Máfia em família escrita por A garota do Darcy


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

* Ao decorrer da história haverá palavras em italiano que serão identificadas facilmente por números sobrescritos nas palavras que estarão traduzidas nas notas finais. Não usei palavras muito difíceis de serem traduzidas na nossa língua, mas quem tiver duvida desce, lê e volta para a história! *

Escrevi essa história com muito carinho, aproveitem!
Ah! Não esquece de ler as notas finais e me dá um oi nos comentários ;)



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Não importava com quanta força eu inalava, o ar parecia insuficiente para os meus pulmões. A corrida incessante entre os intermináveis corredores de contentores marítimos estava cobrando seu preço. Esse parecia um daqueles sonhos em que você está correndo e correndo, e apesar de saber que não chegará a lugar nenhum, mesmo assim continua porque é a única coisa possível naquele momento. Quem me dera estar em minha cama. Sabia que estava muito bem acordada, não só porque o som dos últimos três tiros me fizeram tropeçar de susto, ao invés de me acordarem, mas porque eu não dormia à pelo menos 48 horas, e também não via a minha própria cama fazia o dobro desse tempo.

— Figlio di puttana!(1) — Meu xingamento saiu abafado pelo som de mais tiros.

Dobrei mais uma fileira de contentores e parei para me esconder atrás de outra pilha. "Sua respiração pesada te entregaria facilmente se esse pique-esconde fosse em um lugar fechado. Controle-se garota", podia ouvir claramente voz do meu pai me dizer em meus pensamentos. Uma voz que eu nunca mais ouviria a não ser dentro de minhas recordações.

Em contrapartida, vozes muito reais berravam próximas, mas o latejar forte do tiro que eu tinha levado de raspão em meu braço me impedia de concentrar-me no mundo ao meu redor. Tomei folego rapidamente e rasguei parte de baixo da minha blusa preta, deixando exposto o meu colete a prova de balas em baixo dela. Segurei uma parte da tira com a boca enquanto amarava com o braço bom, fazendo um torniquete, impedindo que mais sangue escorresse na esperança que diminuísse pelo menos um pouco a dor.

— Nós estamos com o seu irmão Senhorita Riazzo, esse é o fim da linha! — vociferou uma voz feminina a plenos pulmões, soando em melhores condições do que eu estava naquele momento.

Respirei fundo tentando seguir as ordens do meu pai imaginário. É óbvio que pegaram o magrela do Charlie, ele sempre foi um peso morto e talvez fosse melhor assim. Ele mal estava envolvido com o negócio da sua mais nova família, a qual só chegara a poucos meses. Seria fácil livra-lo de quaisquer acusações porque ele não estava envolvido em nada, apenas caiu no olho do furacão ao entrar na hora errada para a família Riazzo. Diferente de mim, que estava envolvida até o meu último fio de cabelo, o qual esteve muito ressecado e cheio de sangue essa semana.

Olhei ao redor, buscando possíveis pontos de fuga e me frustrando em seguida. Ir as docas era para ser um dos muitos planos de fuga pré-planejados com antecedência para momentos como esse ao qual não se tinha tempo para pensar. Nesse em específico, as coordenadas eram que iriamos até aqui e pegaríamos uma embarcação que nos levaria até a Geórgia, depois contornaríamos a Florida e seguiríamos de moto, atravessando os estados até o Arizona, onde o tio Joe nos abrigaria. Mas, é claro, não deu certo. Como tudo que parecia ruir nesses últimos dias.

O som do helicóptero da polícia estava muito mais alto agora. Sua luz incessante caçava algo a pelo menos quinze metros à frente, porém sem o sucesso que eu obtive com os meus olhos adaptados a penumbra. Percebi nas sombras de um enorme pilha caixas de ferro gigantes, uma figura avantajada que se comprimia contra um contentor. Tirei minha arma da cintura com agilidade e me preparei, ele ainda não tinha me visto.

Respirei fundo mais uma vez e segurei forte minha Makarov preta. Não era minha arma favorita, mas não pude sair com muito de casa. O helicóptero passou mais perto do meu alvo dessa vez, não o suficiente para pega-lo, mas o suficiente para fazer sumir as sombras de seu rosto por um segundo, quase fazendo meu coração saltar peito a fora. Kane me viu também e tentava gesticular com as mãos, uma delas também continha uma arma. Ele apontava incessantemente para a esquerda e para mim, e fazia o número dois com os dedos. Entendi o que ele queria. Eu podia ver a fumaça de um navio cargueiro muito próximo de nós, apesar de Kane estar mais a frente, ele estava pedindo para que eu fosse em frente enquanto ele me dava cobertura, como sempre.

As vozes dos policiais estavam abafadas pelo barulho das hélices, mas estavam próximas. Me arrastei com cuidado para checar a contraguarda, vendo dois policiais pela direita, mais próximos de Kane do que eu gostaria. Gesticulei o que eu vi para meu parceiro e ele apenas assentiu. Se eu fosse de rezar, rezaria para que ele estivesse maquinando algo naquela mente diabólica que nos tirasse daquele lugar com vida.

Segui as suas ordens e corri para mais uma fileira de contentores, e depois outra. Olhei para Kane, que continuava no mesmo lugar, ele apontou para mais uma fileira. Corri mais uma vez para onde ele me mandou e agora eu estava de frente para a proa de uma enorme embarcação cinza. Logo ali abaixo, a água negra batia com força contra o aço, nosso aguardado destino. Ou quase isso. Com a perseguição, tivemos que correr para longe do barco que pegaríamos, o que nos deixou encurralados.

Olhei para onde Kane ainda estava parado, ele devolveu meu olhar e assentiu, então começou a correr, ultrapassando o primeiro obstáculo, mas não indo muito longe.

— Solta a arma e deita no chão! Deita no chão! — gritou um policial para Kane.

Eram três contra um, mas eu não deixaria ele enfrentar essa sozinho. Tínhamos chance se ele pegasse o mais próximo a dele e eu me juntasse ao grupo atirando por trás. Kane olhou de soslaio para mim e balançou a cabeça minimamente em negativo, tentando me impedir. Eu sabia que ele iria se entregar se eu tivesse uma chance, mas eu não estava disposta a seguir seu plano dessa vez. Eu não iria a nenhum lugar sem ele. Kane era minha babá, meu professor e único amigo no momento.

Dei um tiro de alerta e os guardas viraram na minha direção, como esperado. Quase pude ouvir Kane bufar. Com certeza ele me faria ouvir um sermão mais tarde, e eu esperava que quando essa hora chegasse, nós estaríamos bem longe dali e a salvo. Kane seguiu meu plano silencioso, derrubando um dos policiais e apontando sua arma para o segundo, eu fiquei com o terceiro.

— Abaixe a arma seus desgraçados, e deitem no chão! — Me deliciei com cada palavra, enquanto me aproximava devagar. Era uma reviravolta daquelas, e eu adorava uma fazer cena.

— Que engraçado — Uma voz masculina, vinda da escuridão do meu lado esquerdo, fez minha espinha congelar. — Eu ia dizer a mesma coisa. Larguem as armas.

Virei-me para onde o policial saía das sombras, se aproximando lentamente de mim. Fui recuando aos poucos para trás enquanto alternava minha mira entre o primeiro policial e o novo. Olhei rapidamente para Kane em busca de alguma carta na manga, mas a única coisa que ele fez foi empinar o queixo para a frente, na direção da água. Percorrer a pequena distância e me jogar na água poderia ser a minha única salvação, mas que preço custaria a Kane?

— Boa garota — disse com sarcasmo o policial que veio da esquerda, quando coloquei a arma no chão e a chutei para longe.

Os canas então me imobilizaram no chão e fizeram o mesmo com Kane. Agora, nós estávamos muito, muito ferrados.

 

 

— Eu não acredito que você vai insistir mesmo nesse chapéu idiota. Sério, fratello mio(2), isso é ridículo! — Nate falou atrás de mim, vendo-o se aproximar.

— Aposta é aposta cara, e eu sou um homem honrado. — Shade me lançou uma piscadela e foi para onde Nate estava escorado na cortina de camurça verde musgo do escritório do papai.

Segurei o riso. Ele realmente estava ridículo. A cabeça do Bisavô Nicola devia ter sido realmente grande, pois mesmo na cabeça de um adolescente cabeçudo como o meu irmão, o velho chapéu Panamá estava visivelmente muito folgado.

Cocei meu nariz, ele estava me matando desde ontem à tarde, quando eu e Shade subimos até o sótão para achar aquele trapo de couro velho.

— Vocês são todos idiotas. Esse chapéu não é amaldiçoado, ele só está velho e empoeirado por falta de uso, assim como os neurônios de vocês três. — disse Will ao entrar porta a dentro no escritório.

Ele passou para ficar ao lado de Shade, dando um tapa na cabeça do mesmo e fazendo o chapéu voar da cabeça do garoto em mais um de seus ataques de mal humor repentino.

Will estava agindo estranho desde que completou seus 18 anos, mas ninguém falava nada sobre isso. Pelo menos não abertamente. Perguntei ao meu pai o que estava errado com ele a algumas semanas atrás. Meu pai sempre tem resposta para tudo, ele não é o de pessoa que aceitava um simples “porque sim”, nem muito menos dava esse tipo de resposta e eu amava isso nele. No entanto a resposta não me foi satisfatória dessa vez; papai apenas me disse que Will estava crescendo, e que era uma fase difícil aquela em que um menino não era mais só um menino, a fase em que tem que tomar decisões de homem, o que, na minha humilde opinião, não era motivo de agir como um idiota completo com todo mundo.

— Ah, cala a boca, Will! Você sabe as histórias do que acontece com aquele que usa o chapéu do velho Bisnonno(3) Nicola. Essa é uma verdadeira prova de resistência! — Shade tinha um misto de assombro e orgulho na voz.

— Claro. Quem passar 24 horas com o chapéu mofado e não morrer em quinze dias, será o verdadeiro merecedor do legado Riazzo — Will bufou com desdém. — Você terá sorte se não morrer por causa do mofo, isso sim!

— Bem, você sabe o que aconteceu com Percival e Leopold — rebati, sorrindo ao cruzando os braços e girar meu corpo sem sair da minha mesa, para encara-lo.

Will olhou para mim pela primeira vez desde que entrou no escritório de nosso pai. Ele anda me ignorando ultimamente, mas eu tinha planos de não deixar isso barato.

— Isso é coisa sua não é, pirralha? — Ele se aproximou de onde eu estava sentada, o suficiente para invadir minha zona de conforto. Mesmo estando em um lugar alto, eu irmão mais velho era bem maior do que eu e ele usava isso a seu favor. No entanto, eu o conhecia a 12 anos e já o tinha visto em cenas comprometedoras o suficiente para não me intimidar com mais um dos seus shows.

— Você sai por aí colocando banca pra cima de todos — Will apontou para mim de cima a baixo, sentada na mesa de escritório do papai. — Mas a verdade é que você não tem amigos, porque ninguém suporta como é mimada ou como você é essa louca megalomaníaca mirim. Os únicos que te aguentam, e fazem isso por obrigação, são esses imbecis atrás de mim, e mesmo assim você ainda fica instigando esses dois cabeças ocas com besteiras, tirando proveito do medo deles. A verdade é que vocês dois são iguaizinhos mesmo, mas você ainda consegue ser pior porque é apenas uma criança, quer dizer como você conseguiu ficar assim garota?

Minha garganta se fechou enquanto meu nariz queimava. Engoli o bolo de minhas emoções que ameaçavam transbordar por todas as superfícies possíveis. Eu não chorava na frende de alguém a muito tempo e com certeza não daria a Will esse prazer.

— Mileia — Nate me chamou. Ignorei-o.

— Já acabou? Você tem certeza de que era só isso? Apenas vai me acusar de ser uma louca idiota e ficar aí parado, me encarando?

Umedeci os lábios e ofereci um sorriso com simpático para meu irmão. Então, tão rápido quanto veio, o sorriso se foi, e eu o pegue pela gola de sua jaqueta de couro marrom e puxei-o com força para mais perto ainda, tão próximo que podia sentir sua respiração acelerada em mim.

— Para a sua sorte, William, hoje eu tirei o dia para fazer idiotices — rosnei, encarando as pupilas dilatadas em seus olhos, tão escuros quanto os meus.

A tensão palpável no ar se perdurou apenas por segundos, pois logo deu lugar ao susto que se seguiu com altas e sonoras palmas pausada, que pegou desprevinido todos os adolescentes na sala.

— Que show interessante — contemplou Matteo Riazzo ao entrar em seu gabinete, a passos lentos e teatrais. — Foi muita coragem, William. Muitos não teriam coragem de falar assim com Mia Bambina(4).

Papai olhou de Will para mim. Soltei meu irmão, que se afastou ajeitando sua roupa. Atrás dele havia dois homens, um deles com um grande equipamento fotográfico, como esperado. Papai apontou para onde o fotografo deveria se posicionar, então seguiu sorrindo na direção de Will e segurou a gravata preta de seu filho mais velho, ajeitando seu nó.

— Sabe que eu não gosto que briguem entre si, não sabem? Família deve continuar unida e devem se proteger, não ferir os sentimentos um dos outros falando bobagens. Unidos somos mais fortes. — Meu pai apertava a gravata mais e mais enquanto encarava Will nos olhos, mas sabia que nós o escutávamos. Papai então o soltou e se virou para mim. —Aproposito, bambina, saia de cima da minha mesa.

— Eu já disse que não gosto que me chame de bambina. — Cruzei os braços e permaneci aonde estava, encarando meu pai.

— E eu já disse que não gosto quando você faz meus móveis de assento — rebateu.

Ele parou na minha frente e tocou com o indicador no meu nariz, um toque familiar e acolhedor, só nosso. Senti meus lábios deslizar nos cantos levemente. Abri os braços e papai me tirou de sua mesa pelos braços, me rodando no ar. Quando me parou no chão, cambaleei levemente e esbarrei em alguém atrás de mim. Virei-me para encarar a figura.

Bambina mia(4), esse é Kane, seu novo professor de boas maneiras. Não o mate, signorina(5)! — Papai deu uma piscadela e foi até meus irmãos, ainda imóveis encostados na cortina. Eles até poderiam passar por despreocupados, se não fosse a postura reta demais para dois garotos franzinos na adolescência. — Esses são os seus melhores trajes? Que gravata roxa é essa Nate? E onde achou esse chapéu velho, Shade? Já faz tempo que não vejo essa velharia.

Ele tirou o chapéu da cabeça de Shade e levo-o a sua, depois de retirar o seu próprio, de coro negro e cetim.

— É ameixa Babbo(6), e você não disse exatamente “melhores trajes”, só disse para nos vestirmos bem. — Nate falou.

Ignorando a conversas boba dos garotos, só me restou encarar o homem silencioso a minha frente. Meu novo professor. Resolvi sair da escola no final do mês passado, afinal não fazia sentido nenhum ir para uma instituição dominada pelos dogmas e alienações do governo e cheios de crianças que me odiavam e que eu odiava de volta. Usei esses fatos mais a ameaça de esfaquear o primeiro aluno que eu visse na segunda de manhã se meu pai me obrigasse a ir para a escola. Não foi uma briga fácil. Papà(6) ameaçou me matar primeiro antes que eu fosse presa se fizesse isso, mas eu tinha certeza de que ele não me mataria de verdade — pelo menos, era o que eu esperava —, já ele não tinha certeza se eu não faria ou não o que disse. Então chegamos a um acordo de ter um tutor particular, porque segundo ele: “um Riazzo burro não servia para nada.”

A primeira coisa que reparei era que meu novo tutor era musculoso demais para um cara que ia me ensinar matemática. A segunda, provavelmente era o que a maioria das pessoas notavam primeiro: seus olhos. Seus olhos eram curiosos ao ponto de eu me perguntar se eram lentes de contato, mas reais demais para que eu descartasse logo isso. De um azul profundo, com uma grande pupila negra era formado seu olho esquerdo, já o direito era de um negro tão profundo que quase fazia sua pupila sumir.

— Não são lentes de contato. É uma doença que se chama heterocromia — Kane discursou, quebrando o silêncio com palavras que soaram cansadas e repetitivas.

— É uma mutação no cromossomo 15, que é o cromossomo da melanina dos olhos. Pela coloração, provavelmente é congênita, o que quer dizer que você nasceu com os um diferente do outro. — Balancei as mãos na frente de seu rosto, como se fizesse uma mágica. — Surpresa! Eu não sou retardada.

Meu animo, se já estava baixo, agora se reduziu a nulo. Senti meu nariz começar a escorrer e tentei limpar com a manga do meu suéter verde. Um lenço apareceu em minha frente, sendo segurado pelo tal de Kane. Hesitei antes de aceitar.

— Quem anda com lenços no bolso? Em que século você acha que estamos? — resmunguei desconfiada.

Ele me encarou por um segundo, depois deu de ombros. Aparentemente, meu professor não era muito de conversas longas. Seriam aulas interessantes.

— Venha, Mileia, eu tenho um negócio para fechar antes das 5h — Papá me chamou.

Tentei devolver o lenço usado para Kane, mas ele não aceitou, então foi a minha vez de dar de ombros. Quando o fotógrafo estava pronto, meu pai mandou que todos os filhos se posicionassem. Eu e Shade, por sermos mais novos ficamos a cada lado do meu pai, que estava sentado em sua poltrona de couro escura. Will e Nate ficaram atrás de nós, cada um de um lado como os mais novos. Como o mais velho ficaria atrás do mais novo, fiquei na frente de Will.

—Mileia, pare de coçar o nariz! Todos digam “Riazzo”! —mandou meu pai.

— Riazzo! — falamos em uníssono.

 

 

Flash. Flash. A luz era muito forte.

— Riazzo! Está me escutando? De perfil! — ordenou bravamente uma voz feminina.

Virei de perfil com vontade de voar no pescoço daquela fulana com o meu canivete Karambit, que obviamente não estava comigo. Em seu lugar, em minhas mãos, eu tinha apenas a plaqueta de identificação da polícia e algemas apertadas demais em meus pulsos. Flash.

— Próximo!

Fazia pelo menos um hora que eu estava gritando e chutando tudo o que tinha em minha cela; grades, cama de solteiro, paredes. Esmurrei tanto a parede que esfolei meus punhos ao ponto de sangrar, então os policiais foram obrigados a enfacharem, assim como meu braço. Eu obviamente estava certa sobre o tiro ter sido de raspão. Meu braço esquerdo doía com o esforço de destruir tudo ao meu alcance, mas se eu não me mantivesse em movimento a dor seria pior, e eu não me referia só a dor física. Meu pai estava morto. Meus irmãos também — ou metade deles. Meu sobrinho e cunhada estavam desaparecidos. A família Riazzo havia sido massacrada, esmigalhada e separada em pequenos pedacinhos que agora mal dava para saber que existiam. Não me referia só a família de sangue. A Máfia fundada pelos Riazzo, nosso próprio império em Nova York, parecia ter caído na mais fétida e sangrenta armadilha que acabou em uma aniquilação quase completa. Quase. Eu estava muito viva e faria de tudo para vingar meus familiares caídos e a mim mesma pelo sangue derramado.

— AH! — gritei, esmurrando as grades.

— Você não cansa não, garota? Foi até divertido na primeira meia hora quando os policiais te levaram a pulso para fazer os curativos e tudo mais, mas os gritos estão me dando dor de cabeça! — Charlie reclamava na cela ao lado.

Ignorei-o, apenas socando mais uma na parede cinza escura. A onda de fúria no meu peito me fazendo tremer da cabeça aos pés.

— Ei, você! Faça alguma coisa! Vai deixar mesmo sua namoradinha ficar berrando a noite toda?

Nesse outro soco, juro que vi a cara macia de bebê de Charlie ao invés da parede. Eu realmente queria bagunçar aquele cabelinho patético que ele mantinha de lado.

— Você sabe que ela não é minha namorada, pirralho. — Kane se pronunciou pela primeira vez em horas, desde que tinha me dado um sermão por imprudência e burrice por não ter me salvado enquanto podia. — Ele está certo Milie, é hora de parar.

— Não... Me... Chame... De... Milie! — Cada palavra foi um soco nas grades. Ele tinha ficado na cela de frente para a minha.

— Olhe para mim e me escuta, ok? Não estou pedindo que deite e aceite tudo isso, Mileia. Eu te conheço a quanto tempo? Uns oito anos? Sei o amor e a dedicação que você tem por sua família. — Dei um último soco e parei para encarara-lo por entre as grades. Uma pontada forte como um soco atingiu meu peito. Por que ele tinha que falar aquilo? — Ficar gastando energia quebrando tudo pode até ajudar agora, mas você sabe que não é a solução. Eu te treinei para mais do que isso, droga!

Foi a vez dele de estourar com a sua grade quando lagrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Meu medo era que elas nunca mais parassem.

— Olhe para mim, garota! — ordenou Kane elevando a voz. Ele nunca falava uma nota acima do seu tom grave usual, o que me fez obedecer rapidamente e encarar seus olhos, que mesmo depois de tanto tempo, eu ainda achava curiosos. — Eu sei que é difícil manter-se fria em um momento que requer fogo e fúria, mas você tem que esfriar a cabeça. Iremos sair daqui, eu te prometo, mas temos que pensar.

Eu não conseguia falar, então apenas assenti sentindo minha cabeça pesada, assim como o resto do meu corpo. Escorreguei devagar pela parede e sentei no chão encostando o rosto molhado na grade fria, sem perder os olhos de Kane em mim.

— Kane? Você se importaria em contar aquela sua história de quando visitou Paris? — pedi após um momento de um silêncio opressor.

— Aquela sobre os dois marinheiros bêbados e a motoneta? — Sua voz soou inserta, mas eu assenti.

Precisava que ele continuasse falando. Não me importava se o tema seria a crise na Ásia ou latas de sardinhas, por tanto que eu fechasse os olhos e não visse o corpo do meu pai no chão. Deu certo. Não me lembro de ter pegado no sono, mas quando o fiz já não estava mais em uma sela imunda e fria, e sim na garupa de moto voando pelas ruas de Paris em uma noite de inverno.

Acordei com meu corpo doendo, não só pela posição estranha que eu dormi no chão duro. Minhas mãos doíam, meus braços, músculos e pernas. Me espreguicei de vagar esticando-me como um gato, cada ligação das juntas doeram e senti minha cara se retorcer em uma careta. Bufei ao olhar o cubículo bagunçado ao meu redor, não ia me dar ao trabalho de arrumar aquilo.

Na cela da frente, Kane estava deitado imóvel em sua cama. Me perguntei se ele dormia ou se só pensava, já que tinha dito que isso era importante. Minha barriga roncou. Mal me lembrava da última refeição que tinha feito, o que me fez pensar em meu irmão mais novo, Charlie, e da sua fome interminável. Ele comia o dobro do que um adolescente normal de 16 anos comia, sempre parecendo estar com tanta fome como quando no primeiro dia em que jantou em família. Seus olhos pequenos tinham se arregalado tanto quando viu o banquete a sua frente naquele dia que vi Shade e Nate cochicharem apostas de quanto tempo a baba começaria a escorrer nele.

Lembrar dos meus irmãos mortos me fez sentir aquele soco no peito novamente. Tentei me focar no irmão vivo, bem na cela ao lado.

— Charlie? Está acordado? — chamei.

— Estou. — Ouve uma longa pausa antes que ele continuasse. — Como você está?

Uma pergunta simples, mas de resposta complicada. Como eu estava? Arrasada. Machucada. Dilacerada emocionalmente em mil pedaços, para começar. No entanto, Charlie não precisava saber disso. Eu era sua irmã mais velha viva — Ao menos, a única que importava —, ele era minha responsabilidade agora. Mais uma entre muitas.

— Bom, não é a minha primeira noite em uma cela. Então me diga você, como você está?

Eu deveria me sentir culpada por outrora pensar fugir e deixar ele ser preso sozinho, mas não estava. Charlie pegará o peso mais leve dessa balança imaginária que pendia para o meu lado — Se é que alguém tinha provas de verdade de alguma coisa contra ele.

— Eu estou com fome. Será que eles vão deixar a gente aqui até morrer de fome?

— Acredite, você não vai reclamar mais quando vê a comida daqui! Parece que a única pretensão que eles têm ao dar aquela gororoba é nos matar aos poucos por intoxicação!

Ouvi um leve riso do outro lado da parede. Seria esse nosso futuro? Apenas eu e Charlie, os únicos Riazzo capazes de se levantar dessa crise? Nos resta saber se iriamos nos ergueríamos juntos ou cairíamos no meio do caminho.

— Por quanto tempo vamos ficar aqui? Quer dizer, não deveria ter mais gente na prisão além de nós? — perguntou Charlie.

— Isso não é uma penitenciária. Estamos na delegacia, por isso não tem gente, porque é provisório. Iremos para uma se houver um julgamento — respondeu Kane.

O “se” ecoou na minha mente, assim como silêncio tomou conta do ar, caindo sobre nossos ombros e me sufocando. Levantei disposta a dar outros socos na parede quando Kane resolveu conversar.

— Está na hora de ligar para ele, Mileia. — Sua voz soou grave e rouca por falta do uso.

Kane agora estava sentado em sua cama. Uma barba rala começava a despontar em seu rosto. Seu olhar feroz e a confiança em sua voz diziam que ele estava pronto para discutir comigo.

— Você sabe qual é a minha resposta.

Ele bufou.

— Não é hora de ser orgulhosa.

Finalmente dei um soco nas grades, acabando com o silêncio do recinto. Nada do que ele quisesse me acusar teria me tirado tanto do sério quanto aquilo, naquele momento.

— Você acha mesmo, Kane? Acha que isso é orgulho? — rugi. — Ele me odeia, tá legal? Nos abandonou antes e provavelmente irá ficar grato quando souber que estou presa e eu não estou a fim de dar as boas novas para ele! Ligue você para sua queridinha, a Liane Radcliffe.

— Eu ligarei. — disse ele, sem se alterar. Não me surpreendi. É claro que ele devia ter passado a noite toda pensando em como ter essa conversa comigo. Se antecipando para contra-atacar as minhas possíveis respostas. Kane pareceu precisar de folego antes de continuar o segundo round. — Ele mantinha contato com seu pai.

— Serio? — questionei, incrédula. — Sobre o que você acha que eles conversavam? Sobre em quantas leis penais meu pai poderia ser enquadrado? Ou ele achava que a pena de morte devia ser aplicada antes mesmo de começarem a contagem?

— Sobre isso eu não sei Mileia, mas ele ligou em cada natal. Ligava nos aniversários de vocês e no dia de ação de graças. Sei porque seu pai me confidenciou isso há menos de um mês.

Kane não precisou de mais explicações. Em menos de um mês havia sido o aniversário do bebê Timmy, filho de Nate. Bebê que ele não verá crescer, nunca saberá que espécie de homem seu próprio filho se tornará. Uma criança sem pai. Um bebê que eu nem sei se ainda está vivo.

Eu tinha que sair daqui o mais rápido possível, não me importava se a lei estaria ao meu favor ou não. O desejo de vingança fervia até a última gota do meu sangue. Quinze minutos depois, dois carcereiros chegaram com nossa comida, passando-as por de baixo das grades.

— Eu tenho direito a uma ligação. Quero ligar para o meu advogado! — exigi. Os homens se entreolharam, antes de um deles começar o procedimento de abrir minha cela e me algemar. — Quando eu voltar, você vai ligar para a sua advogada — avisei a Kane.

Segui delegacia a dentro olhando para todos os lados. Opções de fuga. Não tinha muita coisa para se ver além de muitos policiais armados. Fui levada a um corredor com três telefones públicos pendurados na parede.

— Você tem 5 minutos — avisaram-me.

Ótimo! Prometo não usar nem metade, pensei. Disquei um número que não usava a tempos, na verdade nem sabia se a linha ainda estava ativa. Não saberia dizer o quanto de mim naquele momento desejava que não. No terceiro toque uma voz familiar e esperada atendeu.

— Alô?

— William? Estou na delegacia. Eu fui presa.


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Notas finais do capítulo

1- Filho da puta
2- Irmão
3- bisavô
4- minha criança, meu bebê
5- mocinha
6- Papai, pai

Vocês acham que a Mileia vai dá o braço a torcer ou é mais provável que ela torça o braço do Will no meio no próximo capítulo? >< Me diz o que você acha, comentários são sempre bem vindos!



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