MALANDRA escrita por Bruna Coelho


Capítulo 3
Capítulo 3 - A não espiã




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Há dois quarteirões da nossa casa moravam os irmãos que eu tinha que conhecer. Então, decidi dar uma inspecionada no território durante uma corrida básica, discrição era comigo mesmo. Coloquei um short e um top de ginástica. Calcei meu tênis preto trevoso, prendi o meu cabelo e estava quase pronta, faltava apenas meu par de fones desaparecidos. Eu até gritaria pela governanta, mas eu ainda não sabia o nome dela. Então, fui obrigada a descer as escadas e procurá-la, ela aspirava o tapete da sala de visitas com cautela.

— É, oi, licença... Eu ainda não sei o nome - falei um pouco alto pra chamar atenção dela, afinal o barulho do eletrodoméstico era ensurdecedor.

— Marta - ela respondeu um tanto nervosa depois de desligar o aparelho.

— Calma, não precisa ter medo de mim, eu sou de boa- tentei tranquilizar ela enquanto revirava os olhos. Eu tinha só um jeito peculiar, mas sempre tratei as pessoas bem, com acidez, mas bem. - você sabe onde estão meus fones de ouvido? - perguntei em seguida pra quebrar o silêncio entre nós.

— Sei sim, senhorita, vou te mostrar onde fica - falou ela tomando a dianteira e subindo para o segundo andar em direção ao meu quarto.

— Marta, por favor, é só Clara - pedi a ela. Eu odiava tanto essas formalidades. Sério, eu podia muito bem viver sem elas, não fazia questão nenhuma. Meus pais que eram um saco pra isso. E eu nem entendia o motivo e nem queria entender porque. Depois de um tempo eles se acostumaram por eu me desprender de todas essas formalidades e pararam de se importar. - Sério, meus pais não vão achar ruim se você me chamar de Clara... eu te prometo, eles estão acostumados.

— Tudo bem, Clara - ela falou me dando uma amostra de um sorriso sincero e muito reconfortante. Ela tinha um jeito mãezona, daquelas que você pode correr e pedir um colo. Marta entrou no meu quarto, foi para o meu closet, parou em frente a uma coluna de gavetas e abriu uma bem a altura do seu quadril. Então me explicou: - Tudo o que você precisar relacionado a exercícios físicos está aqui. Seus fones, braçadeira, porta objeto, esse negócio que não sei o que... Enfim, está tudo nessa gaveta, mas qualquer dúvida é só me chamar

— Meu Deus!!!!! Que organização. Sério, nunca ninguém foi tão meticulosa quanto você, muito obrigada mesmo!!! Você arrasou demais, Marta!!!! PISA MENOS!!!!! - elogiei verdadeiramente. Até bati palma para mulher. Sério, nunca ninguém havia arrumado a minha mudança tão bem. Tão meticulosamente organizado. Eu ainda estava meio perdida nas minhas coisas, mas tudo parecia ter uma lógica ali.

— Não fiz mais do que a minha obrigação. Agora, se não precisar de mais nada, eu vou descer para terminar de arrumar a sala - ela falou e permaneceu por um segundo no cômodo esperando a minha resposta antes de tomar o seu rumo.

— Não fez não, você fez muito mais, obrigada de verdade... - liberei a mulher. Então, peguei o meu fone, minha braçadeira. Retornei ao andar debaixo, peguei uma água gelada na cozinha e parti de volta para a minha vida fitness.

O dia estava bem quente e o sol de fritar neurônios. Mas eu mantive meu ritmo. As casas do bairro era incrivelmente grandes e bonitas, mas não era o bairro mais glamuroso que já morei. Estava bem longe de ser, na verdade, era um dos piorzinho, minha mãe deveria estar para morrer. Algumas das residências eram mais abertas, como a minha, com um grande jardim na frente. Outras eram completamente fechadas. Davam total privacidade para seus moradores. A casa do gêmeos era dessas que você não conseguia dar uma espiadinha sequer. Eu tinha calculado o tempo perfeitamente para cruzar com um dos gêmeos quando passasse pela frente da casa, mas não havia nenhum sinal do garoto. Quando voltei, 15 minutos depois, lá estava Ariel. Atrasado. Eu esperava que ele fosse um pouco mais estiloso, julgando seu instagram, mas seu estilo era do tipo bem largadão. Incrível como todos nessa vizinhança tinham uma cara de maconheiro. Parecia até karma. Ela andava com o corpo todo solto e as duas mãos no bolso. Quando meu caminho estava para cruzar com o dele, desacelerei. Lancei-o o sorriso mais sedutor que consegui, então o ultrapassei. Seguimos caminhos opostos. Mas pude ver que sobre o ombro que ele olhou para trás por um segundo para me observar. Como saber se ele havia sido fisgado? Bom, era só eu correr no dia seguinte na mesma hora e ver se nossos destinos iriam se cruzar "despretensiosamente" uma outra vez.

Sabe, o que Mel tinha de chata e sem graça, essa família parecia ter de interessante. Sério. Eu estava realmente empolgada para conhecê-los. Quando eu já estava na minha reta final, quase chegando em casa... Foi que eu deparei-me com a cena mais surpreendente de toda história de golpes até hoje. Tinha duas garotas encostadas de forma bem íntima no carvalho do jardim da casa de Mel. E UMA DELAS ERA A PRÓPRIA MEL. O QUE ERA AQUILO? Eu parei na frente da casa da garota e fiquei observando descaradamente boquiaberta. Eu fiquei passada. Uma estava na frente da outra e elas estavam de mãos dadas. Eu nem disfarcei. Então, fui notada. Mel me encarou e mexeu a cabeça como quem quer dizer "o que que foi?". E eu só abrir os braços querendo dizer "que porra é essa?". E ela me repreendeu com mais um sinal de cabeça. Então, eu corri de volta para dentro de casa e a nossa conversa silenciosa terminou assim. Corri para o escritório do meu pai. Abri o seu cofre de documentos e puxei o arquivo da garota. Solteira. Heterossexual. Li passando o dedo por cima para confirmar. EU AINDA NÃO ESTAVA LOUCA. E aquele era o pior arquivo que eu já havia visto na minha vida. Tudo parecia errado. Nada sobre o medo de sangue. Nada sobre estar com uma garota. NADA SOBRE GOSTAR DE GAROTAS. Tomei uma ducha correndo. Vesti meu biquini vintage. Peguei meu óculos retro. E fui para a piscina com o arquivo. No caminho, pedi para que Marta me providenciasse um Gin tônica, ela ficou meio relutante no começo, mas a convenci de fazer. Sentei-me na espreguiçadeira e fiquei lá aproveitando o dia ensolarado lendo e relendo aquelas páginas. Tinha alguma coisa muito errada ali, foi quando, depois de vários drinks, ouvi o barulho de algo se mexendo por entre o muro verde. Fechei o arquivo correndo e o coloquei debaixo da almofada da espreguiçadeira. Na mesinha do meu lado, debaixo do guarda sol, estava minha taça, agarrei-a e fui a origem de tal barulho. Então, deparei-me com a cena de Mel pulando o mundo. Tomei um gole imenso da minha bebida pelo canudinho e revirei os olhos incrédula. Cara, ela era ridiculamente irritante.

— Nós temos campainha, você sabia? É um botão que você aperta e alguém vai abrir para você entrar - falei um tanto debochada. Ela era louca. E isso era outra informação que não tinha no arquivo. Que menina perturbada. Eu não merecia isso. Voltamos ao ponto de que Melissa não fazia sentido nenhum...

— Acontece que aí perde toda a emoção - ela falou rindo já retornando ao chão.

— Nossa, suuuper emocionante invadir a casa do vizinho — falei caçoando da garota — Dá próxima vez experimenta assaltar um banco — completei dando as costas para a garota e deixando ela sozinha sem me importar. Sério, eu estava sem paciência para ela naquela tarde. Ela correu atrás de mim. E sentou na espreguiçadeira do lado da minha.

— Quer? — perguntei apontando para jarra.

— O que é isso? — ela perguntou em resposta.

— E - MO - ÇÃO — falei pausadamente e de forma um tanto irritante na intenção de provocá-la, mas do jeito que a garota parecia zen, tirar ela do sério seria uma missão um tanto difícil.

— Fala sério! — retrucou ela bufando.

— Estou falando... Você não gosta de emoção!? Então, experimenta e descobre — o jeito que eu falei acabou saindo de uma forma um tanto sedutora que não era a minha intenção e eu acabei ficando sem graça porque, né. Ela gostava de garotas e ia parecer que eu estava afim dela. Então, dei um jeito de corrigir correndo a merda que eu tinha feito: — É Gin Tonica

— E seus pais te deixam beber? — ela franziu a sobrancelha bem delineada incrédula. Ai, menores de idade, parece que ficam chocados que tudo. Mas eu fiz a linha Gandhi e me prometi não estressar.

— E por que não deixariam? — perguntei em resposta. Virei todo o resto do líquido que eu tinha acabado de me servir e enchi-o novamente. Ela só ficou me observando.

— Por causa da sua idade, talvez, por ser dia de semana — ela falou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Acho que a menina zen estava mostrando suas garrinhas e não era assim tão zen. Pelo menos, não comigo.

— Digamos que eu sou um pouquinho mais velha do que você pensa — revelei um tanto misteriosa piscando apenas um olho para ela.

— O quanto mais velha? — ela perguntou deitando um pouco a cabeça e serrando um pouco seus olhos grandes em sinal de curiosidade.

— Só mais velha! — sai pela tangente. Ainda não estava acostumada com a minha nova idade.

— Como assim? — ela não entendeu absolutamente nada. Eu só era uma menina de "18 anos" cursando o terceiro ano pela milésima vez. Uma maior de idade perdida num monte de crianças.

— Eu sou um pouquinho atrasada na escola — falei o óbvio fazendo um sinal de pequeno com o indicador e o dedão

— Uma sabe tudo atrasada na escola? — ela ficou ainda mais confusa. Eu estava começando a pensar que a investigada dali era eu e não ela. O jogo estava começando a virar para mim.

— Ora, ora, temos uma Sherlock Holmes entre nós — tentei virar o jogo novamente. Se tem uma coisa que eu odeio mais do que Melissa, é perder o controle para ela. Como ela estava conseguindo fazer isso comigo? Ninguém jamais conseguiu...

— Não sou eu que fico espionando os outros — ela retornou rapidíssima, quase como um reflexo de auto defesa.

— Falou a menina que pulou o muro para chegar aqui... E eu não estava espionando. Não sei se você viu, mas existe uma linha bem tênue entre espionar e olhar descaradamente. No caso, eu estava fazendo a segunda opção... Eu não sabia que você... beijava meninas — eu fui o mais cínica que uma pessoa consegue ser. Quase desenhando para ela. Utilizando toda acidez que eu tinha. Tanta acidez que eu não sei como ela não derreteu bem ali na minha frente. Eu estava praticamente cuspindo ácido sulfúrico a cada palavra.

— Nunca viu uma menina ficar com outra é? — ela estava toda armada para problematizar em cima de mim e vir com um papo militante e eu só revirei os olhos.

— Não só vi, como já beijei! Só nunca imaginei que você curtia garotas — disse como se não fosse grandes coisas. Realmente não era. Eu só queria ter descoberto de outra forma, não queria ser pega de surpresa, mas os informantes do meu pai vacilaram.

— Algo contra?

— Jamais... "inclusive tenho amigos que são" — zoei dizendo a clássica frase carregada de preconceito. Claro que eu não tinha nada contra. Pelo amor de Deus, estamos no século XXI. Que tipo de pessoa eu seria? Então, completei o que disse com um dado sobre mim que era a mais pura verdade: — Meu amor, eu me relaciono com pessoas e não gêneros, então não vem tentar me pintar de monstra preconceituosas que não vai colar

— Então você só é dessas pervertidas que fica observando os outros, Voyeur que chama — ela me zoou com um risinho bem contido.

— Francamente, vizinha, acho que já deu a nossa dose uma de outra por hoje, né... Eu não bebi o suficiente pra te aguentar e olha... a bebida já está acabando. Então, pode ir indo que já passou da hora de criança voltar para a casa — o álcool já tinha me subido um pouco na cabeça, não que eu seja fraca, mas eu já estava no nível super sincera e sem paciência para pessoas como ela.

— Melhor mesmo — Mel se levantou e foi caminhando para a minha casa e eu permaneci imóvel tomando minha bebida pelo canudinho. Depois de perceber que eu não havia me manifestado, ela virou-se para mim com um jogar de cabelo e me perguntou: — Você não vai me levar até a porta?

— Acho que você pode voltar de onde veio... é mais emocionante — finalmente consegui tirar a garota do sério e ela me deixou marchando de raiva. Ela estava com tanta raiva que custou para conseguir escalar o muro verde novamente, e eu só fiquei na espreguiçadeira morrendo de rir. Assim que ela partiu, eu me levantei. Peguei a pasta e corri para dentro de casa na velocidade da luz. O sol já estava para se pôr e meu pai já havia chegado. Sai procurando ele por todos os cômodos, de biquíni mesmo, estava putíssima. Foi quando cruzei com ele deixando sua maleta sobre a mesa do escritório. Entrei como um furacão. Joguei dossiê com toda minha força em cima da mesa, os papéis até deram um pulo.

— O que foi agora, Clara? — ele perguntou revirando os olhos. Ele devia ter tido um dia péssimo, mas eu estava pouco me importando.

— "O que foi Clara?" Foi que essa merda que você me deu está toda errada... Isso que foi! Como você quer que eu faça alguma coisa sendo que os seus empregados estão fazendo um serviço de bosta pra mim? Cada dia que eu passa, eu estou tendo uma surpresa. Uma atrás da outra. Depois dá tudo errado e a culpa é da Clara, como sempre — falei impaciente andando de um lado para o outro feito barata tonta. 

— Eu vou pedir para revisarem o documento e te prepararem um novo... Agora se controla porque tem outras pessoas na casa e elas não são obrigadas a ouvir seus showszinhos. Nem tudo é do jeito que você quer - ele mandou arregalando os olhos em um sinal claro de: "PARA DE ESPETÁCULO PORQUE VOCÊ VAI COMPROMETER NOSSO PLANO".

— ACHO BOM! ACHO BOM! E dessa vez eu espero que o documento esteja certo — falei dando as costas pro meu pai e deixando ele sozinho no escritório.


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Notas finais do capítulo

GENTE, ALGUÉM TEM ALGO A DIZER? Nunca pedi nada pra vocês... Eai, estão gostando???



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