Quantas voltas escrita por DiHen Gomes


Capítulo 2
2 - Heloísa




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— Mas é só um micro-ondas, mulher! Para de choradeira.

— Não é choradeira, Róger! É a verdade. Você tá em casa há uma semana e não fez nada pra me ajudar. Minha cozinha sem micro-ondas não tá completa…

— Não fiz nada pra te ajudar? Tá louca, Tuane?

— Se você tá falando da torneira, não era mais que a sua obrigação arrumá-la. O mesmo para as contas, afinal você é quem trabalha, você que quis que eu ficasse cuidando de casa pra você…

— Então, aí você fica em casa o dia todo e todo dia, só espera eu pegar umas férias pra arrumar tudo, você não dá conta de nada sozinha.

— Róger!

— Tuane!

Snif!

Até quando terei que ouvir meus pais desse jeito? Toda semana tem, pelo menos, uma discussão, sempre por coisinhas bobas. E agora que meu pai está de férias, a coisa piora. Agora é todo dia.

Ficar aqui só vai piorar o que sinto. Respiro fundo e saio de casa, para parar de ouvir a briga antes de perder o domínio e correr para aliviar a dor daquele meu jeito, outra vez.

*

Em época de férias o que mais tem é crianças nas ruas desses lugares mais simples da cidade. Através de meus olhos inchados vejo os sorrisos simples dos pequenos. Imagino se os pais de cada um fazem a mesma coisa que os meus. Parece tão improvável. Não devem, pois como brincariam assim se estivessem na mesma situação?

— Ei, Helô! Vamos brincar de bets?

— Ah, não, hoje não tô com vontade.

— Então tá bom. João, vem você então…

E eu fico aqui de canto, sentada na calçada, só observando a Milena, essa que me chamou pra jogar bets. Do outro lado da rua a mãe dela conversa com minha tia Edna, bastante sorridentes. Ao ver que rejeitei a brincadeira, minha tia diz algo para a mãe da Milena, e as duas olham para mim sem mostrar os dentes. A tia se levanta.

Não. Não estou a fim de falar sobre nada. Só quero esquecer de tudo por alguns momentos. Difícil, pois há tanta coisa para resolver. Estudar para terminar logo o ensino médio (não quero repetir o segundo ano de novo!), juntar uma grana para tirar minha carteira de motorista (antes que fique ainda mais caro) e arrumar um namorado (pois metade das minhas colegas já têm). Levanto e saio andando sem destino, só para espairecer.

Dobro duas esquinas e chego a uma avenida movimentada. Ou que seria movimentada, se hoje fosse dia útil. Sábado a tarde esse bairro é deserto. Só tem a molecada indo curtir com os amigos. Um grupo vem em minha direção. Não conheço esse.

— Oi, tudo bem?

Um rapaz do grupo para para falar comigo. Não vou falar com alguém que nunca vi antes.

— Parece que você estava chorando. Está tudo bem? — ele insiste.

— Tá sim — digo sem olhar para o rosto dele.

— Meu nome é Arnaldo. E eu já vi essa cena antes, pode crer. Não importa o que está acontecendo, saiba que existe uma saída. Não precisa sofrer sozinha. Nós — Arnaldo abre os braços, mostrando os outros que caminham com ele, duas meninas e três meninos — podemos te ajudar.

Só imagino que sejam um grupo de alguma igreja. Quero continuar andando, mas também não quero ser ignorante com eles. Pelo menos não que eles percebam.

— Não, acho que ninguém pode me ajudar. É problema meu… Mas obrigada.

— Aqui — ele me entrega um convite. — Se quiser, você pode mudar sua situação, tá? Nós acreditamos em você.

— Hum… Tá.

Sigo andando para a avenida, e eles continuam indo para o bairro. Que bom que já foram, não quero falar com ninguém mesmo.

Enfio o convite no bolso, mais por consideração ao meio ambiente que às pessoas. E vou até a avenida. Vejo o movimento por alguns minutos, mas nada muda dentro de mim. Fantasmas dos meus pais insistem em me assombrar dentro das minhas lembranças.

Distraída com os fantasmas, esqueço da poça cheia de água que se formou num buraco enorme na avenida, e um C3 familiar passa bem nela. Fico encharcada até as coxas! Se passou quase uma hora, tempo suficiente para terem terminado a discussão, e retorno para casa.

— Helô, até que enfim. Traz a sua roupa suja pra eu lavar. Já ia deixar a sua, se você não tivesse vindo a tempo!

O marido da minha mãe não está em casa. Nem o carro. Era ele mesmo. Para onde deve ter ido?

— Sim, mãe, já vou.

— Helô, onde você estava? Quem fez isso?

Só agora ela olha para mim.

— Ah, a poça lá da avenida tava cheia, e um doido passou nela, daí deu nisso.

Minha mãe quase diz algo, mas desiste no meio do caminho. Simplesmente acena positivamente e recolhe minhas roupas. Troco-me e levo a molhada também. Ao fazê-lo, cai o convite amassado. Pego e leio com mais atenção. Pare de chorar! Felicidade existe, podemos lhe mostrar! Não acredito muito nisso, mas o que tenho a perder? Parece não ser uma ideia tão ruim.

Até porque não tenho muitas opções.

— Cadê, Helô?!

— Tô indo.

Nenhuma outra, na verdade.


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