Cem Anos Depois escrita por Adson Kamps


Capítulo 6
VI – O Sangue de Caneta


Notas iniciais do capítulo

NÃO SE ESQUEÇA DA ABERTURA:
https://www.youtube.com/watch?v=YC-AZAHpdSw&feature=youtu.be



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Eu estava acorrentada, presa em uma cela tão imunda quanto um brejo onde minha carcereira não passava de uma bruxa, um demônio de chifres negros e pele de um verde doentio. Meu único desejo naquele momento seria de quebrar aquelas amarras de ferro e reutilizá-las para prender aquela criatura chamada Malévola em sua própria armadilha.

Isso se eu pudesse me lembrar de quem eu era ou de quem fui. Isso seria algo muito importante, pois nada no mundo inteiro é tão poderoso quanto lembrar-se daquilo que está adormecido no âmago do seu ser. Eu, que já havia tido tantas personalidades nesse lugar que no início fora chamado de Floresta Encantada não conseguia me recordar de nada que me fosse útil no momento.

A única coisa que eu me vinha na memória era de algo que parecia ter ocorrido há milênios e, no entanto, parecia ter acontecido naquela manhã. Eram imagens embaralhadas, desconexas de algo que lembrava um bosque, ou seriam colunas de madeiras? Cada vez que eu pensava mais forte naquilo os troncos de árvore pareciam mais reais na minha mente, mas era apenas relaxar para suas folhas e galhos sumirem.

Haviam crianças correndo, ou seriam apenas meninos? Um garoto mais velho e ruivo parecia vestir um pijama verde costurado à partir de folhas com um chapéu de papel de onde brotava uma pena vermelha. Seu rosto era cheio de sardinhas... espera, não era catapora?

Eu corria atrás desse garoto com mais dois em meu encalço. O que eu entendia em meio a gritaria dos muitos meninos eram algo como “Peque o vagalume, pegue ele!”, o que só foi fazer sentido quando avistei uma pequena luz amarela voando na nossa frente. Mas não era um vagalume, era uma fada.

Corri atrás dela com uma touca verde, tentando em vão alcança-la quando alguém abriu a porta ou saiu de uma toca, me dizendo que estava tarde. Segui aquele homem de barba e cabelos grisalhos até o buraco de onde saíra e quando lá entrei, caí.

Minha queda parecia ser infinita dentro daquele poço. Eu passava por estantes de livros, espelhos, pianos e mesas à uma velocidade espantosamente alta, e cada vez que conseguia me encarar em um dos vidros reflexivos eu me enxergava diferente.

Meus olhos antes azuis se tornaram negros, assim como os cabelos castanhos foram escurecendo conforme a queda ia passando. Minha camisola azul foi empalidecendo assim como minha pele, e logo já era um vestido branco comum e eu me tornava uma garota completamente irreconhecível.

Alarmada direcionei minha visão para o chão, e lá eu vi algo: uma mulher em vestes reais branca estendia os braços para mim como se quisesse me pegar no colo. Senti uma onda de alívio e segurança emanando daquela moça, um sentimento de amor e carinho que eu não compreendia direito. Mas antes que ela conseguisse me segurar uma grande lufada de vento verde pareceu me agarrar e balançar.

  Fui puxada para o lado e cai em outro lugar.

Lentamente recuperei a consciência e consegui me por de pé. Havia caído sobre o que parecia um caminho de tijolos dourados, mais precisamente em um cruzamento.

A minha esquerda uma cidade e um enorme palácio de esmeraldas e âmbar brilhavam a luz solar; a minha direita uma floresta de pinheiros cobertos de neve se erguia até o céu, quase tocando nas nuvens. A minha frente uma planície de vegetação baixa seguia até o horizonte onde terminava em uma praia despencando no mar.

Era uma terra estranha aquela em que eu me encontrava, mas não para mim. Já havia estado naquele lugar mais vezes, não fisicamente, mas sim “psicologicamente”.

Eu lera sobre aquele lugar várias vezes e reconhecia seu nome como Oz, a terra do Mágico. À minha esquerda estava a Cidade das Esmeraldas, à direita as terras frias do sul e em frente o lar da bruxa boa do Leste: uma terra distante além do mar, onde só era possível enxergar uma fina linha de luz branca por detrás do gigantesco redemoinho verde que cercava aquela terra como uma barreira de proteção.

Porém, se tudo o que eu sabia era verdade, significava que eu estava de costas para...

Virei lentamente o corpo e fiquei paralisada ao notar o que havia as minhas costas. Ao Oeste, o céu azul dava lugar às nuvens de tempestade, a terra virava areia e as árvores, pedras. No cume do de uma das montanhas com um redemoinho verde girando em cima, se erguia um castelo de pedras verde-musgo e vinho, como se limo e sangue tivessem se misturado para gerar aquela moradia – se é que podia ser chamada assim.

Mas o pior de tudo eu fui notar poucos segundos depois. Parada em cima da estrada de tijolos de ouro – que se tornavam cor de ferrugem – havia uma mulher. Vestida de preto com uma vassoura na mão, uma capa se debatia atrás de si enquanto o chapéu – preso por baixo da cabeça – lutava para permanecer no lugar. Se não fosse isso e a pele esverdeada ela seria uma mulher bonita, mas eu a reconheci.

— Bruxa Má do Oeste... – murmurei fazendo a criatura cair em gargalhadas.

— É assim que me chamam agora? Bruxa Má? – Riu de novo. – Minha querida, eu já tive outra identidade antes, mas desde que me mandaram para esse reino eu tive que assumir outra forma. Você provavelmente não me reconheceria se eu não estivesse na forma de dragão.

— Dragão? – Engasguei.

Ela me olhou com aquelas profundas orbes amarelo-queimado e disse:

— Mas graças a você, isso vai mudar.

Pisquei e já não estava mais no caminho, e sim em um pátio aberto no topo do palácio na montanha.

— O que você quer? – gritei em meio ao barulho do vento.

Com um sorriso maldoso a bruxa se aproximou de mim e arrancou um fio de cabelo, que em suas mãos ficou prateado.

— Apenas pegando minha passagem de volta para casa... – e soltou-o ao vento.

O fio girou sinuoso para cima, em direção ao olho do redemoinho que descia na nossa, na minha direção. O cabelo emitiu um grande Boo junto de muita luz e carregando o tornado de relâmpagos arroxeados e amarelados, deixando a cena mais bizarra e escura do que antes.

Mas não escura o bastante para fazer sumir o sorriso daquela criatura.

Como se não fosse o suficiente, a partir deste ponto minha memória fica ainda mais confusa.

Eu me lembro vagamente de brincar em jardins cheios de animais, uma grande mansão no estilo antigo, quase como um castelo, cheio de serviçais super atenciosos que me deixavam alegres e sempre me tratavam bem. Mas eram flashes de memória muito rápidos, pois logo vinha a sensação de claustrofobia e lá estava eu, presa em uma outra cela.

Ao contrário da que estou agora, esta prisão era um pouco mais limpa e organizada, branca como pérola e cheia de detalhes vermelhos como rosas. Fiquei o que pareceram décadas neste lugar onde os guardas me tratavam por Alice, embora eu soubesse que esse não era meu nome verdadeiro e também não conseguisse recorda-lo.

Minha aparência também se alterara: meus cabelos negros se descoloriram até o loiro, meus olhos se tingiram de azul assim como o vestido que agora tinha um avental branco por cima.

Em algum momento destes longos anos, um dos guardas veio até o meu recinto anunciando que era o dia do meu julgamento. Agora o porquê eu estava sendo julgada nunca soube.

— Alice Liddell... – cantarolou meu novo nome a Rainha de Copas – Você nos provocou muito sofrimento nos anos passados e agora deve pagar – sorriu perversa – E acho que ninguém aqui teria coragem de te libertar do castigo. Não é verdade? – Ela olhou para a variada plateia; que ia desde guardas de cartas, passando por pessoas aparentemente normais até animais extintos ou sem o corpo.

Vossa Majestade olhou para um dos guardas de cartas ao meu lado e acenou com a cabeça – Podem decapitar.

Enquanto o machado descia em direção ao meu pescoço as únicas coisas que notei era o quão desconfortável era ficar de joelhos sobre uma pedra e que como seria bom perder a cabeça para não sentir aquela maldita dor na nuca. Fechei os olhos me entregando de completo para morte, mas algo aconteceu. Ou melhor, não aconteceu. Eu ainda estava viva!

Abri os olhos e encarei a Rainha do colo de uma mulher vestida de negro com enormes chifres na cabeça. A pele verde-oliva me parecia muito familiar e quando olhei nos seus olhos amarelo-queimado recuperei parte da minha memória até então perdida. – Você... – murmurei surpresa.

A Bruxa Má do Oeste sorriu maliciosamente e se virou para a rainha – Desculpe Mamãe, mas não posso deixar que essa garota morra em suas mãos.

— Rachel! – Majestade vermelha trovejou de raiva. – Eu lhe abriguei quando você voltou de Oz e cuidei como uma filha para logo depois você me trair?!

— Você sabe o quão importante para meus planos é essa menina, não posso deixar o Sangue de Caneta passar como se não fosse nada – Sangue de Caneta?

— Sua... Sua... Cortem-lhe as cabeças! – berrou transformando em seu verdadeiro eu: um monstro enorme cheio de tentáculos, meio albino meio vermelho e com um pulsante coração batendo no peito.

— Pensa que me assusta? Eu sou mais poderosa que você e não permitirei que nada aconteça a essa criatura! – Rachel acabou de se referir à mim como criatura?

Deixando a mostra sua vassoura que ela logo transformou em cajado, com um facho de luz esmeralda o grande monstro se desfez em pó para logo virar algo mais inofensivo: um corvo.

— Ai, ai. Vamos agora? – perguntas retoricas nunca devem ser respondidas, especialmente quando vem de bruxas como aquela.

Um tornado com relâmpagos que alternavam a cor entre roxo e amarelo desceu até o chão e logo começou a nos erguer – A propósito – murmurou a bruxa – Podes me chamar de Malévola.

Então uma gargalhada de maldade pode se ouvir em todos os lugares do mundo, desde Oz até o País das Maravilhas e a terra para qual estávamos indo.

E foi assim que eu cheguei nessa cela imunda onde Rachel, Malévola, seja lá quem for me trancou. Pelo menos o favor de deixar semi—intactas essas partes da minha memória ela fez. Mas algo me diz que tem coisas que Malévola preferiu não me revelar.

Se eu sou tão importante assim para ela não posso ser uma simples menina, posso? Algo poderoso deve existir em mim. Sangue de Caneta, o que diabos isso queria dizer?

Eu só estou esperando a hora certa para descobrir.

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