É assim que a vida é escrita por Rina Cruz


Capítulo 1
É assim que a vida é


Notas iniciais do capítulo

Resolvi escrever essa história por ser um fato muito marcante na minha vida, que foi a perda de um amigo para o câncer. Às vezes não sabemos o que sentir ou o que falar, mas não significa que não sentimos.
Algumas coisas foram modificadas, como nomes, aparência e ordem de fatos. Apesar da protagonista ser baseada em mim, ela não sou eu.



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É assim que a vida é

 

Era um dia tranquilo no qual eu ajudava minha mãe a limpar a casa dela no domingo. Meu pai preparava o almoço com meu marido e nós duas juntávamos coisas velhas para poder jogar fora. Hora ou outra eu me virava para ver como estava meu filho, que dormia como um anjo no carrinho. Sorri.

— Quem diria que a menina preguiçosa que criei já seria mãe. – Minha mãe falou, dando risada.

— Mãe! – Bradei. Eu sempre fui meio preguiçosa, mas não gostava que falassem.

— Mas estou orgulhosa de você querida. Professora universitária, casada com um bom homem e com uma criança linda. Era tudo que eu mais queria.

— Obrigada mãe. – Ri levemente. Era incrível como o tempo passava. Parece que foi ontem que eu eu tinha me formado.

— Querida, pegue aquela caixa pra mamãe? – Pediu docemente. Mamãe nunca me deixava carregar peso, mas ela com seus cinquenta anos agora não podia arriscar. Subi na cadeira. – Cuidado amor.

            Meu bebê gemeu lentamente, o que me fez virar a cabeça com tudo. Olhei para trás e ele estava bem, mas meu pescoço fez um estralo não muito agradável. Desci da cadeira e botei a caixa na cama dos meus pais, enquanto esfregava o pescoço. Mamãe me reprendeu por ser tão descuidada.

— Aqui tem todas as suas fotos da infância. Olha como você era lindinha. – Mamãe me mostrou uma foto minha na quadrilha. Meu par era um garoto chamado Luís, se não me engano.

—Eu era mais feia que bater em mendigo por causa de sopa mamãe! Sempre fui uma criança bem acabadinha. – Resmunguei.

— Deus te fez na medida, meu amor! – Ela acariciou meu rosto.

 Abaixei meus olhos para minhas fotos de criança. Eu tinha um cabelo volumoso demais, um nariz grande (ainda tenho) e dentes tortos. Nessas fotos eu estava ou sozinha ou com meus parentes, brincando, tocando violão ou dançando. Nada demais. Achei outro álbum com marca da empresa que fez a revelação e comecei a folhear.

— Ah! Este foi em seu aniversário de quatro anos! Parece que foi ontem. Lembra que a gente fez naquela quadra comunitária subindo a rua?

— Não muito.

            Olhei para as fotos. Parentes que já haviam morrido, que eu nem me lembrava de ter ou que eu não tinha mais contato pousavam comigo nas fotos. Eu passei a gostar de fotos depois de adulta, já que eu me sentia muito feia nelas quando nova.

— Ah! Essa daqui é sua com o Yuri.

            Os meus olhos se arregalaram. Na foto eu estava de mãos dadas com um garoto de cabelo ruivo cacheado e olhos da cor castanha, bem menor do que eu.

— Yuri... – Sussurrei.

— Foi triste o que aconteceu com ele. Era tão jovem.

            Depois de arrumarmos tudo, mamãe foi olhar ajudar os homens na cozinha, enquanto eu e minha avó, que tinha voltado da casa da vizinha, cuidávamos do bebê. Meus pensamentos voaram longe, para muitos anos atrás.

            Yuri e eu éramos vizinhos. Quando crianças nós apenas conversávamos enquanto esperávamos os nossos transportes para a escola na porta de casa. Nós nos dávamos bem, assim como nossas avós, que cuidavam da gente.

            Minha mãe engravidou aos vinte anos. Quando ela noivou com meu pai, eu já estava na barriga dela sem que ela soubesse. Meus pais não se casaram, mas passaram a morar com meus avós depois de um tempo, me deixando com minha avó para que pudessem trabalhar. Já meu amigo Yuri tinha irmãos e mãe, mas sempre me lembrei dele morando com a avó e o tio.

— Dona Eleonor, onde está o Yuri?

            Minha avó conversava com a outra senhora, que esperava sozinha do lado de fora da casa. Era uma velhinha simpática, de cabelos loiros bem agrisalhados e olhos verdes, já minha avó era uma mulher parda de cabelos curtos tingidos e olhos cor âmbar.

— Ele está doente. Desde que acordou, ele está vomitando muito. Vou avisar o motorista que ele não pode ir.

            Não liguei muito para o fato. Ora, ele deveria ter comido algo que lhe fez mal, não? Nos outros dias da semana ele não foi, mas na semana seguinte ele voltou. Disse sentir fraqueza e dores nas articulações, mas como eu só tinha uns nove, talvez dez anos na época, eu não entendia muito. Então ele parou de ir à escola de novo. Todos os dias, eu ficava olhando para sua porta, mas ele nunca aparecia.

— Será que o Yuri desistiu da escola? – Perguntei para a minha avó.

— Ele está muito doente, Chris. – Minha avó respondeu triste.

            Não me lembro de quanto tempo fiquei sem ver Yuri novamente. Quando eu fui vê-lo foi junto de minha avó. Eu fui, e a dona Eleonor disse que eu precisava usar uma máscara. Coloquei sem perguntar nada, e quando cheguei ao quarto dele, meus olhos se arregalaram em choque.

— Como vai querido? – Minha avó perguntou enquanto se aproximava do sofá onde ele estava sentado.

— O que aconteceu com seu cabelo? – Eu perguntei. Minha avó me fuzilou com os olhos, mas eu nem percebi, de tão chocada que eu estava.

— É coisa do tratamento. – Ele respondeu tranquilamente.

            Sua cabeça antes coberta de cabelos enrolados estava completamente lisa. Ele usava máscara e estava com a pele mais pálida que o normal, seus olhos brilhavam de forma fraca e suas pernas estavam bem inchadas.

            Não me lembro de ter pensado muito sobre isso. Não tinha experiência com doenças nem com morte até o dia que minha tia Rogéria morreu poucos meses depois. Foi estranho, pois mesmo sendo próxima dela, eu não senti nada.

            Ela tinha quatro filhos e muitos problemas com álcool e fumo. O marido a abandonou e na época, ela tinha sido separada dos filhos. Talvez tenha sido isso que lhe fez partir tão cedo, ainda mais no dia do aniversário do Patrick, seu segundo filho. Era tão estranha essa experiência, que quando menos percebi, eu tinha me tornado muito próxima de Yuri.

            Eu sempre ia a sua casa jogar videogame. No começo era difícil, pois eu estudava de tarde. “Quando você vem aqui em casa?” Ele perguntava. “Quando eu puder.” “Vem amanhã, por favor!” “Amanhã eu tenho aula.”  Quando entrei no sétimo ano e passei para o turno da manhã, ele ficou fervoroso. Eu poderia agora ficar com ele o dia todo!

            Meu pai também era um grande amigo de Yuri. Ele copiava meus jogos para um cd virgem e dava para ele jogar, coisa que o Yuri também fazia para mim. Nós brincávamos com seus bonecos de dinossauros e ele dizia que iria encontrar fósseis um dia. Houve uma época em que éramos viciados em Bully, seu jogo favorito. Eu ia e o ajudava a passar nas missões, e ele fazia o mesmo quando eu precisava. Jogávamos vários outros jogos, e Yuri sempre dizia que teria a profissão dos personagens: paleontólogo, ninja, corredor, guerreiro... E eu acreditava que ele podia ser o que quisesse quando sarasse.

            Na época, seus dois irmãos e seus primos também vinham brincar conosco. Eles eram terríveis! Somente a irmã se salvava, pois era gentil e me ensinava matemática. Tinha outra prima que também era boa, mas ela nunca brincava com a gente. Ela carregava o Yuri quando precisava, já que ele tinha perdido o movimento das pernas.

            Um dia seu tio veio pela manhã e me chamou para ir com ele e Yuri em um lugar. Era o serviço dele, em um convento de freiras. As crianças brincavam em volta de Yuri, e me falaram que eram todas crianças doentes. Descobri naquele dia também que Yuri tinha algo chamado leucemia, que era uma doença que afetava o sangue. Após descobrir isso, evitei encontrar Yuri por um tempo.

            Em uma tarde de domingo, seu tio colocou Yuri em uma cadeira na calçada e pôs uma mesa com um jogo de xadrez em sua frente. Ele me chamou e pediu para que jogássemos juntos. Eu sabia um pouco por causa de um amigo da escola que tinha me ensinado, mas não foi suficiente, porque Yuri me derrotou de lavada várias vezes.

— Yuri. – O chamei. 

— Oi, Chris.

— Você vai morrer? – Perguntei meio tristonha. Ele arregalou os olhos e deu uma bela gargalhada.

— Morrer? Claro que não. Você vai ver! Quando eu crescer, eu vou ter um bigodão igual ao do meu pai!

— Bigode? Mas isso é feio pra caramba! – Retruquei.

— O do meu pai era bonito, então o meu vai ser bonito também.

            Não me lembrava de ter ouvido falar do pai do Yuri até aquele dia. Descobri muito depois que o pai de Yuri e de dois dos seus três irmãos era depressivo e... Enfim, não acho certo falar ou pensar sobre isso.

— E você será minha esposa, certo?

            Ergui minha sobrancelha, surpresa. Ele nunca havia falado sobre algo do tipo comigo e nem eu entendia essa coisa de casamento ou de namoro. Eu sabia que ele seria um rapaz bonito, mas eu não sentia o mesmo sobre mim.

— Por que comigo? Eu tenho o nariz grande e um cabelo estranho. Poderia se casar com qualquer uma.

— Por que eu gosto de você, simples. Se alguém se recusar a ficar com você por causa de coisas idiotas como aparência, é porque ele não te merece!

— Você tem mesmo nove anos? – Perguntei surpresa. Seu sorriso por trás da mascara brilhava como o sol.

— Mas e o meu pedido, você aceita? Ser minha esposa quando eu sarar?

— Mas é claro. – Sorri de volta, fazendo ele sorrir mais ainda.

            O tempo passou mais rápido que eu imaginava, mesmo que seja uma criança como eu. E para minha surpresa, Yuri ficava cada vez mais sadio. As cores voltavam para seu rosto, seu cabelo encaracolado já estava presente novamente e suas pernas lentamente se moviam com a fisioterapia. Eu vinha a sua casa sempre que podia. Passamos seu último aniversário junto com toda a família e ele exclamou que era o dia mais feliz da vida dele.

            Porém, nem sempre a história pode ser feliz para sempre. Quando fui para sua casa em um dia qualquer, ele tinha voltado a ficar careca e ficava cada vez mais magro e pálido. Fiquei sabendo três dias depois que ele tinha ido para Ribeirão e que estava internado. Fiquei agoniada e louca por notícias, chegando a azucrinar a pobre Eleonor sempre que a via. 

— Querida. – Em uma manhã de quarta feira minha avó chegou ao meu quarto com uma expressão tristonha. Ergui o corpo para olhá-la, esfregando os olhos. – O Yuri morreu.

            Não a culpem por ter sido tão dura. Ela conviveu com a morte e por isso, ela falou do jeito que achou certo. – Hm. Tá certo.

            Minha avó saiu do quarto e fiquei por cerca de um minuto em completo choque. Meus olhos se encheram de lagrimas e pela primeira vez eu sofri pela morte de alguém. Uma criança! Tão pequena e com sonhos! Comecei a duvidar de minha fé! “Por que Deus?” Eu perguntava. Não conseguia parar de chorar. Era injusto! Ele deveria ter tido tempo de ter um bigode! Ou trabalhar com dinossauros! Ou ser um grande guerreiro! Por quê?Por quê?

— Filha! Acorda!  – Minha mãe me segurou pelos ombros. Senti o meu rosto úmido. – O que foi querida? Por que está chorando?

— Ahn? Eu chorei? – Sequei minhas lágrimas de forma veloz. – Acho que devo estar com alergia. – Funguei.

— Tudo bem querida. O almoço está pronto. – Ela falou. –Sua avó trocou o Yuri enquanto você dormia. Vai gostar de dormir, ein! - Brincou. 

—  Ela podia ter me acordado, sabia? - Reclamei saindo do quarto  com ela. A página com a nossa foto ficou aberta no meio da cama.

            É engraçado. Eu nunca me impactei muito com a morte. Na verdade me impacta mais o sofrimento, talvez por isso que eu seja naturalmente alheia a tudo que me acontece. Depois da morte do Yuri eu estudei, me formei na faculdade, arranjei um emprego e aos vinte e cinco me casei. Eu não fui ao enterro do Yuri, mas visitei seu túmulo pela primeira vez com meu noivo para apresentá-los. Meu marido sempre foi um homem bom, aceitando de bom grado fazer essa visita. Quando engravidei, tivemos um impasse. Nomes. Nenhum era bom demais, e quando descobrimos ser menino, foi pior ainda. Quando nasceu não tinha nome. Mas tinha amor dos pais. Seus cabelos eram apenas um pequeno chumaço cor cobre e olhos eram azuis como o céu, e eu naquele momento me senti muito feliz.

— O que acha de Yuri? – Meu marido perguntou em voz baixa, enquanto o ruivinho ressoava tranquilamente deitado sobre meu peito.

— Yuri? – Perguntei de volta. – Por que Yuri?

— Achei que combinaria. E ele ficaria feliz.

            E combinou. Minha avó veio com o pequeno monte em meus braços e eu agarrei-os com cuidado. Meu bebê nasceu no dia oito de outubro, assim como o meu amigo Yuri. E eu prometi a mim mesma que faria o possível para que ele fosse o que quisesse ser, desde um especialista em dinossauros até um respeitável bigodudo. Imprevisível, inusitada, ousada, truculenta. É assim que a vida é.


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