Além Do Horizonte escrita por Amber Brownie


Capítulo 3
Capítulo 2 - Um Sonho Precioso




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ALÉM DO HORIZONTE

 

Capítulo 2

Um Sonho Precioso

 

Eu estava sozinho na sala do clube fazendo a triagem. Bom, preciso dizer que não prestava realmente atenção no que lia. A minha frente, as folhas apenas passavam sem sequência. Fechei o livro, desistindo de continuar fingindo a trabalhar naquilo.

Não é como se eu odiasse fazer parte do clube. Afinal, o clube trabalha com temas históricos e mitológicos, um dos meus assuntos favoritos. É claro que nem todos eram interessantes para os outros como eram para mim, mas mesmo assim, o lado bom de estar em um clube como esse é o tempo livre que você pode ter.

Por exemplo, uma das vantagens do clube era ter uma biblioteca privada dentro da escola onde só os membros podiam ter acesso. Foi aqui que eu encontrei alguns livros de arqueologia e alguns de história da magia. Apesar de ter nascido em um dos clãs mais poderosos dos dias atuais, tudo o que aprendi foi o básico sobre artes marciais, magia e sua história.

Você deve saber que quando um feiticeiro tem poderes muito fortes que podem impedir até que ele seja imortal, como o meu caso, nunca foi motivo de celebração entre nenhuma família mágica. Isso era conhecido como um presságio de agouro.

Não sei bem quando esse sinal começou a ser percebido. Porém, pelo pouco que eu consegui descobrir, esse tipo de manifestação não vinha sendo citada desde o aparecimento de Clow Reed.

É por esse motivo que eu não conseguia me concentrar nas antologias.

Pela maior parte da minha vida, pensei que minha presença era temida por esse motivo. Isso justificaria o porquê tantos queriam e tentaram me eliminar. Então, quando Meiling disse que eu deveria ficar longe de Kinomoto, eu compreendi.

Ela era alguém como eu.

Talvez não um sinal de uma catástrofe, mas uma ameaça para os outros clãs. Ela mesma tinha dito, Meiling só confirmou. Talvez Meiling quisesse me avisar sobre algo, mas isso ia contra sua dever com os Li. Ela não faria nada que degradasse sua reputação no clã mesmo que fossemos primos, até porque nosso parentesco não significava nada em tudo isso. Seu dever era me observar.

Olhei o relógio na parede do clube marcando cinco horas. Guardei os livros separando por pilhas e arrumei minhas coisas pronto para ir para casa. O tempo tinha passado voando sem que eu percebesse. Por esse motivo pensei que Kinomoto já tivesse ido embora, mas ela estava outra vez no corredor a minha espera.

Depois de trancar a sala do clube, me virei para ela. Estava parada no meio do corredor me observando atentamente. Não usava as meias pretas e tinha curativos em seus joelhos. Provavelmente onde o vidro tinha cortado sua pele ontem a noite.

— Seus ferimentos já melhoraram?

Seu rosto ficou vermelho e Kinomoto baixou os olhos para seus pés.

— S-sim.

— Kinomoto — ela voltou a me fitar um pouco surpresa — se você não se importar, eu queria conversar com você hoje.

Ela me encarou franzindo as sobrancelhas. Pelo tempo que ficou em silêncio, imaginei que iria me atacar como era de costume, mas ela não o fez. A agradeci internamente por isso. Claro que sua postura desconfiada permaneceu, e eu não podia criticar sua decisão. Por dentro, eu só estava imensamente aliviado por apenas evitar outro confronto.

Nós andamos por um tempo até anoitecer. Kinomoto parou em uma barraca de comida para comprar uma porção de okonomiyaki no meio do caminho. Em seguida, sentamos em um banco ali perto do parque o rei pinguim. Igual ao dia em que nos encontramos pela primeira vez, não havia ninguém por perto. Voltei a fitar Kinomoto. Ela já estava comendo a porção que tinha acabado de comprar.

— Ei. Você devia comer isso em casa — minhas palavras fizeram com que ela parasse de comer no mesmo instante e tive um mal pressentimento — Ou… você não tem onde morar?

— Eu moro em um apartamento!

— Não conseguiu pagar o aluguel?

— Consegui pagar o desse mês.

— Então, você está tendo problemas com os vizinhos?

Dessa vez, Kinomoto ficou totalmente imóvel.

— É-é sobre isso que você quer falar?

Oh, então é isso. Bom, se você olhar bem para Kinomoto, veria apenas uma garota normal que tinha acabado de se mudar. Era tímida e não se sentia confortável em ser notada. Seu suéter rosa cobria quase todo o uniforme e dava a impressão de que ela era menor do que parecia.

Não sei dizer que havia um motivo proposital para isto, como se ela quisesse se esconder de todos. Nossa relação não era íntima o suficiente para que eu pudesse afirmar qualquer coisa sobre ela. Continuei a conversa casual quando ela voltou a comer. Esperava tentar descobrir o que Meiling quis dizer com aquela conversa do refeitório. Que motivo a família Li teria para que eu me afastasse de Kinomoto?

— Na verdade, eu me pergunto o motivo que você se mudou para cá.

— Nada em particular. Porque a pergunta?

— Bom, é que alguém me disse que eu devia me afastar de você.

Kinomoto permaneceu em silêncio por um longo tempo até voltar a falar.

— Entendo.

Ela não olhava para mim. Seu rosto estava inclinado para o outro lado, então eu também não podia seu semblante. Eu esperei ansioso qualquer tipo de reação, mas Kinomoto permaneceu parada e não voltou a comer. Talvez esse seja um assunto muito delicado para chamar de “conversa casual”. Agora que cheguei até aqui, não posso desistir.

— Alguém pediu que você vinhesse até aqui?

— Você acha que se alguém tivesse me pedido para vir aqui… Eu apenas diria agora quem é?

De repente, sua presença mudou da água para vinho. Havia algo perigoso na forma que ela falava. A garota normal tinha virado a feiticeira mortal naquele instante. Uma conversa casual era uma coisa, mas se eu passar disso não conseguiria informação nenhuma.

— Se você me tirar da sua lista, você pode almoçar de graça pelo resto da sua vida.

—I-isso não é necessário.

Havia uma expressão estranha em seu rosto. Talvez a minha tentativa de quebrar o clima pesado não tenha surtido efeito. Então pensei em abordar outro tópico.

— Você não está aqui para me eliminar, não é?

— Não. Eu não esperava encontrar alguém como você aqui.

— Então você também não precisava tentar me matar!

Ela apenas me ignorou, voltando a comer tranquilamente. Será que eu poderia considerar que alguém havia pedido que ela vinhesse até aqui? Kinomoto não negou essa possibilidade. De qualquer forma, continuei a conversa agora usando um tom mais gentil.

— Posso fazer outra pergunta?

— Sim.

— Porque você me segue?

Kinomoto pareceu surpresa.

— Oh. Você é interessante Li-kun.

— Eu? Interessante?

Oh-oh. Minha voz quebrou. Nunca em nenhum momento da minha vida alguma garota tinha dito isso sobre mim. Quero dizer, aquela era a primeira vez que eu ouvia algo assim ser dito por uma garota bonita, ou de uma feiticeira, ou de uma garota normal. Er, nenhuma menina nunca tinha se interessado por mim, pelo que eu me lembro.

Urgh. Percebi o quão triste isso soa.

— Tem alguma coisa errada, Li-kun?

— Não é nada. B-bom, o que há de interessante em mim?

Tentei em vão evitar meu rosto de esquentar. Ahh. Era uma coisa boa que ela não pudesse ver meu rosto em um momento como esse.

— Hoe? Eu pensei ter dito. Eu nunca conheci alguém imortal.

Ah, então era isso. Não pude evitar de ficar um pouco enfurecido.

— Por acaso você passou esse tempo todo testando a minha imortalidade?

— Qual o problema?

Sua expressão estava curiosa novamente, talvez um pouco ingênua demais. Céus, eu estava começando a ficar sem maneiras de lidar com ela.

— É claro que há um problema! Eu te disse que isso dói!

— Oh. Eu só estava tentando me familiarizar.

Ela se encolheu, parecia sentir culpada de repente. Bom, pelo menos agora eu entendia o que ela estava fazendo. Nunca foi seu objetivo me exterminar. Apenas curiosidade. Mas nada disso diminuiu minha fúria.

— Há outras maneiras de fazer isso sem precisar me apunhalar todo dia!

Kinomoto inclinou o rosto me olhando interrogativamente. Ela parecia querer dizer “então escolha uma agora”.

— Nós vamos ter que trabalhar juntos se você quiser saber mais sobre a minha imortalidade. Então, nada de lutas.

Ela me olhou de forma duvidosa.

— Olha, eu tenho meus motivos. Ou você vai querer ficar gastando energia à toa?

— Ah ok.

Ufa. Pensei que isso seria mais difícil. Agora meu problema é achar uma maneira indolor que Kinomoto pudesse se acostumar a minha peculiaridade. Ela continuou a me encarar e de alguma forma, sabia que essa conversa não iria terminar sem um objetivo claro.

— Então… Podemos conversar. O que você quer saber?

— Você pode envelhecer?

Assenti. Isso era algo que eu sabia há um tempo. Inevitavelmente a minha morte seria por velhice já que não podia ser assassinado ou tirar minha própria vida. A verdade é que eu posso estender minha vida por décadas ou até séculos. O poder mágico que eu tenho permitiria até fazer isso com outras pessoas, porém era algo proibido.

— Seu poder de regeneração não te cura de doenças, não é?

— Não. Também não posso morrer por causa disso, eu acho.

— Tem certeza? Seria bom experimentar...

Por acaso ela estava pensando em me transformar em cobaia para seus experimentos? E porque essa fixação tão grande em me derrotar?

— Ei, eu não sou um chefão de video-game! Você sabe quantos uniformes eu perdi com esses seus experimentos?

— Então não fique vestido.

— Você quer que eu fique nu!?

Tentei evitar, mas a minha imagem completamente nu com Kinomoto testando suas teorias surgiu mais rápido a minha mente. Não parecia nada agradável.

—P-por que v-você tem que ficar nu!?

— É-é mesmo, você tem razão.

Kinomoto ficou completamente vermelha. A ideia também não havia lhe agradado. Se eu não me senti confortável imagino que Kinomoto esteja se perguntando como chegamos até aqui. Ok, talvez isso tenha passado dos limites. Antes que eu imaginasse outra besteira, mudei de assunto.

— Kinomoto-san, você está interessada em entrar no clube de história?

— Para nos encontrarmos mais vezes?

— Acho que sim, bom, lá é basicamente um clube para feiticeiros.

Isso era verdade. Foi um dos motivos que fez com que reabrimos o clube. É certo que a influência dos Hiiraguizawa também contribuiu para isso. Por esse motivo eu fui muito firme em recusar pessoas normais, não só para não se aproximarem de Meiling como de mim. Bom, Meiling só concordou porque me vigiaria sem problemas e com auxílio dos outros.

— Você tem mais chances de se acostumar comigo dessa forma não?

— É verdade, mas... não pretendo fazer amigos.

— Mas você está bem comigo?

Kinomoto pareceu distante antes de responder. Ela guardou a embalagem dentro da bolsa e virou seu rosto para a rua movimentada do outro lado.

— Você me trata normalmente depois que viu o que eu posso fazer. Então... Sim.

Eu podia dizer o mesmo a ela. Mesmo que eu vivesse rodeados por feiticeiros, uma vez que eles descobrem quem eu sou imediatamente me tratam diferente. Kinomoto não tinha medo de mim quando descobriu que eu era imortal, porque ela recebia esse tipo de tratamento antes.

Ela sabia que era assustador ser rejeitado.

— Então porque você não se junta? — perguntei tentando parecer tão casual quanto pûde — você pode sair depois se não gostar.

— Eu não posso. Eu sou amaldiçoada. Não posso viver uma vida normal. O sangue… que corre nas minha veias, esse poder… Não é normal! — Kinomoto hesitou. Havia uma linha tênue na sua voz. Ela era sombria e hostil, talvez refletindo toda a rejeição que tivera de outras pessoas — Eu só trago desgraça… as pessoas ao meu redor.

— Eu também.

Kinomoto levantou o rosto surpresa. Seus olhos verdes estavam arregalados pelo o choque do que eu tinha dito. Acho que ela nunca tinha esperado que alguém fosse dizer uma coisa assim. Para ser sincero, eu também não.

Tentei lhe sorrir com o máximo de gentileza que eu pude. E era tudo o que eu podia fazer por ora. Esse sentimento de não achar mais que está sozinho no mundo e ter que aceitar o que dizem, talvez pudesse chegar até ela como chegou a mim hoje. Levantei com a bolsa no ombro depois de me despedir e comecei a andar em direção ao meu apartamento.

Eu moro em uma região tranquila da cidade há poucos minutos do parque Pinguim. Antes de subir as escadas, lembrei de passar na caixa de correio. Acho que faziam meses que eu não olhava minha correspondência. Até porque eu não era o tipo que recebia muitas cartas. Porém, dessa vez a caixa estava lotada com cartas e pequenos embrulho da minha mãe. Peguei tudo tentando organizar as cartas por ordem em uma das mãos.

Urgh, ainda haviam cartas do ano passado.

As vezes minha mãe mandava cartas com minha mesada e até compras do mercado, para me lembrar de que ainda estava viva. Ela também pagava o aluguel do meu apartamento. Minhas contas de luz, água e gás eram debitadas direto da minha conta, então eu não precisava me preocupar com esse tipo de coisa.

Subi as escadas tentando não derrubar todos os embrulhos e cartas. Destranquei a porta e entrei. Finalmente pude livrar meus braços de tanta coisa quando coloquei tudo em cima da mesa. O amontoado de cartas e embrulhos fizeram meu quarto parecer bagunçado.

Não havia ninguém morando comigo. Ninguém para dizer “bem vindo de volta” ou perguntar como tinha sido meu dia. Por hábito, liguei a TV. Um som alto de risadas saiu dela. Talvez um programa de comédia. O som ecoava as minhas costas enquanto eu trocava de uniforme. Preparei um banho, antes de começar a fazer o jantar e fui me concentrar nas cartas.

Pus uma almofada no chão e sentei em frente a mesa bagunçada pela minha correspondência esquecida. A cada envelope que eu abria, tinha uma notícia diferente com um embrulho e cartão postal junto. Bom, minha mãe não morava comigo porque vivia viajando pelo mundo. Mas não foi sempre assim. Só quando eu precisei me mudar para Tomoeda que as coisas se tornaram como são hoje.

O último envelope tinha sido enviado da Etiópia no fim do mês passado. Porém dentro dele havia apenas um cartão em branco. Na superfície, pude sentir um leve poder mágico, então o guardei de volta. Coloquei ele na bolsa e verifiquei o banho.

Quando tinha água o suficiente, desliguei a torneira e comecei a preparar o jantar. Acabei decidindo por fazer um lámen com algumas ervas que minha mãe tinha enviado. Um jantar perfeito para um estudante que morava sozinho. Eu mantive a TV ligada o tempo todo para evitar a solidão. No final, só me deixou mais solitário. Eu já estava acostumado com isso, de qualquer forma.

Passei meia hora comendo, não entretido pela TV, mas pelos pacotes enviados pela minha mãe. Alguns tinham pequenas esculturas dos locais históricos e souvenirs da cidade. Tudo era muito variado. Guardei os que achei mais preciosos na gaveta da minha escrivaninha junto com os outros que ela já me mandara. Lavei os pratos e tirei minhas roupas.

Isso sempre me deixava um pouco nostálgico dos tempos que eu vivia como nômade. Como eu morava na China haviam conflitos em que eu ficava preso. Mas comparando a minha vida hoje, a situação é totalmente pacífica. Não posso mentir que às vezes sinto falta da excitação por explorar.

Não passei muito tempo no banho. Depois que terminei, voltei a vestir as roupas que tinha tirado. Eu durmo com a minha roupa de casa. Isso é bastante prático se você quer diminuir a quantidade de roupa suja. Voltei ao quarto com a minha velha calça de moletom surrada e me sentei na cama.

O som de risadas tinha acabado sem que eu percebesse. Decidi assistir ao noticiário enquanto secava o cabelo. Aparentemente, uma menina tinha desaparecido há algumas semanas e não foi encontrada. Era semelhante a uma notícia que eu tinha visto no jornal na escola hoje. Logo que terminou, a reportagem começou a falar do aumento de visitantes a cidade.

Oh, talvez por isso Meiling estivesse ocupada hoje. Isso quer dizer que amanhã se ela perceber que eu não obtive nenhum progresso quanto as antologias, vou oficialmente me tornar um cara semimorto.

De repente, o rosto de Kinomoto apareceu em minha cabeça.

É por causa de uma maldição que caiu na minha família anos atrás. Nós tínhamos muito poder e os outros magos nos viam como uma ameaça. Foi o que acabou matando a todos do meu clã. Eu sou a última sobrevivente.

Não parecia ser uma mentira. Era uma informação muito valiosa, no entanto. Eu não tinha nada a dizer sobre. Foi a primeira vez que descobri que existia uma família mágica tão odiada entre os clãs. Suponho que isso explicava porque ela se isolava de todos. Até porque ela não iria?

O mesmo para mim.

Sou imortal desde que nasci, e me convenci de que não tinha nada de incomum nisso. Foi depois que conheci outros feiticeiros, perfeitamente normais que percebi que eu era o atípico. Aceitar isso não foi fácil. Tudo o que eu acreditava desmoronou. Comecei a ser tratado diferente dentro do clã. Nunca vou me esquecer de toda a angústia que passei.

Parei de secar o meu cabelo por um momento. O que fazer? O que fazer?

Kinomoto Sakura… ela não era uma garota boba. Isso eu sabia desde o começo. Quando a encontrei naquele penhasco estava claro nos olhos dela — ela queria me matar.

Você me trata normalmente mesmo depois que viu o que eu posso fazer. Então, sim.

Ela parecia tão solitária quando disse isso para mim. Esse era motivo o suficiente para querer protegê-la.

Eu não queria que Kinomoto sumisse um dia. O fato dela existir me fazia sentir menos sozinho. Imagino se ela também sente o mesmo. Além disso, com Meiling por perto é uma questão de tempo até que o clã dos Li interfira. Eu deveria fazer alguma coisa. Mas… quebrar o trato com os Li? Não estou muito certo disso.

Mas de uma coisa tenho certeza. Eu tenho o mal hábito de ser teimoso com assuntos em que não deveria me meter. Por respeito ao trato que fiz, meu cuidado se tornou dobrado. Isso pode até ter me livrado de algumas enrascadas, mas sempre me colocou em problemas maiores. Não diria que sou intrometido por mero capricho. Pelo contrário; Quando eu me torno útil para os outros posso sentir que sou um pouco mais humano. Se outras pessoas precisam de mim é como se eu pudesse me sentir um pouco mais vivo.

No dia seguinte, quando a última aula acabou, meu hábito no horário do almoço era ir até a cantina e contornar o prédio até a sala do clube. Mas eu tinha algumas coisas para resolver antes. Por mais que eu não quisesse fui para o telhado.

Olha, normalmente o telhado era um lugar fora do limite. Por um motivo óbvio, as pessoas podiam se suicidar ali. Haviam correntes e grades em todo o redor com placas de “Não se aproxime” ou “Perigo” caso alguém passasse por ali. A porta que dava acesso era trancada com uma fechadura de discagem múltipla. A sequência de desbloqueio era conhecida por alguns dos veteranos, então o seu conhecimento acabou se espalhando pela escola em segredo.

Parecia que já havia alguém no telhado — a fechadura pendurada estava em modo desbloqueado. Alguém poderia voltar para fechar a porta, mas se isso acontecesse, a administração se tornaria mais rigorosa e imagino que os alunos não fossem gostar disso. Não que isso fosse necessariamente um problema para nós. A direção era controlada pela família Hiiraguizawa.

Nesse caso, eu quebrei as regras e pisei no telhado para encontrar alguém. Se não fosse pelas circunstâncias em que me encontrei, acho que eu nunca iria conhecê-lo. Quero que fique claro, por mais que a minha atitude teimosa me traga problemas, eu sou o tipo que não gosta de deles. Minha visita a ele foi o primeiro passo calculado para saber onde eu estava me metendo. Enquanto eu me questionava e questionava a sensatez das minhas ações, encontrei meu alvo pelo canto do olho.

O vento estava forte e frio ainda quando Maio se aproximava e ele estava esparramado em uma das extremidades do telhado com um cachecol preto. Fixei meu olhar e o chamei.

— Eriol.

— É Eriol-senpai para você — ele respondeu frisando o “senpai”, levantando o tronco com aquele sorriso ridículo.

Ele estava no último ano do colegial e no corpo estudantil. Certamente um ícone da escola. Ele me encarou. Eu não queria olhar para ele. Mas eu tinha algo a fazer e faria.

Eriol Hiiragizawa, espalhafatoso como sempre. Eu não tenho obrigação nenhuma de descrever o físico de Eriol por isso vou parar aqui mesmo.

— Você não tem exames de admissão para estudar?

— Feiticeiros não precisam de faculdade, além do mais eu posso entrar em qualquer uma apenas por recomendação.

Sim, sim. Meu ponto não era vir aqui ouvir Eriol se bajular nem o desprezar. Talvez não hoje. Mudando de assunto.

— Eu tenho uma pergunta para você.

— É claro. Esse é o único motivo que você vem me ver.

Ele soou afetado, trinquei os dentes me segurando e apenas o encarei.

— Sim é. Você sabe o porque eu não quero ver essa sua cara.

— Porque não sabe lidar com várias moças ao seu redor? — ele respondeu, bruscamente.

— Isso não vem ao caso! — rebati elevando a minha voz — É esse apelido idiota!

— Como sempre, Syao-chan se aborrece muito fácil. Você é o único menino que tem tanta energia para rebater retóricas no horário da soneca. Nenhum outro conseguiria.

— Eu já estou arrependido de ter essa conversa!

— Bom, parece mesmo que perdemos um pouco o assunto.

Eriol ficou de pé com um gesto e adquiriu um ar de sabedoria. Eu sabia que ele estava tentando me ler. A frequência com que ele fazia isso era ultrajante.

— Querendo se meter onde não é da sua conta?

Acertou em cheio.

— E se for isso?

Não havia porque esconder meus motivos, mas alfinetei apenas para tentar irritá-lo. Eriol suspirou cansado. Ele não parecia ser do tipo guerreiro. Qualquer um diria que ele não era bom em combate. Mas eu sabia melhor do que ninguém o quão excelente ele era em feitiços e artes marciais. Nossos olhos se encontraram.

— Você sai ileso — ele disse de repente — apenas se não se aliar com ninguém.

Eu nunca tinha esquecido aquelas palavras.

Há um tempo atrás, quando eu ainda morava na China. Foi uma batalha nas montanhas. Eu e Eriol nos encontramos pela primeira vez. Nenhum dos mais habilidosos feiticeiros foi capaz de me derrotar, e ainda assim, lutamos por um longo, longo tempo. Nossa luta acabou em empate no momento que ele percebeu que eu podia me regenerar. Eriol era inteligente o suficiente para aceitar rendição ao invés de perder tempo com algo que claramente não teria fim. Naquela época chegamos em um acordo. O que Eriol tinha acabado de mencionar.

— Nos demos bem, não? — ele voltou a falar de forma intimidadora.

Não respondi. Sua insinuação era que podiamos continuar assim.

— O trato nunca teve um prazo de validade.

— Claro que não, inferno! Você que colocou um Eriol!

Isso era verdade. A ideia do trato foi totalmente dele. A família Li concordou, talvez sem outras alternativas e seus laços inevitavelmente se estreitaram. O momento que foi decidido que eu viria para Tomoeda pela escolta das duas famílias. Onde finalmente deixei de ser perseguido por outros feiticeiros e pude começar uma nova vida tranquilo. Se não fosse Eriol eu poderia não estar aqui.

— Hmm.

Eu não imaginava que os minutos que eu passei me lembrando daquele momento seriam fatais. Antes que eu percebesse, Eriol tinha passado o seu cachecol em volta do meu pescoço de forma que eu não podia me afastar. Eriol, no entanto, tinha uma expressão despreocupada. Meu deus, como eu queria socá-lo!

— Mas que merda você está fazendo!?

— Dessa forma não é mais confortável para você Syao-chan? Qual o problema?

Eriol me olhou, eu sabia que o bastardo estava se divertindo com aquilo.

— É claro que há um problema em dividir um cachecol com outro homem!

— Eu pensei em ser gentil já que você odeia o frio.

— Gentil uma ova! Porque você não vai em frente e diz que me odeia, é mais simples!

— Ora, se quiser o cachecol só pra você era só ter dito.

— Eu não disse nada disso! — rebati me livrando do tecido grosso em meu pescoço — De qualquer forma, podemos voltar ao ponto?

— Hm… Você quer saber porque a sensibilidade ao frio é mais comum em mulheres?

— Um pouco, mas não era disso que eu estava falando!

— Bom, suas investidas foram interessantes até agora.

Depois que Eriol falou isso, sua expressão mudou. Como permissão para a conversa que se seguia ele perguntou:

— Alguém lhe pediu para fazer isso?

— Não. Estou aqui por mim mesmo.

— Nesse caso, não tenho nada a lhe dizer.

Eriol olhou para mim, sério. Eu sabia que ele mantinha um segredo.

— Ah, mas você nem ouviu a minha pergunta — tentei insistir, mas ele passou por mim acenando de costas enquanto descia pelas escadas.

Inútil. Perdi quase todo o tempo do meu almoço para nada. Não era tão ingênuo para pensar que Eriol me diria tudo. Mas não esperava sair de mãos abanando. Desci do telhado desistindo de ir no clube e almocei no refeitório.

Meiling e eu trabalhamos nas antologias até tarde. Sabia que ela queria se livrar daquele trabalho o mais rápido possível, mas acho estamos agindo um pouco precipitadamente correndo desse jeito. Não me encontrei com Kinomoto depois do clube. Na verdade, só a tinha visto na sala de aula — nós estudamos na mesma classe. Foi uma surpresa quando ela foi apresentada como uma nova estudante na minha sala logo depois do dia que tinha me atacado.

Dessa vez, não fiz o caminho habitual para casa. Caminhei por um tempo observando o céu estrelado até chegar em um bairro mais afastado no centro da cidade. Entre dois edifícios mais novos existia uma casa antiga como as do período feudal do Japão. No topo do telhado e no arco de entrada haviam diversas meias luas douradas. Aquela não era a casa dos Li muito menos dos Hiiragizawa. Por mais que não pareça, aqui é uma loja.

— Oh! Uma visita para mestra! — disse uma garotinha a porta e a outra a imitou continuando — Por aqui, por favor. A mestra está a sua espera!

Uma estranha loja para pessoas comuns. Para feiticeiros e o mundo da magia, esse lugar era bem movimentado. Assim como eu fui ao telhado mais cedo encontrar Eriol, eu vim a esse lugar atrás de outra pessoa.

— Ora, ora, bem a tempo.

Ichihara Yuuko. Dos seus vários nomes, ela é mais conhecida como a Bruxa das Dimensões. Dona da loja que mencionei antes. Ela é uma feiticeira muito poderosa. Tem cabelos negros mais longos do que os de Meiling e olhos vermelhos como de gatos e sempre está fumando um cachimbo e bebendo sake. Por mais que ela pareça uma jovem mulher dizem que Yuuko já mora em Tomoeda há muitos anos.

— Você colocou outra kekkai? Não há ninguém por perto.

— A outra estava ficando fraca — ela disse tragando o cachimbo despreocupada — você sabe, amanhã é noite de lua cheia.

Noites de lua cheia são muito perigosas para quem tem poderes mágicos. O sangue de feiticeiros atraem youkais, entidades malignas do mundo inferior. Mais conhecido como mundo dos espíritos.

— Então Syaoran qual o seu desejo?

Procurei na minha bolsa pelo cartão em branco e o coloquei sobre a mesa. Ela pegou entre os dedos e o levantou até a altura dos olhos com curiosidade.

— Parece que há uma mensagem psíquica dentro dele. Você quer saber o conteúdo?

— Sim, bom, já que foi minha mãe quem mandou.

Yuuko abaixou o cartão e sorriu. Ao lado da mesa colocou uma tabela de preços na mesa de modo intimidador.

— Então, quanto ao preço.

— Esse é o relacionamento que temos Yuuko-san?

— Você sabe o tipo de negócio que eu faço — ela retrucou abruptamente séria — Eu estava pensando em comer frutos do mar com sakê!

— Olha aqui, eu não sou seu empregado!

— E se você quiser saber além do conteúdo no cartão, eu quero dango para a sobremesa.

De repente sua expressão se tornou séria novamente. Ela me encarou. Então eu suspirei dando de ombros. Yuuko colocou o cartão no centro da mesa e dele saiu uma figura de uma mulher de longos cabelos castanhos e vinte centímetros de altura.

— Olá Syao-kun! Como você está? No momento eu estou em… — ela hesitou olhando ao redor — acho que na Nigéria? Ou Egito? Ah não, estou no Equador! Aqui é tão lindo~!

Argh. Isso é do outro lado mundo! E ela estava na verdade na Etiópia!

— Kaho-chan está bem perdida, não é? — Yuuko comentou fumando o cachimbo.

— É pedir demais não comentar do senso de direção da minha mãe?

Li Kaho era minha mãe. Ela tem um péssima direção, vive se perdendo. Não ajudou muito quando decidiu viajar pelo mundo quando eu vim para Tomoeda. Talvez por isso fazem seis anos ela não conseguiu voltar para o Japão e que não a vejo.

— Bom, de qualquer forma. Eu pretendo voltar logo — a imagem voltou a falar — algo muito interessante está para acontecer. Você já ouviu falar no “Além do Horizonte” ? Ele é muito precioso e está indo para a cidade Tomoeda. Por isso, você precisa tomar cuidado, Syaoran! Me promete que irá se cuidar até eu voltar, certo? Até logo!

E então a imagem desapareceu. Espera, isso é tudo?

— O que ela quis dizer com “Além do Horizonte”? — perguntei a Yuuko.

— Frutos do mar e sakê primeiro, Syaoran! Eu estou faminta!

Yuuko ignorou minha pergunta e estendeu um avental em minha direção. Eu o peguei a contragosto indo para a cozinha. Ela me seguiu e apontou onde estavam os ingredientes. Enquanto tratava o peixe questionei que meu preço não tinha sido nada justo. Algo estava para acontecer em Tomoeda e isso se chamava de “Além do Horizonte”. O que diabos eu deveria saber com essa informação?

— A informação da Kaho-chan é muito grande — comentou Yuuko, encostada na porta da cozinha — Então, quanto a sobremesa…

Ela sorriu diabolicamente. Me encontrei em um beco sem saída. Aquele era o seu jogo típico. Ludibriar as pessoas e depois as extorquir com seu próprio benefício. Bom, se aquele tipo de informação era tão importante, eu não tenho dúvidas de que era o segredo que Eriol mantinha. Ok, eu precisava daquela informação. Depois questionaria o tipo que atitude que estava tomando.

— Eu faço!

Yuuko bateu as mãos em êxtase.

— Como o esperado!

Certo, deixo me preocupar com outras coisas depois. Comecei a cortar os vegetais na bancada quando para a meu alívio, Yuuko começou a falar.

Além do Horizonte é um evento raro de acontecer. Os feiticeiros o chamam assim porque se trata de um sonho. Não um sonho qualquer, como sua mãe disse, é um sonho precioso.

— Um sonho? O que alguém iria fazer com um sonho?

— Ah, Syaoran, você estaria tão perdido sem mim como sua mãe está. — Yuuko comentou virando um pires com sake.

— Ei, dá para parar de tirar sarro da minha mãe?

— Eu imagino o que aconteceria se Kaho-chan soubesse que pode chegar em Tomoeda apenas por uma brecha mágica.

— Ela sabe — tentei defendê-la para tentar limpar um pouco a imagem do nosso parentesco — Feitiços de orientação nunca foram o seu forte.

— Eu imagino o porquê...

— Podemos parar de falar da minha mãe e voltar ao assunto?

Eu tive que cortá-la. Me preocuparia em limpar nossa relação depois. Yuuko era esperta o suficiente para aumentar meu preço e o que eu menos queria era ter que passar a noite ali fazendo comida.

— Sonhos são tão importantes quanto desejos. Eles podem mudar o mundo como vemos. Você sabe… um sonho na terra pode ser real dentro do mundo dos sonhos, mas não na realidade.

Comecei a mexer os ingredientes dentro da panela. A teoria sobre sonhos sempre me confundiu e portanto eu tinha desistido de a entender há muito tempo. Até porque não era uma informação tão relevante para pessoas como eu. Anotei mentalmente que iria me aprofundar nisso depois. Yuuko continuou:

— Assim como desejos, é preciso de uma grande quantidade de magia para conseguir um sonho precioso.

— E o que isso tem haver comigo?

— Você tem um grande poder mágico não é?

Assenti. Meu poder mágico sempre foi motivo de medo e desconfiança. O começo para o caos e toda essa história. Bom, eu podia usar para estender a vida de alguém também, não era algo que seja considerado ruim. Espera um momento. Isso quer dizer que com o meu poder mágico é possível conseguir um sonho? Como se lesse meus pensamentos, Yuuko completou:

— Um grande poder mágico é sempre disputado por feiticeiros…

— Disputado? Pensei que fosse mais como uma premonição de terror ou algo assim.

— Não existem apenas feiticeiros do bem, não é? Apesar de todos sermos bem e mal por dentro… Escolhemos um para nos guiar durante boa parte da vida.

Então, existiam pessoas que queriam me matar. Também existem pessoas que desejam o poder mágico que eu tenho. Seguindo essa lógica, assim como eu também podia estender a vida de outra pessoa, eu posso dizer que um feiticeiro podia meio que se “apropriar” do poder mágico de outro?

— Então… Alguém poderia utilizar meu poder para conseguir esse sonho?

— Essa é uma hipótese muito interessante… — Yuuko respondeu distraída.

Yuuko olhava para o lado de fora. Sem poder ver seu rosto, não sabia dizer se ela estava afirmando que meu poder podia ser utilizado para algo assim ou não.

— É por isso que há tanta gente vindo para cá?

— Isso. Quando você consegue alcançar um sonho poderoso como Além do Horizonte… O que quer que você deseja se tornará real.



Continua...


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Notas finais do capítulo

Estou de volta! o/

O que acharam? Quais as teorias de vocês? Os mistérios vão se centralizar e aprofundar um pouquinho mais na nossa Sakura por enquanto.

Muito obrigada a Suzzane pelo comentário no último capítulo e pelas outras pessoas que estão acompanhando a história!

Acho que isso é tudo, até o próximo capitulo!



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