Crianças escrita por Araimi


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura



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Uma criança é trazida para a casa grande.

 

Quase como quando Juliana veio parar por aqui, mas essa criança trás alvoroço e vozes elevadas e brigas.

 

Ela escuta pedaços da conversa, não queria ouvir atrás da porta, mas sua curiosidade é maior que tudo. Eles nem a percebem de qualquer maneira, ela é apenas uma escrava velha. A mulher que trouxe a criança afirma que a levou a mando da baronesa Urraca, que a criança é filha de Almeida. O senhor nega veementemente, dizendo que Petúnia é mentirosa e uma mulher de vida fácil, a criança poderia ser de qualquer um. Sinhazinha Teresa está cabisbaixa, uma mão acariciando a barriga protuberante.

 

Sá Beatrice olha de um para outro, tentando acalmar os ânimos, esperando que alguém tome uma decisão definitiva, qualquer que seja. Joaquina sabe que Sá Beatrice ainda não sabe o que fazer com aquela liberdade que recebeu quando o Senhor Custódio morreu, talvez nunca soubesse lidar direito com ela.

 

Maria Isabel está calada, tem aquela expressão vazia no rosto, olhando para o nada. Ignorando o que está acontecendo na sala.

 

É dona Urraca quem decide, por fim, o que deve ser feito.

 

— Não importa se é sua filha ou não. – Ela diz, fazendo com que todos se calem. – É apenas uma criança, não merece ser jogada na rua a essas horas da noite. Permita que passe a noite. De manhã, eu mesma cuidarei para que seja mandada para longe.

 

Aquela decisão parece agradar Sá Beatrice e acalmá-la quanto ao que fazer. Ela usa sua melhor voz de senhora e dá a palavra final, garantindo que aquilo é o que será feito.

 

A mulher que trouxa a criança vai embora, deixando a menina para trás, e o Senhor Almeida vai para o escritório, praguejando a todas. Dona Urraca leva a menina para a cozinha, junto de Teresa e Sá Beatrice, e Joaquina arranja algo para a pobre criança comer.

 

A Baronesa a abraça e lhe balança em seu colo e lhe dá beijos quando pensa que ninguém está vendo. Joaquina vê. Joaquina sempre vê tudo o que se passa naquela casa.

 

Ela dá uma sopa para a menina, que come tudo avidamente. É apenas um bebê, talvez com um ano de idade. Tem os cabelos castanhos fartos, formando um cachinho aqui e ali, um nariz arrebitado e olhos castanhos escuros que lembram Joaquina a alguém. A menina faz alguns sons irritados quando Urraca a aperta demais, faz outros quando quer outra colherada de comida, mas, a parte disso, não chora nem demonstra qualquer outro sinal de que está com medo do local e das pessoas desconhecidas. Como se já estivesse acostumada com aquela rotina.

 

Elas perdem o interesse no bebê após um tempo. Joaquina não pode culpa-las. Elas são criadas desde pequenas para serem esposas e mães, mas não para cuidarem de crianças. Para isso servem as escravas. Nem Sá Beatrice, que passava mais tempo com suas filhas do que a mãe dela jamais passou com ela, estava a disposição de suas meninas 24 horas por dia.

 

Esse era o serviço de Joaquina.

 

Ela sempre estava lá. Para curar um arranhão ou beijar um machucado. Para lhe fazer doces e escovar seus cabelos. Ou ouvir sobre seu dia e suas brincadeiras. Das três meninas daquela casa que Joaquina ajudou a criar, Juliana foi a única que permaneceu sendo sua; Teresa sempre fora a mais aberta, a mais gentil, e sua vida de adulta tirou um pouco de seu brilho; mas foi Maria Isabel, sua menina danada, a única das três que ela realmente perdeu.

 

Sá Beatrice pede que ela cuide da menina. É uma ordem. Ela é uma escrava, para Joaquina, sempre é uma ordem; mas ela gosta que Beatrice enlace suas palavras em gentileza e faça-as parecer um pedido.

 

Então Joaquina leva a menina para sua casa, arruma um cesto para que fique o mais confortável possível e deixa-a dormindo no quarto que era de Juliana.

 

Joaquina acorda de madrugada com barulhos dentro de casa.

 

Ela tem o sono leve, o sono de uma velha.

 

Lembra-se da menina e arrepende-se de não a ter trazido para o seu quarto, para perto de si. Mas nunca poderia imaginar que alguém tentaria entrar em sua casa. Todos na fazenda a respeitavam e ninguém de fora entraria em sua casa, ela era apenas uma escrava velha.

 

Caminha na ponta dos pés até o local de onde vinha o barulho e escuta a voz do bebê. Ela não parece assustada e Joaquina relaxa apenas um pouco com isso. Não faz barulho quando chega à porta do quarto. Está mais chocada do que qualquer coisa.

 

Por que sentada na cama fina, com a menina sentada de frente a ela, vestida em suas roupas de dormir, está a menina que ela havia perdido.

 

Maria Isabel olha a menina de cima a baixo, procurando algo que Joaquina não sabe o que é. Maria Isabel não é de confiança, Joaquina sabe disso, suas costas ainda doem com as marcas do dia em que descobrira; mas fica quieta, observando o que ela fará com a criança.

 

Maria Isabel ergue a menina, que está com as mãos na boca, olhando-a com a mesma curiosidade, avaliando-a do mesmo modo que a mulher. Maria Isabel olha-a bem por alguns segundos, então sussurra:

 

— É você mesmo. – Ela sorri e Joaquina sente um pedaço do quebra-cabeça sendo colocado no lugar. Não o suficiente para fazê-la entender. O sorriso de Maria Isabel se alarga e logo se transforma em um riso contido. – É você. É você. – Ela repete. – Sua diabinha. Pensei que você tivesse... – Suas feições caem, mas logo o sorriso está de volta. Não o mesmo de antes; esse sorriso é o que Maria Isabel usa quando está escondendo algo. – Não importa. O importante é que você... Que tudo está bem.

 

A menina faz outro barulho, balançando-se em suas pernas e Maria Isabel deixa-a sentar novamente. A criança agarra-se a barra da camisola da mulher, cheia de babados e com um desenho delicado em azul bordado ali. Maria Isabel deixa com que a menina faça o que queira, observando-a brincar. O silêncio estende-se pelo o que parece vários minutos, até que Joaquina houve Maria Isabel sussurrar, tão baixo que ela quase não consegue escutar.

 

— Eu sinto muito. Não era para ser assim. Eu não queria que você se machucasse.  Eu só... veja bem, seria muito melhor, para nós duas, se você estivesse longe. Eu não poderia arriscar. Você entende, não é mesmo?

 

A menina a olha, como se realmente entendesse, emitindo um som, e Maria Isabel sorri, passando seus dedos pelos cabelos da menina.

 

Joaquina tenta entender, juntando todos os pedaços de informação para construir um cenário que faça sentido, mas nada faz. Uma teoria se forma no canto de sua consciência, mas é absurda demais para ser considerada.

 

— Fico feliz que esteja bem. – Maria Isabel volta a falar, ela puxa a menina até que esteja sentada em seu colo. É madrugada e a menina deve estar com sono, pois encosta sua cabeça no colo de Maria Isabel, agarrando-se ao robe dela. Maria Isabel parece chocada e por um momento não sabe o que fazer, por fim, passa uma mão pelo rosto da menina, traçando delicadamente uma linha em sua bochecha, parando em seu queixo. – Você tem o queixo do seu pai. – Os olhos da menina estão pesados com sono, mas ela ainda olha para Maria Isabel. – Mas tem os olhos da sua mãe.

 

Então tudo se encaixa.

 

Joaquina sente o mundo rodar embaixo de seus pés, sai de seu canto escondido e caminha para longe sem fazer qualquer barulho. Senta-se a mesa, tentando acalmar o coração, procurando respirar normalmente.

 

Lembra-se das acusações de Juliana, de que o filho que uma moça dizia ser de Almeida, era na verdade de Maria Isabel. Lembra-se dos olhos da menina na cozinha da casa grande. Lhe eram familiares. Claro que eram, já tinha visto aqueles olhos inúmeras vezes. Eram os olhos escuros, cheios de travessura de Maria Isabel.

 

Joaquina lembra-se de cada detalhe do último ano, tentando encaixar toda aquela história. Mais cedo do que gostaria, Maria Isabel surge, silenciosa como uma gata, pronta para sair do barraco e voltar para seu quarto na casa grande como se nada tivesse acontecido.

 

Seu susto é tão grande que ela dá alguns passos para trás. Fica em silêncio, recupera-se rapidamente e começa a sair da casa, sem dizer uma palavra sobre o que está fazendo ali. Maria Isabela é uma senhora, Joaquina uma escrava. Ela não lhe deve satisfações.

 

— Ela é sua. – Joaquina diz antes que ela possa sair e Maria Isabel para. – Eu não sei como, nem quando. Mas essa menina é sua.

 

Ela levanta os olhos, encarando Maria Isabel. A palidez em seu rosto mostra o quanto ela não esperava esse confronto, mas ela se recupera rápido. Maria Isabel sempre fora a melhor mentirosa, sempre se recuperou mais rápido.

 

— Ela é sua. – Joaquina repete.

 

Maria Isabel dá um sorriso rápido.

 

— E você é uma escrava velha que não diz coisa com coisa.

 

— Posso ser uma escrava velha, mas sei muito bem o que eu vi. Eu sou velha, sinhazinha, eu conheço as pessoas. Eu conheço vosmecê.

 

Maria Isabel riu com escárnio.

 

— Me conhece? A mim?

 

Joaquina não se deixa intimidar, assentindo. Maria Isabel desvia o olhar, entrelaçando uma mão com a outra.

 

— Não sei o que vosmecê está pensando. – Ela diz por fim. – Mas está enganada.

 

— Então por que veio até aqui?

 

— Não lhe devo satisfações. Tudo que está aqui me pertence e eu posso ir e vir quando bem entender. E se você falar sobre isso com alguém...

 

— Não precisa me ameaçar com o tronco. – Joaquina iria respondê-la a altura, com dureza, mas olhou para mulher parada em sua cozinha e lembrou-se da menina. – Eu vi vosmecê nascer. Eu cuidei de vosmecê. Troquei suas roupas, cuidei de cada machucado, cada doença. Eu vi vosmecê crescer e se soltar das barras da minha saia. Se afastou tanto que eu não percebi o que tava acontecendo. Por que não me disse nada? Eu podia ter ajudado.

 

Maria Isabel passa uma mão pelo rosto e talvez porque fosse de madrugada ou talvez porque ela estivesse cansada de mentir, cansada de ser aquela Maria Isabel adulta, mas ela se desmancha bem diante dos olhos de Joaquina e no instante seguinte ela é a menina novamente, altiva, caprichosa, mas sua menina.

 

— O que está feito, está feito. E você não poderia ter me ajudado, de qualquer maneira.

 

Joaquina sabe que é verdade, mas dói saber que Maria Isabel tivesse passado por tudo aquilo sozinha.

 

Quando se machucavam, Juliana vinha lhe contar com bravura, dizendo que já estava melhor; Teresa chorava durante horas a fio, colocando suas emoções em cada lágrima; mas Maria Isabel nunca dizia nada. Maria Isabel sempre fora a mais corajosa, a mais dura, a mais madura. Ela aguentava como se fosse nada seja lá o que apavorava as outras duas; ela aguentava como se fosse nada o que a dilacerava por dentro. Juliana encarava de frente, Teresa chorava, Maria Isabel fingia que nada havia acontecido.

 

Joaquina levanta-se, caminhando em sua direção até segurar seus braços com firmeza e carinho. Ela lamenta não poder colocar Maria Isabel em seu colo.

 

— Eu sinto muito, minha menina.

 

Maria Isabel a olha em silêncio, abre a boca como se fosse dizer algo, mas nada sai. Ela desvia o olhar para o chão, desvencilha-se de Joaquina e volta a ser a mulher que não confia em ninguém.

 

— Eu não sou sua menina. – Ela diz com dureza. – E você vai se arrepender se falar sobre isso com alguém.

 

Maria Isabel sai abruptamente e Joaquina chora.

 

Ela vai até a menina e a observa dormir com novos olhos.

 

— Jasmim. – Ela sussurra o nome da menina e vê todas as coisas que são parecidas com Maria Isabel.

Pergunta-se como ninguém via a semelhança gritante entre as duas. Talvez porque não estivessem procurando por elas, porque jamais poderia passar pela cabeça de nenhum deles que Jasmim fosse filha de Maria Isabel.

 

Maria Isabel, a menina que ela havia perdido, também havia perdido sua menina.

 

Joaquina leva Jasmim para sua cama e dorme abraçada a ela.

 

No dia seguinte, dona Urraca começa a arranjar as coisas para que Jasmim vá para longe. Um convento, ela sugere. A menina ainda teria que ficar durante mais tempo e Jasmim fica sobre os cuidados de Joaquina.

 

Algumas noites mais tarde, Jasmim não consegue dormir. Ela choraminga e remexe-se desconfortável em seus braços até altas horas da madrugada, incapaz de dormir por conta de um dente que está nascendo. Joaquina decide que realmente está velha demais para lidar com crianças.

 

Ela caminha com Jasmim em seus braços de um lado para o outro na cozinha quando Maria Isabel aparece.

 

Ela para na porta, provavelmente considerando dar meia volta e voltar para seu quarto. Joaquina finge que não está acontecendo nada fora do normal. Maria Isabel gosta de fingir.

 

— Vosmecê venha aqui e pegue ela que as minhas pernas não aguentam mais.

 

Maria Isabel parece que vai responder, mas desiste e entra na casa, pegando Jasmim dos braços de Joaquina.

 

Joaquina senta com um suspiro e observa Maria Isabel com a pequena. Jasmim ainda choraminga, puxando a gola das vestes da mãe; Maria Isabel parece tão desconfortável quanto provavelmente está, mas balança a menina em uma tentativa de acalmá-la.

 

Jasmim não se acalma e Maria Isabel a coloca no chão com irritação. Se ela tivesse paciência, seria Teresa ou Juliana, e não Maria Isabel.

 

Jasmim olha para Joaquina e para Maria Isabel, mas é apenas quando Maria Isabel começa a dar os primeiros passos em direção à porta é que a menina decide para quem ir e abraça as pernas de Maria Isabel.

 

Ela para no mesmo instante, olhando para criança agarrada as barras de suas vestes com um misto de confusão e irritação e um pouco de carinho. Joaquina ri e Maria Isabel a olha intrigada.

 

— Ela sabe. – Joaquina declara. – Que você é a mãe dela.

 

As bochechas de Maria Isabel se tingem de uma cor bonita de rosa, porque tudo que Maria Isabel faz é feito com graciosidade. Ela balança a cabeça, fazendo pouco caso.

 

— Como ela poderia saber? É apenas um bebê.

 

Joaquina sorri calorosamente.

 

— Ela é um bebê. Ela sabe.

 

Maria Isabel pega a menina no colo, passeia com ela pelo cômodo, dando tapinhas em suas costas e sussurrando algo em seu ouvido que Joaquina não consegue entender. Ela parte alguns minutos depois, Jasmim ainda está acordada, mas parece mais calma do que antes.

 

Logo de manhã, uma mulher chega para levar Jasmim. Dona Urraca a abraça e a beija como se ela tivesse cuidado da menina o tempo todo. Sá Beatrice faz um carinho em sua bochecha e Teresa sorri carinhosamente. Joaquina beija o topo de sua cabeça e chora quando vê a carroça se afastar com a menina.

 

Sá Beatrice passa um braço por seus ombros e Teresa comenta sobre o quanto ela se apegou a pequena em apenas alguns dias. Joaquina chora um pouco mais ao imaginar que elas jamais saberão que aquela criança é sangue de seu sangue. Sá Beatrice acaba de mandar sua primeira neta para longe e não faz a menor ideia.

 

Maria Isabel não estava lá e Joaquina prepara um chá para ela quando consegue se recompor.

 

Maria Isabel está sentada em frente ao espelho, mas não está se vendo, o olhar perdido. Joaquina lhe serve o chá e por fim pergunta:

 

— Vosmecê tá bem, sinhá?

 

Ela demora alguns segundos para responder.

 

— Por que não estaria?

 

Maria Isabel a olha nos olhos e dá um rápido sorriso de lado antes de tomar seu chá. É o sorriso que ela usa quando está escondendo algo e é mais triste do que qualquer lágrima que ela poderia derramar.


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