Filhos da Magia escrita por Taetación


Capítulo 12
Capítulo 11 - Meu reflexo




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Sinceramente, quem sou eu? Quem são aqueles que chamo de minha família? E principalmente, o que há de tão especial em mim? Ao ponto de chegar aonde estou. Sou uma vergonha como ser humano. Vivo com medo de olhar em espelhos e ver o monstro que refletia, mas, apesar de tudo que aconteceu, acho que tinha era fraqueza para encarar meus medos. Além do corpo, o que mais poderia refletir? Dizem que os olhos são as janelas da alma, mas os meus estão vazios. Eu não tenho nenhum conteúdo, além de medo.

Akemi Wada Nakamura, essa é o meu novo eu, que eu nem ao menos conhecia.

Em meio à uma crise existencial, eu encaro o nascer do sol, nesta cidade mágica. O céu laranja, nuvens cinzas dando um sombreado lindo, juro que alguém voando por essa linda paisagem. Meio que invejo essa pessoa. Mal consigo pensar em voar sem lembrar de vômito.

Sempre apreciarei momentos assim. Essa sensação de liberdade e poder fazer o que quiser me conforta, por algum motivo. Acho que eu mais preciso agora é alguém para me acordar e dizer repetidamente “está tudo bem, está tudo bem”. Ingênua… isso não acontecerá novamente.

— Lindo.

Sai da minha zona de conforto para encontrar Idas atrás de mim - sem camisa, devo dizer - e com suas esplêndidas asas nas costas. Realmente, lindo.

— O que faz aqui fora tão cedo? — sua voz soou rouca, como se tivesse acabado de acordar — Insônia?

— “Perturbada” seria uma palavra melhor. — eu disse.

Ele se aproximou de mim, encostando na janela, assim como eu, seus olhos diminuíram por causa da luz do sol, então ele se virou para mim.

— Você é feliz aqui, Idas? — perguntei, e ele balançou a cabeça, sorrindo.

— Eu não sei — respirou fundo — Bem, eu conheço todos que moram no castelo e as pessoas da cidade, mas sempre falta algo… às vezes, me sinto preso… mas, nas manhãs — ele fechou os olhos, ao sons de pássaros que passaram por nós — Eu me liberto.

Ri sem graça.Mais alguém entrando no grupo “crise existencial “.

— Eu te entendo, eu acho — minha voz soou abafada, apoiei a cabeça nos braços, fechando os olhos.

Essa é a primeira vez que não acho Idas um babaca. Bom, belo começo, talvez.

— Hey — chamei sua atenção — Tenho sido ignorante com você, isso não é legal, então, desculpa. — olhei em seus olhos, incomodada pela claridade. Cada palavra foi sincera, mesmo não sabendo expressar isso com mais facilidade.

Ele assentiu, apenas.

Eu pisquei.

— Esse é o momento em que você se desculpa também. — encorajei, empurrando-o de leve com o braço e, felizmente, ele riu.

— Não fiz nada de errado, Nakamura. Eu simplesmente fui eu. — soou tão sincero e firme, igual a um soco na minha cara.

Parei de olhá-lo, um arrepio de desgosto passou por mim e fechei a cara. Mais uma frase maldosa da vida.

— Okay, não precisa fazer essa cara. Desculpa. — empurrou-me de volta.

— Não é isso. — meus olhos ardiam de raiva infantil e vergonha.

— O que aconteceu então?

Acho que não consigo escapar dessa tão simples questão.

— Eu não sei quem eu sou — desviei o olhar, me arrependendo por dentro por contar isso — É ridículo, não é?

— É sim — sincero, isso doeu.

Fechei os olhos, contendo as lágrimas; não preciso parecer fraca agora.

— Está presenciando o que restou da Nakamura — respirei fundo, ajeitei o cabelo e comecei a me afastar, deixando Idas lá, parado — Depois de hoje, eu finalmente vou me descobri.

Então, desci da torre em que estava, sem a companhia do anjo.

Lá estava eu, naquela sala repetitiva.

Era como se eu estivesse na escola; sendo forçada a estar lá, acompanhada por pessoas que você não gostava, aprendendo matérias chatas - mesmo sendo importante - e a única coisa melhor disso tudo era o lanche. Meu professor era Nicholas - quem mais poderia ser? Esse, nos colocou em numa sala de aula típica, porém equivalente ao todo castelo; paredes de pedra, estandartes e etc. Estava me cansando da mesma imagem.

Sentada na poltrona com estofado de veludo vermelho, com detalhes de ouro, puro ouro, algo que parecia tão caro que quase hesitei em sentar. Porém, Nicholas disse “sente-se em qualquer lugar” e assim eu fiz, sob seu olhar indignado. Ele deixou passar.

— Touché — reconheceu  — Essa audácia toda só porque eu disse que está presa aqui? — andou até mim, com meu livro em mãos.

Uau, e eu estou sendo audaciosa aqui?

— Isso é por me manter longe de minha irmã. — soltei, cruzando as pernas e encarando-o firmemente.

— O mundo não gira em volta de sua irmã.

— O meu mundo gira.

— Mas os dos humanos não — ele subiu os degraus até o trono, e me encarou com seus olhos azuis, podia ver o desafio em seu olhar — E é por isso que está aqui.

Ri de escárnio, controlando um sorriso irônico.

— Sinceramente, seja claro.

— "Como as suas decisões influenciam o planeta terra" — jogou o livro sobre uma mesa grande que ficava centímetros de distância dos degraus — É isso que iremos estudar hoje.

— Vá em frente — encostei na poltrona.

— Uma profecia foi lançada a séculos atrás, nessa falava sobre a destruição do mundo humano feita por dois seres, raposa e cobra — ele apontou para as tapeçarias em cima das janelas — Essa é a retratação mais famosa dessa visão, feita por sua amiga, Naomi.

Ofeguei surpresa, olhando para as tapeçarias na parede, muito bem-feitas, devo dizer. Rodeava a sala inteira. As imagens  já começavam com ambos animais brigando e poder em suas patas, depois, o planeta terra, suas conhecidas cores deram lugar ao vermelho.

— Olhe atrás de você. — disse Nicholas.

Fiz o que pediu, ainda na cadeira, apenas olhei para trás e me deparei com mais uma tapeçaria, dessa vez, escrita, com letras desconhecidas para mim.

— O que significam?

— Está em nosso idioma, Imo’ris — disse ao meu lado — Você vai aprendê-lo logo.

— Traduza, Nicholas! — meu pedido soou como uma ordem.

Ele comprimiu os lábios, olhando para mim, ansioso, pigarreou e disse:

Na escuridão do covil sombrio, a raposa e a cobra batalharão.

Na luta, não há luz, somente escuridão.

A decisão será tomada, e a culpa preencherá o vazio que a mesma fez.

E a decepção, revolta e raiva atacarão de uma vez.

A guerra terá acabado, e a paz não estará renovada

E somente uma vida não será poupada.

— Normalmente, visões são decifradas e acontecem em meses, mas essa em específico tem séculos, e nosso tempo está acabando.

— Por que você se importa com o mundo humano? — ele mordeu os lábios, como se quisesse dizer algo — Conte-me.

— Os humanos são frágeis, mas espertos. Eles desconfiam de seres como nós, e para deixá-los seguros, o mundo mágico os protegem de nós mesmos.

— Apenas isso? Proteção? — perguntei indignada.

— Eles acreditam em divindades, cada país, cada cultura tem isso, e mitologias também. Existem alguns de nós em cada governo, manipulando-os e escondendo da verdade — se virou para mim — Por pura proteção.

— Ninguém nunca descobriu? — perguntei.

— Várias vezes, mas eles nunca duram — ele percebeu a incógnita na minha cara e explicou — Humanos são egoístas. Todos, sem exceção, que conheceram o mundo mágico, morreram pela vontade de ser como nós. Eles se matam. É um ato involuntário, eles são levados à loucura com a verdade.

— Então, não existe híbrido de humano com qualquer ser?

— Não, e nunca vai existir — olhou para mim sério — Akemi, o mundo magico já sofreu com a grande perda de suas raças, se acontecer o mesmo com a Terra, mesmo tendo condições de salvá-la, todo equilíbrio magico cairá, e uma nova guerra começará. Além da que enfrentaremos agora.

— Por quê uma nova guerra? — endireitei-me na cadeira, e Nicholas ficou em minha frente.

— Poder! — disse óbvio — Novos lugares para povoar, a terra seria um novo campo de batalha por território. E sete bilhões de vidas não precisam ser desperdiçadas.

— Enfrentaremos essa guerra — apontei para tapeçaria, e Nicholas assentiu — Quem são eles?

Nicholas mordeu o lábio inferior, virou-se, dando atenção ao livro em cima da mesa.

— Ainda não temos certeza.

O silêncio dominou a sala, tudo que se ouvia era a respiração um do outro e o folhear das páginas do livro que Nicholas lia. Conseguia sentir que Nicholas queria evitar o assunto. Ele com certeza sabia mais do que qualquer um. O modo como folheava as páginas, rápidos e sem olhá-las, ele deveria estar pensando em algo para me distrair.

— Deveríamos estudar, mas você não tira minhas dúvidas — ele paralisou, e eu continuei levantando-me do trono e indo em sua direção — Você tem algo que eu quero, e o mesmo comigo, mesmo não sabendo o que você quer de mim, mago, você deveria dizer agora. — fiquei ao seu lado, olhando-o soslaio.

Para alguém com anos de experiência, sua expressão facial o entregava; a leve camada de suor que escorria de seu couro cabeludo, o maxilar definido contraído, a vontade de esconder a verdade e o desviar dos olhos. Tudo indicava que estava nervoso.

— O que eu tenho que você quer? — indagou, engolindo seco.

— Quando conheci Naomi, ela me contou que é um mago forte, e que poderia ser sua aprendiz — dei a volta na mesa para encará-lo melhor, ele continuava tenso — O que eu quero é conhecimento.

O loiro me olhou surpreso com os olhos azuis brilhando, seu rosto se iluminou com o mais bizarro sorriso pra mim, então riu, claramente nervoso, e suspirou de alívio.

— Qual é a graça? — perguntei.

— Apenas — riu, balançando a cabeça — Nada. É claro que você pode ser minha aprendiz, Akemi. Seria uma honra. — disse sorridente, curvando-se de leve.

Sorri forçado, acenando com a cabeça.

— E agora, mestre, o que você quer de mim? — soou mais sarcástica do que deveria. Bom.

Olhar de Nicholas vacilou, porém, então ergueu a cabeça, mais sério.

— Eu preciso que tenha mente aberta para o que irei te contar — ele me disse, apoiando os braços esticados sobre a mesa, olhando para mim diretamente.

— Eu sempre estou — retruquei.

— Estou sério, Wada — intensificou, e me arrepiei de desgosto ao ouvir o sobrenome.

O que poderia fazer? Faz parte de mim.

— Eu também — devolvi a intensidade do olhar, repetindo os movimentos e me inclinando para mais perto.

— É sobre seus pais e sua irmã — eu me arrepiei novamente.

Um pouco desnorteada, cravei as unhas na mesa, mantendo-me em pé - Nicholas percebeu isso. Não era um tabu falar de minha família, mas era um desconforto. Citar eles me afetavam, era como se um deles tivesse morrido, um sentimento ruim atingia meu estômago.

Eu sempre soube que Arisu não era a única em perigo.

— Continue. —  instiguei. Minha vez de engolir seco.

— O único modo de nascer um sobrenatural é nascendo de pais sobrenaturais… até aí, tudo bem? — indagou receoso.

Não, eu não estava bem. Suando pelo nervoso que se apoderou de mim, ligeiramente tremendo; estava sendo fraca.

— Sim! —  me exaltei, e Nicholas me olhou cuidadoso.

Odeio isso.

— Apenas, por favor, continue —  insisti, mantendo contato visual.

Ele assentiu e continuou:

— Bem, eles são sobrenaturais, mas especificamente, seu pai, um feiticeiro, e sua mãe, uma kitsune.

— Uma kitsune? — indaguei surpresa, meu coração estava acelerado — Isso é incrível!

— É —  revirou os olhos — É sim.

Eu sorri de felicidade, mas não havia cabimento estar feliz nesse momento. Lembrei-me da guerra, e de meu infeliz avô, Arthuro, e todo o desastre que causou com suas regras de separação de raça.

— As separações de raças…

— Eles quebraram a regra — suspirou aborrecido — Poderia parar de me interromper? — perguntou retórico — Arthuro é seu avô por parte de pai. A vista dura era para todos, inclusive seus filhos.

— Filhos? —  perguntei, e sorri para o loiro quando franziu a sobrancelha.

—  Você tinha um tio. Vamos chegar lá! Espera —  continuou, passando a mão pelo seu cabelo loiro — Como eu disse, ele não foi bonzinho com seu pai. Quando descobriu sobre o namoro dos dois, mandou matá-los, mas ambos acabam fugindo e nunca voltaram a pisar em qualquer território de Arthuro.

Fiquei boquiaberta, processando tudo mentalmente.

— Caramba, eles eram os Bonnie e Clyde medieval — bufei, ainda surpresa, passando a mão pelos cabelos.

— Bem, no caso, Bonnie e Clyde seriam seus pais, e não ao contrário. Já que são mais velhos, e sem morrer, dessa vez — sorriu torto.

Olhei para ele com a cara que dizia “sério?” e ele parou de sorrir.

— Resumindo, seus pais não participaram da guerra, após tudo isso acontecer, a profecia veio e, milhares de anos depois, você e sua irmã nasceram.

— Essa profecia? — apontei para mesma tapeçaria escrita de antes.

— A própria.

Respirei fundo, ficando de costas para Nicholas e sentei na beirada da mesa, encarando minha bota preta.

— Pode continua.  — pedi, mas ele ficou em silêncio.

— Nicholas. — chamei-o, olhei de soslaio e me arrependi.

Ele segurava um espelho na minha direção, muito perto de mim. Eu gritei surpresa caindo no chão, me arrastando e afastando, olhando para os sapatos de Nicholas.

— Eu não posso olhar para espelhos! Tira isso daqui! — tampei os olhos com braço.

Apertei a mão de raiva, de olhos fechados, com adrenalina e medo. Eu tinha me arrastado tão rápido que já me encostei na porta. Abracei meus joelhos, ignorando os pedidos de Nicholas.

— Se quer ser minha aprendiz, tem que enfrentar seus medos, Akemi! —  sua voz apareceu ao meu lado esquerdo, sussurrando, porém frio.

— Você não pode me forçar a isso! —  minha voz soou abafada com o rosto pressionado nos meu jeans rasgado.

— É você, Akemi, olhe! É apenas você! —  ele pôs a mão em meu ombro, apertando-o de leve.

Balancei a cabeça, negando fortemente. Então, senti a respiração quente de Nicholas em meu pescoço e sussurrou:

— Sinto muito —  disse em voz baixa — In ea potestate. — cantarolou em meu ouvido.

Eu tentei afundar mais ainda no meu abraço, mas não conseguia me mexer, nem mesmo um centímetro.

— Olhe para o espelho — sentenciou.

— Não! — gritei, em vão.

Meu corpo obedecia aos comandos dele.

Eu nem ao menos pisquei, encarando o espelho e o meu reflexo assustado. Novamente, o rosto de minha mãe me assombrava, o olhar assustado piorava. Era como se eu pudesse vê-la com medo, isso me amedrontava. Meus olhos ardiam e lacrimejavam, boa parte era por reconhecer o rosto de minha mãe no espelho. Senti as lagrimas caírem, mas ainda fitava o espelho. Meu rosto, a expressão de medo, a palidez e os olhos marejando; parecia uma criança. Nada além disso.

— Já pode para! Eu já estou me olhando — meus lábios começaram a tremer, ainda estava apavorada, com o peito retorcendo de temor.

— O que há de tão ruim no espelho, Akemi?

— Eu… eu… eu … — murmurei, cega pelas lágrimas.

Algo estava acontecendo. Por um segundo, eu vi um sorriso. A mesma expressão sombria do meu sonho. Memórias daquele ser me atacando me atingiram, dessa vez, pior. Era minha imaginação me assustando. A imagem no espelho se contorceu, ela sorriu abertamente. Eu gritei o mais alto que podia, forçando meus olhos a se fecharem e fugindo da imagem horrenda que em minha frente.

Ela estava vindo novamente.

— Você não sabe o que estava fazendo… por favor… — implorei, chorosa com um nó na garganta.

— Akemi, ela não está aqui.— sussurrou em meu ouvido, afagando minhas costas.

— Sim, ela está... — o nó em minha garganta não me deixou terminar a frase.

— Olhe novamente. — mandou, e meu corpo respondeu - mesmo eu reclamando.

Minha boca secou, olhava perdida para o espelho com o coração na mão. Eu não mexi um músculo, nem ela, por minutos. Eu não me acalmei, mas meu coração desacelerou, continua apavorada.

 Finis. — pronunciou suavemente, e meu corpo pesou e escorreu pela parede.

Fechei os olhos, respirando de boca aberta e suando muito. Tudo que conseguia pensar era na assombração no espelho, e na maldade que Nicholas fez.

— Desculpe, foi necessário. — disse soando sincero, acariciando minha testa suada.

— Se afaste de mim! — resmunguei, reerguendo-me com as mãos firmadas no chão. Nicholas ergueu a mão para me ajudar, eu cuspi nela e o olhei — Agora, eu não quero sua ajuda, bastardo…

Ele ri, limpando a mão na roupa, virou-se e caminhou até a mesa, folheando novamente o livro.

— Nossa lição acaba por hoje, Wada. Volte amanhã no mesmo horário. — ele nem olhou para mim, e eu fingi que não o ouvi.

Arrastei-me para fora da sala, me sentindo tonta e apoiando na parede. Fechei a porta de madeira o mais forte que consegui, só pra demonstrar minha raiva. Estupidamente, eu ainda parecia uma criança chorando.

Respirei e inspirei fundo tentando me acalmar, com a mão no coração, eu repeti mentalmente “o pior já passou, o pior já passou“

Estúpidas vezes que tento me reconfortar, e acabo me lembrando que estou no começo da dor imensa que me espera.

Estava deitada, meu corpo reclamava de dor e minha cabeça latejava, pelo menos, lençóis macios e felpudos me acolhiam, e um constante afago em meu cabelo me tranquilizava.

Deitei-me de lado e abri os olhos. Estava com a cabeça encostada no colo de alguém, é um homem. Ergui minha cabeça para encarar quem me acariciava, mas me arrependi pela dor em meus olhos.

— Sou eu, princesa — a voz familiar preencheu o vazio, seu tom calmo e carinhoso aquietou meu coração agitado — No que você se meteu… — murmurou, e tentei respondê-lo, mas ele tampou minha boca — Foi retórico, eu sei o que aconteceu — disse óbvio, e eu reclamei, mordi sua mão. Ele riu — Okay, pode falar, mas maneire.

— Eu não quero falar. — disse com muita sinceridade, aproveitando o contato suave de seus dedos em meu cabelo.

Poderia dormir novamente, pois o cansaço me puxava ao 15° sonho, mas ainda estava assombrada pela imagem dela, e de como fui fraca com Nicholas.

— Tyler, eu sou fraca.

— Isso não foi uma pergunta, não é? — perguntou, e neguei com a cabeça — O que eu posso fazer sobre isso?

— Me ensina a luta.  — minha voz soou abafada.

Tão estranho pedir algo para Tyler. Nós sempre brigamos - realmente, nem sei o porquê - acho que é pura implicação de criança. De qualquer forma, aprecio momentos como esse.

— Sim, mas descanse primeiro. — disse meio bobo - talvez surpreso.

— Concordo. — disse, aconchegando-me novamente nas cobertas, e esquecendo-me do que me assustava.

No meu terceiro dia em Swamoris, minha vontade era pura e preocupante, pular da torre mais alta. Assim como os outros dias, eu assistia ao nascer do sol, relembrando dos horrores da noite passada. A paz que senti antes não me atingiu novamente. Porém, sim, a bela vista me distraiu do medo, mesmo que só por alguns segundos.

A realidade me puxou, lembrando-me de mais uma aula com Nicholas.

— Mas o que aconteceu com seu rosto?

A voz matinal e calma de Idas pegou minha atenção. Novamente atrás de mim, vestindo o mesmo de ontem, porém com uma camisa azul e um rosto preocupado. Caminhou até mim e pôs suas mãos frias aos lados do meu rosto, acariciando.

— Nada. — afastando de leve suas mãos.

Idas me olhou hesitante.

— Muito invasivo? — perguntou.

— Não, é apenas... — bufei, incapaz de completar minha frase. Olhei para o nascer do sol, sem nenhuma vontade de começar uma conversar.

Apenas me calei.

— Eu e Naomi corremos, no meu caso voei, até você. Quando chegamos, você estava jogada no chão, inconsciente. Então, levei você ao curandeiro do castelo, enquanto Naomi perguntava a Nicholas o que aconteceu. Ele não contou — eu senti seu olhar em mim, mas não devolvi. Ele ri de nervoso e observou o nascer do sol comigo — Eu pensei que desmaiou de cansaço, mas…

— E foi de cansaço — o intervi — Apenas isso.

— Sem ofensa, mas você parece um panda, Akemi.

Ri de leve, e Idas empurrou meu ombro.

— Sorria, faz bem — ele sorriu brilhante também.

— Você é bipolar, só pode — resmunguei, olhando-o.

— Você também, não duvido.

Fiquei de costas ao sol, absorvendo o calor e cantarolando baixo uma música qualquer.

— Agora sim, está calma igual a antes — disse, se afastando.

— Como sabe? E coisa de anjo? — perguntei, e ele riu.

— Não, é coisa de amigos. — sorriu, e desceu as escadas da torre.

Olha, que estranho, eu estava calma mesmo.

Aproveitei mais alguns minutos me expondo ao sol, e finalmente saí da torre em direção a sala - eu meio que memoriei onde que ficava, era só seguir reto três corredores, subir uma escada e bater em todas as portas até Nicholas aparecer, e foi exatamente o que fiz. Eu contei, e na 14° porta, a cara carrancuda e jovial do mago apareceu.

— Hoje é um grande dia, Wada, entre! — ele deu espaço na porta para eu passar, atravessei o espaço, evitando contato físico — Faremos um tour por Swamoris.

Eu me joguei no trono de rico, com as pernas cruzadas, encarando o mago com o nariz torcido de desgosto.

— O que você fez ontem não irá se repetir — disse por fim — Poderíamos discutir o caso, porém, você não tem permissão de me possuir.

— Acredite, não sou eu que está te possuindo aqui — olhei-o confusa, e Nicholas esquivou — Além do mais, você não me pediu para ser seu mestre?

— Mestre, não dono.

— Uma hora ou outra, você vai superar esse medo, querendo ou não. — disse, rispidamente, encarando-me.

Depois, tirou a carranca da cara e substituiu com um sorriso forçado. Apontou para a porta e disse:

— Damas primeiro.

Revirei os olhos, levantei-me do trono em direção a porta.

— Ah, Wada — chamou em voz alta, atrás de mim — De agora em diante, me chame de Mestre, ou nosso acordo acaba — caminhou lentamente até mim, que permanecia parada — Aliás, você disse que tem algo que eu quero… o que seria?

Eu ri, olho de soslaio com um sorriso torto.

Seus olhos se estreitaram, avaliando minha expressão zombeira.

— Eu vejo você folheando o livro de Arthuro tantas vezes, mas não entende nada — desloquei-me para ficar cara a cara — Você quer muito lê-lo, deu para perceber sua frustração ao perceber que cada página apenas dizia “ Morte aos humanos que tocarem nesse livro ” — sua testa franziu, olhando-me sério — Eu não sou boba, sei do que deveria saber, Mestre. — disse a última palavra lenta e debochada.

— Mestre? — alguém disse ao nosso lado.

Viramos num uníssono para direita, onde encontramos Naomi e Tyler com olhares curiosos sobre nós.

— Eu sabia que iria acabar cedendo! Não vai se arrepender! Nicholas é um ótimo mestre! — Naomi sorriu para nós, eu e o mago apenas assentimos, mas Tyler continuava com a cara confusa.

— Os dois podem ir  na frente? — disse, suavemente, olhei para o lobisomem — Eu preciso falar com Tyler.

— Claro! — disse Nicholas, e começou a andar, seguido por Naomi.

Esperei ambos ficarem fora de vista, e que seus passos não fossem ouvidos, nem respirações, voltei a atenção para Tyler, que me examinava com o olhar estranho.

— Não me olhe assim — aproximei do lobo — Odeio isso.

— Não dá pra evitar. Preciso saber se você continua… você — riu, e começou a andar.

Doeu em meu coração em reconhecer que não seria mais a mesma.

Esse lugar está me transformando, minha própria história está me moldando e estou descobrindo lados de minha família e de mim que não conhecia.

— E eu continuo? — perguntei num tom baixo.

Tyler parou de andar, e olhou para mim com a testa franzida.

— Está desconfiando de você mesma? Esse é o meu trabalho — brincou, mas eu não consegui ao menos sorrir — Okay, princesa, o que aconteceu enquanto estava fora? — se reaproximou.

De repente, apertei os punhos de raiva.

— Sim, aonde você estava? — dei um soco em seu peito, Tyler cambaleou para trás, espantado — Onde você está quando eu preciso? Não é meu guardião? Por que não me protege?

— Pela dor que eu tô sentindo, você não precisa de ajuda. — resmungou, acariciando o peito — Caramba, essa realmente doeu.

— Nem perto do que me aconteceu ontem — uma risada triste escapou, meus olhos começaram a alagar, coloquei a mão no rosto, tentando me recompor — Eu precisei de você, Tyler.

— Hey, Akemi — desajeitado, ele me abraçou, esmagando meu corpo com uma força desnecessária sobre ele. Tyler estava tremendo — O que ele fez com você, Akemi?

Ofeguei, abraçando-o de volta, colocando meus braços ao redor de seu torso. Ignorei o cheiro de cão que exalava dele, isso não importava agora.

Abraço; o que eu mais precisava nessa jornada toda. Laurent afagou minhas costas enquanto eu soluçava baixo, apertando a blusa preta que vestia em minhas mãos. Parecia que chorar piorava, pois me torturava relembrando de tudo que me aconteceu; cenas da minha casa destruida, sangue, morte, a outra eu e minha família. Se eu pudesse, jogaria toda a culpa em cima de mim por deixar Arisu sozinha naquele dia fora, mas seria egoísmo. Se eu pudesse, não arcaria com toda essa responsabilidade sobre mim, mas também seria egoísmo.

A minha própria saúde mental não importava, porque precisava salvar os outros, sem realmente me salvar do buraco escuro que caía - não era lindo como o céu à noite, e sim sombrio, como o olhar de Arthuro ou os olhos do monstro no espelho, preenchidos de loucura.

— Desculpa — afastei-me, secando o rosto — Devemos ir.

Comecei a andar em direção a mais uma escada que deveria descer, sem a companhia do lobo.

Estar fora do castelo me aliviava, porém, o olhar incessante e indiscreto das pessoas sob mim me causava desconforto.  Era de se imaginar, cidade pequena, e Idas já me disse uma vezes que todos sabiam a minha história, ou seja, conheciam meus pais, talvez meu medo de espelhos, e que eu sou neta de Arthuro; isso explicava o ódio no olhar.

“Ande de cabeça erguida”

“Eu fiz nada de errado”

“Eu não cometerei os mesmos erros de meus familiares” repeti a mim mesma, e estava certa. No entanto, eu ouvi cada palavra maldosa direcionada a mim, via o olhar mortal de Nicholas nas pessoas que diziam isso, o olhar atento de Naomi na multidão e a respiração acelerada de Tyler, atrás de mim.

“Protegendo a maldita!” gritou uma mulher, e riu descontente acompanhada por um bando de homens.

Isso era humilhação pesada.

— Já chega! — a voz de Nicholas silenciou o murmúrio, seus olhos azuis se transformaram em púrpura, um músculo na sua mandíbula se contraiu enquanto observava sério os cidadãos, tão sério que me deu um arrepio — Ela é protegida minha! Qualquer um que a atacar, se entenderá comigo, entenderam?

Forçados, eles concordaram, dando espaço para que nós passássemos. 

Andamos - ainda acompanhados pelos olhares dos cidadãos - até uma casa de madeira, que tinha uma placa escrita “Buff - Bebidas Únicas, Favoritas e Fantásticas “. Entramos nela, eu meio receosa, mas os outros calmos, cumprimentando algumas pessoas. Tyler era o excluído, como eu, e se juntou ao meu lado, rosto sério e olhar afiado, como nos primeiros dias em que o conheci.

Em um bar, com homens e mulheres bebendo e eu, sendo amiga - eu acho - dele, talvez seu instinto de proteção o atingiu. Melhor agora do que nunca. Porém, meu rosto queimava. Eles continuavam a me olhar fulminante, rindo e soltando comentários maldosos. Apertava meus punhos de raiva, tanta que perfurei minha própria carne. Eu hiperventilar, como se estivesse me uma sauna, mas não estava no inferno, sendo julgada.

Olhei para Nathaniel, estava sério enquanto conversava com o barman, não prestando atenção a nós.

Mas que babaca! Me levou para um covil de cobras.

— Eu não me sinto bem. — disse para ninguém em especial.

A sala rodeava, e eu também. Acabei batendo em Tyler para me manter em pé, mas quando sua mão encostou em meu braço, com a pele à mostra, meu corpo rejeitou o contato. Era uma eletricidade nada boa. Meus pelos eriçaram e rosnei baixo para ele. O cheiro dele fazia meu estomago revirar. Com um lobisomem ao meu lado, era uma provocação, o olhar dominador que transmitiu para mim em questão de segundos era uma ameaça. Eu me afastei, rosnando baixo.

Eu não vi por onde andava, acabei derrubando a cerveja de alguém no chão, e o líquido penetrou nas feridas que tinha feito com as unhas. Arfei de dor, enquanto, bem ao meu lado, um homem ruivo esperneava palavrões para mim, igual a um zumbido de mosquito. Eu não sei o que falava, gritava, no entanto, era irritante.

— Cale-se — passei a mão ensanguentada em seu rosto, encarando o lobisomem em minha frente — Minha área, lobo.

O ruivo prendeu a mão em meu pescoço, suas unhas cravando a carne. Mas meu corpo suava. Sua mão escorregou, eu segurei seu braço com uma mão e a outra a enfiei em sua boca. O formigamento satisfatório me preencheu, o rosto do ruivo brilhou com a luz calorosa que o preenchia, o fogo.

— Akemi! — alguém gritou, e o lobo me chutou pela barriga.

Aterrissei do outro lado da sala, batendo em espelhos emoldurados na parede e os esmagando. Os cacos estilhaçados caíram em minha volta, alguns enfincando em mim.

Estava entorpecida demais para sentir a dor. Curioso. Eu me sentia bem.

Cada ser que respirava me olhava como um monstro, com olhos arregalados e boquiabertos, prontos para me atacar. Eu realmente não conseguia olhar para eles, tudo que via era seus rostos embaçados, vozes distorcidas, no entanto, entendia tudo que falavam.

“É a nossa destruição”

“Deveríamos matá-la enquanto há tempo”

“Não, Akemi ainda está ali”

Lamentos e maldições, era tudo que escutava. Além do ódio cego que seus corpos exalavam; o ódio deles, atiça o meu ódio.

Animais, isso que eram.

 Esperando pela briga, para arrancarem minha cabeça e exibi-la para o mundo. Extinguir minha raça para sempre, assim como a milhares de anos atrás. O nojo arrepiou meu corpo, a raiva alimentou minha alma adormecida.

Finalmente, meu outro lado despertou.


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Notas finais do capítulo

maior capítulo que já fiz na vida. Gosto de escrever isso tudo.
comentem e favoritem ai se quiserem
corrijo depois
vlw



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