo, símbolos antigos, altos-relevos e hieróglifos de períodos já esquecidos da História reorganizavam-se perante mim, adquirindo significados nunca antes entendidos por arqueólogos conceituados. A minha mente separou-se da sua prisão corpórea. Passou a viajar ininterruptamente para a frente e para trás, no espaço e no tempo, ensinando-me de forma involuntária segredos que nunca ousaria revelar, nem ao menos sensível dos meus leitores.

Acontece que o universo não é o que julgamos, e eu vi tanto o seu início como o seu fim. Os orgulhosos cientistas sentiriam tamanha surpresa se conhecessem aquilo que me chega às mãos e aos pesadelos, dessas épocas tão distantes deste nosso período presente.

Percebi que também a mente em si não é como a imaginamos. Como disse, a minha passou a viajar por aí involuntariamente, independente dos meus comandos. A mente não sou eu, é uma parte de mim, como um fígado ou um pâncreas. O consciente não decide, a mente decide. O consciente é apenas um mero observador das decisões inconscientes. Compreendo que seja algo difícil de visionar, mas foi esta a verdade que percecionei. A nossa definição de livre-arbítrio está errada. Somos conjunções de microscópicos reservatórios de plasma, que interagem uns com os outros com vista à nossa sobrevivência. Não somos especiais. Os animais menores vivem facilmente sem uma consciência complexa. Não precisamos da personalidade para agir. Agimos porque o cérebro assim o pretende, e a personalidade trata-se de um bónus.

Não seria novidade dizer que comecei a tornar-me impaciente na espera pela minha morte. A questão é que, no estado em que estou, o meu corpo pode morrer, mas o meu espírito continuará a absorver os conhecimentos do mundo. Foi isso que vim a descobrir nessas minhas frequentes visitas ao cemitério local. O que antes era uma visita semanal por respeito aos meus antecessores, o único respeito pela humanidade que ainda me povoava o coração, passou a ser um amaldiçoado festim. A vida dos mortos era para mim um livro aberto. Cada cadáver partilhava comigo os seus compromissos mais profundos com esta dimensão física que recusavam deixar. Haviam transcendido. Após a morte, haviam recusado a salvação. Mas eu vi tudo. Não existe salvação. Aquele era o inevitável futuro de tudo e todos. O meu destino, o destino de todos os Homens, era a cruz.            

O bona crux, diu desiderata…

Comecei a visitar cada vez mais os sepulcros desgastados, isto até desistir de viver em minha casa. Os outros julgaram-me louco quando tomei essa decisão, mas eu preferia dormir ali, ao lado dos muitos que, como eu, transcendiam as leis naturais do espaço-tempo. Compartilhávamos histórias. A dor que as sensações me infligiam era atenuada pela memória daqueles que já sofreram tanto ou mais que eu.

Eventualmente, os meus olhos foram secando. Na minha visão, as palavras que encontrava nos livros, minhas amigas durante tantos anos, já não passavam de rabiscos. Palavras desbotadas, com tantos significados possíveis que nem valia a pena pensar no assunto. Pensar muito não é desejável. Não devemos procurar mais do que aquilo que nos está reservado, nem devemos desvendar mistérios que foram feitos para ser mistérios. Foi essa a lição que aprendi após toda esta desventura em que mergulhei. Amaldiçoei-me a mim próprio. Desejar mais do que aquilo que temos não é pecado. Enquanto possuidores de uma vitalidade efémera, precisamos de objetivos para nos mantermos vivos. A questão é desejar demasiado. Desejar demais é garantidamente um bilhete para os bastidores infernais, disso vos certifico, pois sei que, no Inferno, já tenho lugar marcado na primeira fila.

Aprendam com os meus erros, amigos! A língua secou-me de tanto saborear e os tímpanos romperam de tanto ouvir. A pele foi ficando cada vez mais pútrida numa espécie de necrose. Mas não mereço piedade. Fui eu o responsável por tudo isto. Não foi Deus que me matou, fui eu.

Não foi há assim tanto tempo que deixei de almejar o meu fim. Isso aconteceu porque, pensando seriamente no assunto, analisando o meu estado como ele era, a morte nunca seria digna de ambição. Quando o momento chegasse, quando morresse, sentiria a morte como nunca antes alguém sentiu. Experienciaria ou o derradeiro dos prazeres ou a suprema dor quando a minha carne se descolasse dos ossos, quando as pupilas se me revirassem para cima e a respiração parasse. Sentiria cada órgão travando o seu funcionamento, cada gota de sangue perdendo a sua cor, cada espasmo muscular como um impacto divino. Vivi conhecendo a vida como ninguém, e finalmente morreria experienciado o falecimento da forma mais completa possível. Que honra a minha! E que ironia!

Em busca dos mistérios da vida, vim a aprender o segredo da morte.


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