.something. escrita por Clarissa


Capítulo 1
I


Notas iniciais do capítulo

Esta história curtinha foi escrita ao som de Something, canção dos Beatles escrita por George Harrison e que constitui a segunda faixa do icônico álbum Abbey Road. Ouvi-la durante a leitura é uma sugestão ;)
https://www.youtube.com/watch?v=UelDrZ1aFeY

Espero que apreciem esse devaneio.



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                                                                                                                             Quando a gente era pequeno,

pensava que quando crescesse

Ia ser namorado da Brigitte Bardot,

mas a a Brigitte Bardot

está ficando triste e sozinha. - Tom Zé

 

Quando precisávamos gravar cenas demasiadamente dramáticas ela trancava-se no camarim para fumar. Era longo o seu cigarro e na vitrola tocava sempre o Abbey Road, dos Beatles. Deixava acessas apenas as luzes que emolduravam o espelho e sentava-se de lado na poltrona de veludo bordô, jogando as pernas por cima do braço do estofado. Ela era uma estrela com suas escovas de cabelos coloridas, seus sapatos de bico fino e sua fotografia 30X15 de Louise Brooks fixada na parede. A fumaça do cigarro tomava conta do cômodo e compunha ares de mistério ao ambiente; a névoa tóxica dançava na meia luz amarelada. Eu acreditava que aquele cigarro era a fonte dos seus segredos, do seu magnetismo.

Ninguém nunca ousava interrompê-la. Esperávamos pacientemente do lado de fora, sentados nos enormes caixotes pretos da produção.

Antes de gravarmos uma cena romântica na qual sua personagem acusava-me de ter dedos feios e uma linha do sucesso curta, ela veio ao meu encontro na lanchonete defronte ao estúdio. Era aquele o meu momento de meditação; depois de tomar um café frio fiquei analisando meu reflexo na porta suada do refrigerador, cujo zunido penetrante revelava seu  esforço para manter geladas todas aquelas latinhas de Coca-Cola não obstante o calor do verão. 

Eis que ela surgiu atrás de mim, inexpressiva, borrada no espelho sujo do refrigerador ranzinza.

— Você está pronto? - interrogou.

— Acho que sim. - suspirei e me voltei para ela - E você?

— Eu estou sempre pronta.

Arqueei as sobrancelhas, intimidado. Ela aproximou-se, pousando os braços sobre meus ombros como se fôssemos começar a dançar bem ali. Permaneci imóvel, completamente desprevenido e acanhado por sua beleza e superioridade.

— Sabe… - ela começou - Somos um par romântico e não consigo sentir nada por você. Sem química - ela deitava a cabeça de um lado para o outro como se seguisse o ritmo de uma canção - Você tem exatamente três minutos para fazer eu me apaixonar perdidamente por você.

Minha garganta contraiu-se de incredulidade. Era apenas uma piada ou um apelo real? E tinha os olhos dela, muito perigosos e pretos, o olhar sério e sensual das atrizes dos anos quarenta. O desenho perfeito dos lábios sutilmente entreabertos, finos e tristes, e o rosto magro como o de uma boneca. Ela possuía a incrível capacidade que caracteriza a genuína femme fatale: era onipresente. Nos anúncios publicitários, nos devaneios, nas memórias. Mas ela nunca estava realmente lá. 

Sentia-me aturdido. Pigarreei como que tentando ganhar tempo para encontrar a resposta certa. Conferi rapidamente meu relógio de pulso:

— Bem, considerando que temos só um minuto restante, a única maneira de você se apaixonar por mim seria isso aqui ser um filme. 

Ela sorriu firme. Seus olhos marejaram espontaneamente e ela alargou mais o riso de dentes brancos. Passava uma impressão convincente, sincera. Eu estava fascinado. 

Deixou as mãos escorregarem pelo meu peito. Em seguida, enxugou as bordas dos olhos, limpando as lágrimas quase vertidas e os vestígios de maquiagem manchada. Satisfeita, dando-se por vencedora de algum tipo de desafio, afirmou:

— Eu não falei que estava sempre pronta?

Eu não entendia nada a respeito do amor. 

Mais tarde, após a gravação da tal cena romântica e das marcações, ela convidou-me para beber algo em seu camarim. Tomamos vinho tinto italiano, discutimos Deus, a perversão dos homens, a guerra dos sexos e o sofrimento.

O cinzeiro de vidro azulado sobre a penteadeira estava vazio e com um aspecto muito limpo.

 


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