Réquiem escrita por Yue Chan


Capítulo 4
Distrito Uchiha


Notas iniciais do capítulo

Não disse que postaria em breve? Pois então.

Boa leitura.



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Foram necessárias muitas tentativas.

Dos primeiros três monges xintoístas convocados ao Distrito por Sarada e sua mãe, apenas um tinha corajosamente se prontificado a atravessar os portões. Os outros dois se recusaram veementemente a entrar em contato com a energia maligna emanada pelo local e que o tornava um local insuportável para a permanecia de pessoas sensitivas como eles.

Permaneceram resolutos mesmo ante as inúmeras tentativas de coação por parte de ambas as Uchihas – em especial a mais nova- que haviam inclusive dobrado a oferta pela sessão de exorcismo e purificação. Nada os convenceria a entrar em contato com aquele local amaldiçoado e as almas irrequietas e cheias de ódio que ali vagavam.

O único que se propusera a entrar e realizar as purificações não conseguiu avançar mais do que cinco passos, antes de se curvar e cair de joelhos gritando com as mãos na cabeça e as lágrimas a correr pela face pálida em torrente, dolorosas e ininterruptas. Um choro lamurioso entremeado por gritos de dor rasgou sua garganta, como se ele estivesse sendo alvejado por laminas invisíveis nos poucos segundos que permaneceu consciente após trespassar os limites do clã.

Minutos após entrar, sua intrépida missão chegou ao fim quando tombou inconsciente, após regurgitar por mais de um minuto ininterrupto. Seu rosto estava contraído em um esgar de agonia, como se houvesse experimentado a dor mais excruciante da sua vida antes de perder os sentidos. Sakura correu para ajuda-lo e o levou imediatamente ao hospital.

A cada nova tentativa, Sarada se sentia mais e mais desanimada, passando a se questionar se algum dia lograria êxito em sua missão. A médium que a auxiliara dias antes, ainda não havia se recuperado por completo da última sessão que culminou na incorporação mais desgastante e nociva ao qual já havia se submetido em suas quase quatro décadas de contato com o outro lado do véu.

 A notícia de que alguém estava recrutando monges para purificar o distrito se alastrou veloz pelos monastérios, fazendo com que os religiosos tomassem a decisão de não se arriscar antes mesmo de serem requisitados. O boato do resultado da incursão do corajoso irmão de Buda ajudou a difundir o pânico crescente no coração dos demais. Ninguém queria se arriscar a ter o mesmo fim que o monge que se encontrava em coma profundo há semanas e cujo prognóstico ainda era incerto.

Os rumores chegaram aos ouvidos do Uchiha sobrevivente que sentiu um misto de curiosidade e fúria se agigantarem em seu âmago. Quem seria tolo o suficiente a ponto de atravessar aqueles portões e desrespeitar a memória de seu falecido clã? E porque diabos estavam fazendo assim? Purificar? O que havia para ser purificado dentro daqueles muros? Os pecados dos Uchihas haviam sido lavados com sangue, o sobrenome ainda ostentava a honra graças ao sacrifício de Itachi que morrera em desgraça para que ninguém nunca tivesse conhecimento de que um dia eles haviam atentado contra a segurança do estado máximo de Konoha.

Aquela descoberta o fez rumar para a vila natal em busca de respostas, resoluto a fazer o audacioso dono daquelas ações pagar por sua ousadia.

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Foi na primeira noite de luz cheia do mês que o plano mais intrépido e insano de todos finalmente começou a ser posto em ação.

A luz irradiada pela lua banhava parte do Distrito Uchiha, deixando visíveis os topos dos prédios e algumas de suas ruelas, embora a maior parte ainda se encontrasse imersa em trevas. As flâmulas bordadas com o símbolo do clã, puídas e desbotadas, fincadas no alto de alguns casarios, ora em janelas, ora nos telhados, tremulavam fantasmagoricamente quando acariciadas pelo gélido vento noturno que parecia sussurrar ao atravessar os vãos e casas vazias.

Os portões estavam escancarados a qualquer visitante, como um sorriso doentio de um sádico que dá boas vindas a sua vítima. A madeira gasta era testemunha silenciosa de que a passagem do tempo não havia sido gentil com o pórtico. As dobradiças gemiam em protesto a ação do vento que empurrava a pesada madeira, consumida em sua grande parte pelos cupins que se alojaram em seu interior devido a falta de manutenção, dobrando-se sobre seu eixo, emitindo guinchos lamuriosos agudos e intimidadores, por vezes se chocando contra as paredes. O símbolo do clã bordado cuidadosamente no pano defronte as portas de madeira havia sido corroído pelo tempo, entregue a intempérie. Um dia aquele portal deve ter sido símbolo de beleza e imponências, porém agora dava ao local um ar ainda mais sombrio e amaldiçoado.

Definitivamente um lugar assustador o suficiente para ser considerado como um inferno por uma alma que expiasse seus pecados.

Sarada se pegou imaginando quantas vezes seu pai havia atravessado aqueles portões quando criança antes da tragédia. Olhando as ruas desertas tornava o exercício de imaginação ainda mais difícil. Imaginar aquelas alamedas apinhadas de Uchihas parecia surreal.

O som de passos as suas costas a tirou de seus devaneios. No silêncio taciturno daquela madrugada eles pareciam retumbar, espalhando-se por toda as direções ao mesmo tempo que se tornava mais nítido ao se aproximar.

Os instintos shinobi de Sarada indicavam que não havia necessidade de se mexer, e ela permaneceu imóvel, encarando a imponente e antiga construção a sua frente como quem vislumbra uma aventura indesejada.

O som cessou e a pessoa se emparelhou com ela, também fitando o portal a sua frente.

Chegou mais cedo que o planejado. – a voz da médium irrompeu misteriosa.  

— Não vejo a hora disso terminar. – Sarada respondeu sinceramente e a médium virou levemente o rosto para pode vê-la melhor. A face de ambas possuía um tom pálido, banhado pela luminosidade do luar, embora a da mulher transparecesse sabedoria e a da mais jovem refletisse o medo e expectativas que brigavam em seu interior. – Estou a ponto de enlouquecer com tudo isso. Só quero que acabe de uma vez por todas.

Os olhos dela brilhavam cansados e obstinados. A médium desviou o olhar e buscou na pequena valise que trazia a tira colo um maço de cigarros que transferiu para o bolso da calça que usava. Enquanto executava essa pequena tarefa refletia acerca dos motivos que a levaram a tomar tal decisão. Tinha plena ciência de que aquela excursão corajosa poderia lhe ser fatal. Ainda não se recuperara totalmente da incorporação a qual se submetera há quase um mês, e se arriscava em uma missão que lhe certamente lhe traria danos colaterais severos se não tomasse as precauções adequadas.

Encontrou os olhos de Sarada, imersos em pesar e ansiedade e suspirou ao relembrar que era por causa daquela pobre jovem atormentava que estava pondo a própria vida em risco. A menina havia genuinamente esgotado todas as alternativas disponíveis para ajudar a alma do tio a se libertar durante o tempo em que esteve se recuperando, todavia não havia conseguido nenhum resultado positivo.

Não era de se esperar que fossem encontrar monges que se negariam a purificar o lugar, mas apenas um se disponibilizar a realizar a tarefa parecia meio surreal. Monges eram criaturas que tinham como filosofia de vida auxiliar o próximo, porque haveriam tantos escapando dos próprios preceitos? Era uma missão difícil e arriscada? Decerto que sim! Mas era estranho que não encontrassem mais candidatos.

 Depois de falhar pela quinta vez, Sarada retornou a sua tenda em busca de auxílio, e por alguns minutos a médium se recusou a ajuda-la veementemente. Mas não pode suportar a carga espiritual ao qual ela estava atrelada, sentindo sua frustração e dor que compartilhava mesmo a contragosto. Itachi também havia seguido a jovem pela primeira vez em sua forma infantil, e por Kami, a sensitiva não pode suportar olhar os ferimentos que cobriam a forma espiritual do garoto. A alma dele estava em frangalhos, quase se dissipando por completa. Se isso acontecesse ele jamais seria capaz de encontrar a paz algum dia. Não queria se sentir culpada por negar ajuda a uma alma tão atormentada, rechaçaria o próprio espírito se o fizesse.

Acabou por concordar com aquela insensatez. Fora o medo de enlouquecer ou morrer durante a excursão havia o detalhe de que aquele ato não poderia ser classificado de fato como uma “excursão” e sim como invasão a propriedade privada e patrimônio histórico. Se fossem descobertas ela seria enviada a prisão sem direito a julgamento.

Bom, agora tinha que seguir em frente.

Ergueu a cabeça com um cigarro preso entre os dentes acendendo-o de imediato. A brasa brilhou na ponta ao ser incitada pela primeira tragada parecendo mais vermelha do que seu tom usual. Seus olhos se estreitaram ao vislumbrar o portão de acesso ao distrito Uchiha.

Diferente de Sarada, ela podia vê-los e não era uma cena agradável.

Centenas de sombras e vultos disformes perambulavam sem rumo dentro daqueles muros, aterrorizados e/ou furiosos, como se bailassem em uma festa macabra, perdidos, desconsolados, temerosos e vingativos. Pareciam não possuir um destino, apenas andavam a esmo, trombando uns nos outros, sem se encostar, mesclando-se momentaneamente já que não possuíam forma física. Todos pareciam indiferentes a isso, como se não conseguissem perceber uns aos outros. Haviam crianças chorando em busca de pais que não conseguiam encontrar e pais em busca dos filhos sem encontra-los, mesmo que passassem ao lado um do outro ou se misturassem.

 Seu estômago se contraiu violentamente e a visão se tornou turva devido a energia quase demoníaca emanada pelas entidades atormentadas. A carga energética a atravessou como uma faca, enterrando-se em suas vísceras, arrastando-se e causando uma dor lancinante que fez seus olhos lacrimejarem. Se Sarada pudesse ouvir as lamúrias e gritos e ódio, dor e temor que eles proferiam talvez houvesse fugido dali. A própria médium sentiu vontade de se retirar as pressas, mas conseguiu se conter com muito esforço. Os sons chegavam embolados, uma verdadeira cacofonia de vozes agudas que quase a fizeram tapar os ouvidos para tentar selar o som.

Felizmente a jovem ao seu lado não podia ver nem ouvir nada. Ela via apenas as ruas desertas e os sons do vento ao correr pelas alamedas vazias, o que era bom. Menos uma para enlouquecer com aquele teatro macabro.

Agradeceu mentalmente os muitos anos dedicados ao mundo espiritual, não fosse sua experiência não seria capaz de suportar a intensidade da energia que se desprendia daqueles corpos, se é que poderia chamar aquilo de corpo, já que alguns possuíam uma ligeira semelhança com o formato humano, já outros possuíam silhuetas deformadas, quase animalescas, arqueadas. Era assustador observar esses espíritos transfigurados pelo ódio a ponto de perder seu formato original.

Mas sem dúvida o que mais a assombrava era energia que circulava os corpos.

Como médium, ela possuía o dom de vislumbrar a aura humana –pré e pós mortem- e já havia vislumbrado diversas manifestações energéticas em sua longa carreira, porém nunca em sua longa jornada havia lidado com vibrações tão potentes.

A energia emitida pelos espíritos que vagavam a esmo se assemelhavam a uma segunda pele que fluía de maneira agitada, cobrindo-os, tal qual chamas que bailavam em tons negros mesclados a variantes púrpura e rubra e ascendiam ao céu, erguendo-se como dedos feitos de labaredas. Pareciam clamar por socorro, lutando par elevar-se sem conseguir se desprender do corpo etéreo.

Uma ânsia poderosa obrigou a médium a se vergar sobre o próprio corpo. O estômago contraiu violentamente expulsando parte do jantar que havia consumido horas antes. Ela ralhou consigo mesma por não ter previsto que seria afetada a esse ponto.

Sarada se apressou em socorrê-la, auxiliando-a a retomar a postura, que ela fez de modo vacilante. O suor frio porejava de sua tez, escorrendo e a tontura tornou seu equilíbrio precário e vacilante. Teria que começar o trabalho de fora, caso contrário não seria capaz de sequer chegar perto daquele portão que batia contra a parede de maneira insistente devido a uma impetuosa e demorada lufada de ar que se iniciara com a sua chegada, como um aviso de que não deveria se aventurar pela área.

Eram tantos gritos, lamúrias, protestos... ódio, desolação, tristeza, indignação... o local fervilhava e sua energia a atravessava como lâminas cada vez mais afiadas. Tinha que reconhecer: aquele era seu limite. Alguns passos a mais e sua alma seria arrancada do corpo de maneira impiedosa tamanha a vibração negativa que se chocava contra seu espírito.

—Você está bem?- Inqueriu a jovem kunoichi alarmada pelo semblante pálido da médium que há poucos minutos estava saudável, mas que agora se assemelhava a de um paciente acamado há dias. Sentindo-se culpada pelo estado dela, completou um pouco desanimada. — Não precisa fazer isso se não quiser.

—Eu conhecia bem os riscos quando me ofereci, estava ciente de que isso poderia acontecer. – a mulher respondeu acendendo e tragando um novo cigarro com tanto afinco que talvez alcançasse metade dele com apenas uma inspiração. Ela realmente sabia que encontraria uma energia maligna, porém nem sempre as expectativas correspondem a realidade que se mostrava irrefutavelmente poderosa, sendo capaz de pôr de joelhos até mesmo uma especialista sobrenatural como ela. – Não precisa se preocupar comigo; temos um trabalho importante a fazer.

 A jovem anuiu com a cabeça mesmo que permanecesse incerta se deveriam seguir adiante ou dar aquela tentativa como encerrada. Seu coração dizia que era o certo a se fazer, embora sua mente pedisse que tivesse cautela e saísse dali o mais rápido possível, pois até mesmo ela que não possuía nenhuma espécie de poder sobrenatural útil estava sentindo a estranha vibração espiritual que aquele ambiente emanava, embora não pudesse afirmar se isso era verdade ou apenas uma alucinação causada pelo medo paralisante que sentia daquele lugar lúgubre.

­_Devemos começar logo. – a médium tomou a frente ao perceber a incerteza de Sarada. Caso ela desistisse iria carregar para sempre a culpa de não ter tentado, pois ela não estava disposta a enfrentar aquela energia sinistra mais vezes do que necessitaria. Acendeu outro cigarro, controlando uma vontade quase irresistível de acender uma dúzia de uma só vez e potencializar o alivio que a nicotina trazia a sua frágil e experiente alma sensitiva. – Preciso que entre e reúna alguns itens dos falecidos, principalmente roupas infantis, uma vez que as crianças são ingênuas e puras e encontram rapidamente seu destino, sendo mais fáceis de despachar. Depois nos concentramos nos adultos.

Você não vem comigo?— sentiu um misto de decepção e medo ao vê-la balançar a cabeça negativamente; a última coisa que desejava era voltar a atravessar aquelas veredas novamente sozinha. 

— Não consigo sequer chegar a entrada, que dirá transpô-la. A energia que flui desse ambiente é mais poderosa do que imaginei. – Fitou a jovem percebendo tarde demais que o conteúdo de suas palavras a haviam assustado, tratando de acalmá-la – Mas não se preocupe, você não é sensitiva como eu então essas coisas não poderão lhe causar nenhum dano físico. – preferiu ocultar que embora elas não pudessem lhe atacar, tinham o poder para lhe desestabilizar emocional e mentalmente. Aquela jovem tinha que cumprir sua missão ou estaria condenada a uma vida de arrependimentos.

Não havia outra solução: teria que encarar aquilo sozinha mais uma vez. Se arrependia apenas de ter optado por encontrar-se com a médium de madrugada o que tornava aquela incursão mais tenebrosa. Infelizmente não havia outra alternativa que não aquela, sua mãe havia dito para ela desistir e havia deixado claro que ela não devia se encontrar com a médium novamente. O único meio de despistá-la havia sido sair as escondidas em meio a noite, tomando o cuidado para não a despertar. A culpa de esconder aquele segredo de sua mãe a estava consumindo, mas dentre as opções: mentir para a mãe e ser assombrada pelo espírito atormentado do tio escolhia a primeira opção.  

Seu coração palpitava com tanto clamor que lhe dava a impressão de que iria parar assim que atravessasse aquele portal.

Mas não parou. Ele permaneceu inquieto, solavancando dentro da caixa torácica, porém definitivamente continuava a pulsar no mesmo lugar de sempre. Mesmo quando a pesada porta carcomida veio de encontro ao seu corpo de supetão, obrigando-a a segurá-la no último segundo, evitando um encontro que poderia lhe desacordar ou machucar seriamente. Felizmente a deteve a tempo, mas sua ação lhe rendeu uma leve luxação nos braços. Normalmente um acidente daquela magnitude a faria vociferar, não fosse o medo quase congelante que sentia, responsável por aguçar seus instintos.

O chão estava coberto por uma fina camada de areia e pó que faziam o som de leve estalar quando pressionada. Apenas os seus passos eram audíveis e soavam muito barulhentos em meio aquele silêncio sepulcral. Ocasionalmente o estalar das janelas entreabertas movidas aleatoriamente pelas rajadas de vento, e as bandeiras tremulando solitárias, e o som do vento a percorrer os corredores fantasmas ajudavam a quebrar o silêncio, mas não eram ruídos que trouxessem acalento, em verdade estavam contribuindo para aumentar gradativamente seu temor e ansiedade.

Entrou em algumas casas e recolheu alguns dos pertences. Muitos ainda permaneciam na mesma posição em que haviam sido deixados décadas antes, como um museu macabro. Panelas esquecidas no fogão – algumas ainda cheias-, brinquedos espalhados pelos cômodos, roupas que jaziam penduradas no varal, encardidas e esquecidas, camas desfeitas ou quartos organizados milimetricamente. A sensação de estar sendo observada a assaltava a todo momento, como se olhos invisíveis bailassem na escuridão.

Sarada tinha o cuidado de não pisar nas marcas quase totalmente apagadas que delimitavam a posição em que os corpos haviam sido encontrados naquela cena de crime; constatando para seu horror que algumas eram tão pequenas que teve que segurar a ânsia de vômito que tomou seu corpo de súbito, colocando a mão sobre a boca em resposta. “Quantas crianças você teve que sacrificar, tio?” pensou estarrecida ao constatar que aquele tinha sido realmente um fardo monstruoso para ser carregado. A certeza de que tinha sido atormentador para ele cumprir aquela tarefa a assaltou, como se ele estivesse ao seu lado lhe sussurrando com aquela voz lamuriosa de quem sofre a tormenta da decisão todos os dias, em vida e depois da morte.

As ruas já não possuíam as mesmas marcações de onde os cadáveres foram encontrados devido a intempérie. Muitos temporais haviam se encarregado de lavar as marcas, assim como o sol havia ressecado e partido as fitas policiais que um dia circulavam o distrito, e agora se esfarelavam sendo carregadas pelo vento, como confetes fúnebres. Sarada sentia a pele arrepiar-se a medida que adentrava ainda mais aquele local, assim como o vento parecia mais furioso como se a mandasse sair dali -algo que ansiava com todas as forças do coração- afinal estava arriscando muito ao entrar ali sem permissão, mas não podia até realizar seu intento.

Aqui e ali recolhia objetos: roupas, brinquedos, joias o que quer que auxiliasse, dando atenção especial aos objetos infantis como havia sido aconselhado pela médium. A cada item recolhido sentia as mais diversas reações que variavam podendo surgir como o eriçar dos pelos do corpo, uma corrente elétrica percorrer sua espinha dorsal, o estômago chacoalhar ou uma breve lufada de ar frio chicotear de leve sua pele. Era tão apavorante que a cada nova sensação tinha a vontade súbita de abandonar a missão e desaparecer daquele lugar o mais depressa possível.

Mas não podia. Ele contava com ela.

Entrou na casa que um dia pertencera ao pai e seus avós e de longe foi o lugar que mais a apavorou. O pequeno lago a frente estava coberto de lodo e refletia a luz pálida do luar de modo opaco. Afastou a porta decorrer sentindo a madeira gemer e protestar, obrigando-a a impor um pouco mais de força para obriga-la a ceder espaço suficiente para que poder entrar. Caminhou pelos cômodos sentindo cada fibra de seu corpo se retesar ante a possibilidade de algo sobrenatural lhe acontecer. Todo e qualquer ruído era captado no mesmo instante, fazendo-a se sobressaltar ante a possibilidade de não estar mais sozinha.

 Chegou ao quarto de casal, e por alguns instantes aterradores sentiu a visão turvar. O coração batia freneticamente.

A passos contidos se aproximou da penteadeira e abriu luxuosa caixa de joias que misteriosamente permanecia intocada sob o móvel, retirando de dentro um cordão de ouro com um pingente em formato de coração. Encontrou um trinco ao lado e pressionou sentindo o objeto e partir e revelar o interior. A pouca luz que provinha da janela não colaborava muito, mas ela percebeu a foto de um casal a esquerda e a de duas crianças a direita, sendo um garoto de mais ou menos sete anos com um bebê de aparentemente dois anos no colo. Ambos riam de maneira ingênua e cúmplice. Teve a certeza de que era o pai e o tio.

Sem se dar conta uma lágrima brotou de seus olhos e caiu em cima do objeto. Pediu licença e guardou-o com cuidado na bolsa que trazia, voltando a sua missão de recolha, surpreendendo-se com o fato de andar por aquele lugar com uma familiaridade que lhe era estranha.

Alcançou mais uma porta e fê-la correr para liberar a passagem que necessitava para acessar o cômodo que não havia conferido em sua primeira incursão quando recolheu a peça de roupa que levou para a médium.

Sentiu o corpo paralisar ao visualizar as marcas policiais no chão. Sem dúvida aquelas marcas eram dos avós paternos que nunca haveria de conhecer.

Sentiu a bolsa em que trazia os objetos pesar de maneira incômoda como se uma força sobrenatural a puxasse para baixo. Por mais que a ajeitasse a sensação permanecia. Fechou os olhos e juntou forças para ignorar o fato.

Vamos, Sarada, você já chegou tão longe, não ouse desistir agora. Não se concentre na sensação, esqueça-a.” aconselhou a si mesma.

A luz da lua permitia vislumbrar o contorno quase apagado pelo tempo. As manchas escuras onde o sangue que verteu dos corpos sem vida de Fugaku e Mikoto Uchiha permaneciam lá, disformes e negros onde havia empoçado. Por um segundo assustador podia jurar ter visto o brilho do líquido espesso, como se o sangue vertesse do próprio piso de madeira.

Observar aquelas marcas fez com que uma dor incomensurável rompesse em seu peito. Um sentimento de angústia tão potente, que parecia que ia lhe rasgar o coração em dois. As lágrimas desceram pesadas. Doía tanto que ela teve vontade de se matar para acabar com aquela aflição. Ao mesmo tempo ela sabia que aquela dor e remorso não pertenciam a ela e sim ao tio e se deu conta de como foi difícil para ele executar aquela missão.

Ele estava ali, ajoelhado, chorando de maneira desesperada ao lado dos... corpos?! Haviam dois corpos ali, caídos um sobre o outro e ele alisava a face de ambos com a ponta trêmula dos dedos de maneira cuidadosa, como se temesse acordá-los, desenhando sem querer a trilha de seus afagos com o sangue que escorria das faces de ambos. Sarada estava paralisada ante a visão, com ambas as mãos sobre a boca, enquanto experimentava um misto de emoções se mesclarem em seu interior. Medo e empatia guerreavam em seu coração.

Ele a fitou e seus olhos estavam perdidos em pesar e culpa.

“Eu não queria isso... não tive escolha... eu..”- murmurava em meio as lágrimas desconsolado.

Então, tão rápido quanto surgiu a visão macabra desapareceu. Um simples movimento de piscar de olhos. Apenas as suas lágrimas permaneceram, mas até mesmo estas já cessavam.

Tinha sido uma experiência tão intensa que ela não tinha palavras. As marcas permaneciam lá, testemunhas silenciosas da dor de um homem que sacrificou tudo o que mais amava em nome da paz.

Antes que pudesse se recompor, o som de passos fê-la paralisar. Os sentidos ainda mais alertas com a aproximação. A madeira rangia sob o peso do corpo, reclamando e chiando a cada passo. Apavorada, Sarada não conseguiu se mover, apesar de mentalmente gritar para que tomasse uma atitude, de preferência uma que envolvesse fugir o mais depressa possível daquele lugar. Entretanto permaneceu onde estava, incapaz de mover os próprios pés, temendo o que quer que estivesse escondido nas sombras atrás de si.

Nunca o som das batidas do próprio coração lhe foram tão audíveis.

Os passos cessaram, mas o pavor da jovem continuou a agigantar-se em seu âmago. O que deveria fazer? O que?! Ousar virar e encarar o que quer que estivesse se escondendo naquele breu? Manter-se imóvel e aguardar sentir aquele toque frio e os dedos cadavéricos se fechando em sua tenra pele arrepiada? Não conseguia colocar os pensamentos em ordem devido ao torpor que sentia. Era como se não comandasse as próprias pernas. Engoliu em seco ante a expectativa de algum ser sobrenatural aproximar-se e sussurrar algo medonho em seu ouvido com a voz arrastada.

—Eu não poderia estar mais surpreso; e decepcionado.-  voz era áspera e desesperadoramente familiar. Sarada sentiu o sangue fugir do rosto no momento que ouviu a primeira palavra.

Naquele momento desejou fortemente ter sido surpreendida por uma criatura sobrenatural. Seria menos traumático.


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Notas finais do capítulo

Rogo um pouco de tranquilidade, pequenos grafanhotos. Assim que terminar o capítulo eu venho correndo postar.

Abraços!



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