A Sereia Surrealista escrita por marina bogoeva


Capítulo 1
Escamas




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—Está gostando do tempo?

—É verão. Sempre que me sento à beira da praia e observo o luar, como agora, me lembro deste fato ocorrido no verão de minha juventude. As luas, as brisas e as ondas são as mesmas de cinquenta, setenta, oitenta anos atrás. Torna-se mais fácil de reviver um amor perdido há muito num desses sete mares. Meus pés não são tão bons quanto antes, minha coluna já não aguenta os mesmos pesos. Estou de frente para a morte lenta que começou a vir até mim naquele verão.

               Cresci num lugar descoberto há pouco, o Novo Mundo, onde recebemos diversos animais no verão, numa baía pouco conhecida, porém conservada. As correntes quentes são propícias para a procriação e amadurecimento de filhotes. Todos aqui conhecem bem o que a correnteza tenta nos dizer, incluindo eu. Desde minha juventude aprendi a caçar peixes, mas sempre respeitando e entendendo os rios, principalmente os de água doce. Sempre conheci o lugar muito bem, sempre fui exemplo, as pessoas me seguiam, eu tinha a liderança mesmo quando ainda vivia em Portugal. Quando cheguei às novas terras me dei ao luxo de explorar, conheci civilizações indígenas e seus costumes, me apavorei com seus rituais e me agarrei à Cristo. Tive uma educação afrancesada, ou seja, com muitos livros, graças a meus pais, “bons de cabeça”. Andei por longas trilhas, percorri lagos imensos e, finalmente, passei a chefiar nossa pequena colônia que crescia. Portanto, eu sabia que não podia caçar no interior de nossa vila, pois havia um pântano ali. As chances de acidente eram grandes e havia animais maiores que peixes prontos para atacar, além de possíveis nativos. Eu sempre soube disso, mas minha curiosidade usualmente ganhava um poder incontrolável quando me proibiam de algo. Então fui. Eu fui para o pântano naquele verão.

               Obviamente, não me preparei o suficiente. Meu dever naquele dia era ficar na encosta observando os navios e as estrelas, então aproveitei que as caravelas espanholas haviam tomado o rumo errado (de novo) e corri para o pântano. Estava completamente escuro, quase não havia barulho e eu senti medo. A pouca luz que aparecia era a da Lua que com dificuldade penetrava e reluzia nos musgos. Os rios mortos do pântano parecem mais sombrios à noite. Eu percebi que estava perdendo a trilha que eu havia feito, percebi que era burrice da minha parte. Também percebi que todas as minhas aventuras nunca me levaram onde eu estava, não conhecia aquele lugar. Subitamente, o quebrar de um silêncio desesperador me fez arrepiar; ali, há poucos metros de distância, estava uma mulher caída. Percebi que era mulher pelos cabelos extremamente longos e soltos que acentuavam sua cintura estranhamente fina. Ela gemia baixo, reproduzia sons que eu nunca ouvi, afundava e se debatia de forma estranha. Eu deveria ter ajudado, mas aquela cena me desesperou a ponto de quase desmaiar. Não sei o motivo exato, mas quase chorei de pavor.

               Quando acordei na manhã seguinte, não sabia se havia sonhado. O que me fez ter certeza da veracidade foram minhas botas sujas de lama e minhas roupas com cheiro podre. Como eu era jovem e não tinha permissão para muita coisa, meus pais e os chefes das naus me deram uma bronca. Eu odiava ter que me explicar... Mas precisava voltar lá. Afinal, aquela moça pode estar lá ainda e eu poderia não me sentir mal de abandona-la. Podia estar morta... Mas eu precisava ter certeza. Esperei o melhor momento e saí. Estava sem controle de meus pés, nem percebi quando cheguei. E ela permanecia lá.

               Corri sem pensar duas vezes, com dificuldade tentava não afundar meus pés e acabar atolando ou me afogando. Quanto mais eu corria, menos ela se mexia. Pensei que havia chegado apenas para vê-la morrer, mas me joguei em sua direção e a envolvi em meus braços. Metade de seu corpo havia sido engolido por uma lama espessa, escura, estranhamente seca. Ela parecia estar lá agonizando há dias. Tentei falar com ela, mas ela não dava sinais de lucidez. Tentei em português, em espanhol e até em francês, porém não surtia efeito. Não havia o que fazer. Foi quando notei algo realmente estranho. Sua pele tinha uma coloração muito ímpar, talvez pela falta de nutrientes, contudo, seu ressecamento me intrigava. Ela estava com o peito desnudo e tinha diversas cicatrizes. Passei a mão em seus cabelos, a fim de tirá-los de seu rosto, e quando terminei por apoiar sua nuca e seu rosto levemente sobre minha mão, passei os dedos em rugas extremamente úmidas, próximas ao que deveria ser sua orelha. Assustada, ela abriu o olho e me encarou. Suas pálpebras não eram iguais as minhas. Seus olhos não eram iguais aos meus, embora não pudesse ver nitidamente por conta da lama e da sujeita.  Por maior que fosse o medo, não a soltei. Num último espasmo, num último esforço, talvez por receio de estar comigo ali, ela se debateu e eu pude ver uma cauda enorme, com barbatanas e escamas. A inocência me fez pensar que havia um animal a engolindo, mas não levei muito tempo para entender que “aquilo” era ela. As sereias que os marujos falam... Então era isso.

                Nunca fui de acreditar nesses mitos, sei que Deus não permitiria estes seres vagando sem rumo pela Terra após a arca. Essa mitologia pagã não existe, apenas a bondade infinita de Deus. Pelo menos era o que eu acreditava até aquele momento. De forma poderosa, ao segurar aquele ser, senti que todas as minhas crenças caíram por terra e o choque foi tanto que não pude falar mais nada. Fiquei ali, analisando e me desesperando. Ela era a mulher mais linda que eu já havia visto. Seus cabelos, na raiz, começavam escuros e castanhos, quase pretos e terminavam em um loiro acobreado brilhante. Sua pele era branca como porcelana e, apesar de estar desidratada e ressecada, seus lábios carnudos eram de um rosado delicado, semelhante a coloração natural de suas bochechas. As veias saltavam abaixo dos olhos pequenos e levemente puxados, de alguma maneira havia beleza extrema naquela quase morte. Eu a segurava e me apaixonava por cada detalhe. Os olhos se fecharam e não pude vê-los de verdade, mas tive a certeza de que eram meigos. Seu torso se mexia com dificuldade, sua respiração era descompassada e já não havia sinal de luta contra a morte. Ela estava me deixando. Não podia deixar isso acontecer.

                Rapidamente a tomei em meus braços e a ergui com todas as forças que pude concentrar em minhas pernas. Foi difícil, aquele lugar era íngreme e cheio de armadilhas. Comecei a correr de volta para a colônia, mas quanto mais eu me apressava, mais eu afundava nas poças. Notei que sua cauda era muito maior do que nos contos do Velho Mundo e, novamente, me apavorei. Aquilo tudo era insano, como eu ia chegar carregando ela? O que eu poderia fazer com ela? O que eles poderiam fazer com ela? Apesar de todas as imposições mentais e obstáculos físicos, eu não parava de correr. Quando me dei conta, estava há poucos metros de minha casa e outros reinóis podiam ser vistos. Furtivamente cheguei até a janela posterior da casa, a janela do banheiro, e sem demorar muito consegui entrar. Coloquei a sereia na banheira e, instintivamente, joguei um balde de água nela. Ela precisava de água. Não havia muita água limpa, mas foi o suficiente para incentivar pequenos espasmos nas suas barbatanas. Sentei ao lado, ofegando, com as roupas rasgadas e as botas sujas. Pude me acalmar observando a serenidade dela. A água que caía de seus cabelos diretamente em seu colo deixava sua pele como um diamante. A água a fazia cintilar por inteira, as cores se intensificavam. O branco de sua pele e o azul-esverdeado com toques de violeta de sua cauda brilhavam lindamente, nunca me esquecerei esta imagem. Comecei a imaginá-la nos quadros e nas cartas dos viajantes. Por um momento, aquilo tudo poderia ser bom. Suas barbatanas eram enormes, saíam da banheira e se espalhavam pelo chão. Parecia que a água as fazia crescer, como uma flor nascendo. Era a coisa mais linda. Cuidei dela e a batizei de Louise, um nome francês comum que certa vez me disseram significar uma gloriosa guerreira. Mas não fazia diferença para mim, Louise parecia feliz com esse nome, pois quando sussurrei em seu ouvido ela sorriu, ainda desacordada. Tranquei as portas, fechei as janelas e me deitei. Não estava em meu posto, mas aquilo não me preocupou, os espanhóis nunca conseguiam vencer de nós.

                Dormi como nunca havia dormido. Porém, quando acordei, foi de sobressalto. Minha mente foi atacada por um turbilhão de memórias envolvendo Louise e, rapidamente, me levantei para checar. Ela permanecia na banheira, mas seus olhos estavam abertos, saltados, com um olhar penetrante. Não, eu me enganei, seus olhos não eram apenas meigos. Eram ferozmente suaves, tinham a capacidade de te penetrar, descobrir sua alma, falar com você, mas sem violência. Sem impaciência. Aquelas íris torturavam de uma forma tranquila, e isso era impactante. Eram olhos infantis que estavam mergulhados em malícia. Olhos que eu nunca encarei antes. Pareciam dois cristais num tom acinzentado, grandes, contudo não causavam espanto. Ela estava olhando fixamente para um ponto que não consegui definir, com os lábios também cerrados, onde pude ver parte de seus dentes bem afiados. Não respirava, nem transpirava. Me aproximei calmamente quando, de repente, ela me olhou. Seus olhos me seguiram e quando olharam diretamente para mim, mudaram de cor instantaneamente. De cinza esbranquiçado mudou para um castanho sépia, seus cílios longos e negros descansavam adoravelmente sobre as pálpebras brancas e levemente puxadas. Eram formatos e cores que eu nunca tinha visto em outra pessoa. Ficamos nos encarando. Silêncio.

                Algo extremamente estranho aconteceu. Senti meu corpo sendo levado até ela e, quando percebi, ela tocava meu rosto. Seu toque era gelado, úmido e pegajoso na ponta dos dedos. Tive uma sensação indescritível, vi coisas que não existiam. Meu coração acelerou, o tempo parou. Ouvi vozes em eco na minha cabeça e eu estava em uma hipnose profunda, completamente sem norte e direção, nadando desesperadamente no mar infinito que eram seus olhos. Tudo isso sem me mexer fisicamente. Era um tipo de magia demoníaca, eu pensei. Um lindo demônio que me fez ver as coisas como realmente são ou deveriam ser. Ela me hipnotizou primeiro com sua fragilidade, que descobri ser fortaleza, depois com sua beleza inabalável e, agora, com sua mente ela me manipulava nos mais doces sonhos. Ela tirou minha dor. Eu me apaixonei por ela sem trocar uma palavra. Vi mares, caravelas, monstros e criaturas, viajei pelo mundo, vi as cores dos planetas se acentuarem e o brilho das estrelas pulsar, senti a gélida lua em meu rosto através de suas mãos, persegui o vento do leste... A cada visão que ela me proporcionava com seu toque meu coração acelerava e o tempo se atrasava. Quando, de repente, numa das visões, a vi nadar. Seus cabelos em baixo da água salgada deste mar ficava acobreado, um ruivo que nunca esquecerei. Seus lábios ficavam vermelhos e ela estava repleta de flores e algas, junto com milhões de outras sereias, todas diferentes entre si: homens, mulheres e outros gêneros que não conseguia definir. Todos me olhavam. A lua, refletida na água, fazia Louise parecer divina. Ela nadava esculturalmente em minha direção no sonho. Quando finalmente iríamos trocar um beijo, seu semblante mudou completamente. Olhou para os lados, preocupada. Todos começaram a fugir e ela me mostrou os navios chegando em massa, capturando vários peixes com as redes e, no mastro de uma das caravelas, estava eu. Eu, com minhas naus, destruí o lar deles. Então, na visão, ela nadou o mais longe que pôde, seguindo a lua. Eu voltei a mim no momento que ela tirou suas mãos de meu rosto, em minha casa.

                Num susto, me joguei para longe dela. Ela permanecia na banheira, me olhando, com suas barbatanas gigantes parecendo um vestido. Eu estava sem ar e tremendo. Entendi o que ela quis me mostrar, a culpa de tudo ali era minha, da minha ambição. Ela se perdeu e quase morreu por minha causa. Eu me apaixonei por ela e não pude conter a vergonha deste ato. Não sabia se ela ainda estava na minha mente, se ela podia me entender... Só gostaria de lhe pedir desculpas... Louise, por favor, me desculpe.

 -... E depois, o que houve?

 - Eu não poderia ficar com ela, muito menos para sempre. Não somos iguais, apesar de sermos semelhantes. Entende? Eu nunca vou vê-la de novo, isso dói. Não posso tê-la em meus braços, não posso beijá-la, não me permiti a isso. Não posso lhe pedir desculpa. Convivemos por um bom tempo, até que ela se recuperasse do que eu havia feito. Ela ficou na minha casa e de uma forma muito estranha nos comunicávamos pela mente, trocando toques e imagens. Em alguns momentos ela esboçou um sorriso, mas eu não sabia se ela me compreendia. Mas ela compreendeu a bússola.

                Era sempre noite quando ela ficava agitada, comecei a pensar que este era o período de caça dela. Ela me mostrou o que costumava comer, sobretudo alguns peixes. A alimentei, mas ela não saía da banheira. Ela me tocava e eu podia ver sua família, ou pelo menos o que eu achava que era a família dela. Ela me mostrou o medo que sentia dos homens e das armas. Eu mostrava para ela meus pais, minha infância em Portugal e na França, mostrei minha paixão pelo mar e minha luta em chegar onde cheguei. Era encantador. Pintei para ela quadros mentais de meu povo; como usávamos o astrolábio e como líamos as estrelas para navegar, no intuito de que ela nunca mais se perdesse. Numa brincadeira, lhe dei uma bússola. Ela tocou e seus olhos cresceram, brilharam. Em pouco tempo já sabia usar e amarrou consigo numa das algas e conchas que faziam parte dela. Mas as pessoas começaram a questionar o motivo de eu não estar mais me entregando como antes à arte da navegação.  Eu não poderia ficar ali, escondendo um segredo desses. Sabia também que um dia ela precisaria voltar; eu estava relutante, pensando que um romance desses, mesmo uma amizade poderia dar certo. Minha esperança era falha.

                Então, numa noite, a peguei nos braços novamente e a levei até a praia. Eu podia ver que ela queria voltar para seu lar e eu não poderia impedir aquilo, seria machucá-la uma segunda vez. Louise ficou eufórica quando viu o mar e eu fiquei feliz por ela. Deitei seu corpo na areia, no lugar que as leves ondas beijam o continente. As espumas pareciam complementar sua pele e seus cabelos. Antes de ela partir, não pude segurar meu choro. Ela notou e antes que a próxima onda a engolisse para sempre, ela voltou. Encostou em minha mão e eu senti um beijo, mas não me lembro se isso aconteceu ou se ela produziu esta imagem em minha mente. O importante foi a sensação. Então, sua imagem se misturou ao sal do mar antes que eu pudesse despertar para a realidade novamente. Mas me lembro que, poucos anos depois, quando eu estava em um dos navios, eu vi a bússola que dei a ela flutuando inocentemente pelo mar. Quando apertei os olhos para enxergar melhor, já não estava mais lá.

—Essa foi a ultima vez que esteve em alto mar?

—Sim.

— E então você se internou aqui?

—Me colocaram aqui. Acabei ficando bêbada algumas vezes e falei dessas experiências. Sabe como é, eu era a única mulher entre os marujos e era boa demais, estava no topo, era capitã. Eles não aceitavam isso, precisavam me tirar dali. Não aceitavam que meus pais me deram a mesma educação deles. Me jogar nesse hospício depois da história da Louise pareceu mais sensato do que me deixar queimar na fogueira por sodomia, bruxaria ou qualquer outro crime que eles considerem que eu tenha feito por querer beijá-la. Agora, depois de tantos anos, entendo a razão de Louise ter medo dos homens. Eu não era um.

—Muito bem. Precisamos entrar, senhora. Não é permitido que fique aqui por muito tempo, os médicos acham que ficar próxima do mar pode incitar suas alucinações. Venha. A maré está subindo e o vento ficando frio...


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Notas finais do capítulo

E SIM, ERA UMA MULHER DESDE O INÍCIO MAS VOCÊS NÃO PERCEBERAM PQ EU FIZ DE PROP?“SITO DURANTE TODO O TEXTO SEM DAR GÊNERO A NADA, APENAS NO FINALLLL HAHAHAHAHHAHAH

Bj Cucuzinha, espero que tenha gostado. Amo você ♥



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