Divina Comédia escrita por Beatriz Girão


Capítulo 1
Divina Comédia


Notas iniciais do capítulo

Outra coisa que o Riordan não me deu até hoje: Percy e Nico falando sobre os sentimentos de Nico.
Eu faço muitas fics com personagens conversando. Eu amo conversas. Preciso que elas ocorram.
O título é referência à aventura de mesmo nome de Dante pelo inferno.



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   Um calor desconfortável subiu pelas bochechas de Nico quando viu onde estava.

   Num momento de quase suspensão em que o ar à sua volta ficou estático, quis dizer às sombras que o levassem para qualquer outro canto. O ímpeto foi cortado por uma paz querendo lhe afagar os ossos e o passado: não havia por que fugir.

   Mas havia o que explicar.

   —Nico? — A voz arfou, do outro lado do quarto. A luz estava apagada e olhos da cor do mar apertavam-se no território de Nico, querendo lhe distinguir os contornos. — Por favor, me diga que é você e não um monstro usando a sua cara.

— É um monstro usando a minha cara — respondeu. Fez menção de tirar a jaqueta, mas não havia onde colocá-la. Fisgou no canto do olho um pedaço de alguma comida embalada em papel alumínio repousando sobre uma mesa.

—Ah. Menos mal. O Nico mesmo não deve estar querendo me ver – suspirou Percy, movendo-se numa posição sentada na cama.

Acendeu a luz e se olharam como se fosse algo próximo da primeira vez. Uma segunda, talvez. A primeira havia sido há alguns dias, quando Nico lhe contara um segredo que não era mais segredo.

— Eu não sei se realmente queria parar aqui. — Nico ofereceu, hesitante. — Acho que sim?

O rosto do outro endureceu: — Você estava... indo embora?

—Não! Não. Eu só queria um pouco de silêncio...

Após um momento de compreensão, Percy comprimiu os lábios e assentiu em solidariedade:

 —Você não controla bem ainda, né? Mas ouvi que está fazendo progressos.

—Ouviu? — Arqueou uma sobrancelha. — Não sabia que ousavam falar de mim por aí. As pessoas não têm medo de acordar com um esqueleto na cama com elas?

—O Jason não tem, aparentemente.

Nico sentiu uma ponta de doçura a lhe espetar o rosto. Jason lentamente queria se tornar seu irmão mais velho e o equilíbrio de irmãos que iam aparecendo na sua vida ia se desestabilizando para melhor.

—Bem, estou tentando me disciplinar com meus poderes. Tem uma primeira vez pra tudo.

—Quer sentar na minha janela, Di Angelo? — Percy apontou, levantando e se sentando no pequeno sofá rente ao parapeito. Esticou-se e pegou o embrulho que Nico vira mais cedo. — Não seria a primeira vez.

—Irrecusável. — Nico bufou.

E permaneceu em pé.

E permaneceu sendo pouca gente, ali, em pé, ao olhar o cara que havia sido seu mundo instantes de vida não muito antes. O jogo de sombras do quarto parecia dividi-los: um pingo de pessoa e um herói.

Mas as olheiras sob os olhos verdes fazia Nico duvidar qual ali era qual.

—Vai um bolo?

—Se você disser “como nos velhos tempos”, o bolo vai parar no seu rosto.

—É só bolo. Bolo do presente. Prometo.

Nico suspirou pesado e se sentou. Distante, mas muito mais sólido que o escuro das suas viagens.

—É azul?

—Não. Nem todo bolo pode ser perfeito. — Lamentou, gentilmente o desenrolando do papel alumínio.

—Obrigado.

Percy não respondeu.

Nico saboreou um pouco do bolo em silêncio; era chocolate. Sentiu o estômago se agitando. Ainda não tinha se acostumado a comer de novo. Abruptamente, o barulho do seu corpo foi interrompido pelo outro corpo ao seu lado:

—Por que você acha que parou aqui?

—Acho que... bem...

—Precisamos conversar, né?

—Se você quiser. Pode não querer; pode não querer nada comigo.

Nada. Um olhar sequer.  Talvez fosse melhor.

—Cara, não. Não. Não é assim. — Percy balançou a cabeça com veemência. — Não é assim.

—É assim se você quiser que seja. — Insistiu.

—Eu não quero. Precisamos conversar, sim. E eu...

Não.

Não. Nem tente.

—Mas...

—Não peça desculpas. Dói de ouvir.

—Certo. — Percy coçou a nuca, sem saber o que fazer com o próprio olhar. Tentativamente, alçou-o: — Ok. Sem desculpas, mas... Eu quero deixar claro de algum jeito que eu teria agido diferente se tivesse notado o que você sentia. Isso ajuda?

—Ajuda. E eu sei, mesmo. Isso tudo foi... Fui eu, na verdade. Um grande e patético embolado de Nico sentindo coisas sozinho e atacando os outros por isso.

Nem precisava olhar para o rosto de Percy para saber que ele discordava.

—O lance da autodepreciação está sendo trabalhado junto com os poderes sombrios?

—Está. Sério. — Uma pausa. Uma coragem. — O Will está ajudando nisso.

Nico suspendeu brevemente a respiração, analisando a expressão de Percy. Era serena.

—Will? Solace? Ele é um cara legal.

—É.

Nico ia mastigando com mais vontade, o bolo ficando mais gosto, mais palatável que a maioria de seus sentimentos. O ar gelado da noite lhe causava uma euforia estranha, assim como Percy ao seu lado. Não era amor. Sequer paixão. Uma faísca da aura de Poseidon atiçando-lhe o sangue do submundo, o contorno familiar de um velho amigo que finalmente era um amigo de novo, um passado em comum à beira da frágil imortalidade de Aquiles.

Eles eram tantas coisas.

Finalmente, visíveis um ao outro.

—É uma pergunta absurda, mas, como você se sentiu?

Nico não precisou perguntar.

—Como se o próprio caos que criou o mundo pudesse me engolir e não houvesse nada que ninguém no mundo pudesse fazer pra evitar isso. Como se, de algum jeito, eu chamasse o caos pra mim. E eu iria acabar. Simples. Senti que não havia nada antes, durante e depois, que o próprio tempo era um punhado de migalhas e farelos e grãos perdidos.

Percy inspirou e expirou. As mãos ficaram rígidas, em formato de punhos, e Nico sabia que o alvo era mais de um.

—Como sobrevivemos ao Tártaro?

—Como eu sobrevivi a você? — Nico devolveu. — Foi cansativo. E foi horrível te ver caindo no Tártaro, Percy. Como amigo, inclusive. Não faça isso de novo.

—Eu não vou dizer que sinto muito, porque acho que você iria me bater.

—É. Eu iria.

—Mas eu sinto.

Um soco. Leve.

Dois sorrisos. Pesados.                                                                                                                                             

—É sério, cara. E o que mais me incomoda é que eu te fiz sentir inadequado, como se eu nunca mais fosse te olhar nos olhos depois que você me dissesse que gostava de mim.

O giro quase desdenhoso do planeta fez Nico sentir-se com mais de cem anos. As coisas mudavam rápido demais para a alma de outras décadas; e ainda bem que mudavam, abriam-se.

—Você não pode me olhar nos olhos, Percy. Eu detesto que me encarem.

—Você é engraçado quando não está fazendo piadas sobre a morte.

—Mentira. Ouvi que essas são as melhores.

—Eu quis morrer. — Percy murmurou, o olhar desviado. — No Tártaro, digo. Brevemente, talvez mais que brevemente.

—Você é excelente mudando de assunto, Jackson. — Nico mordeu o lábio, forte, querendo morder-se todo até não sobrar pedaço. A ânsia pela morte era um assunto delicado entre os vivos; entre os mortos, não havia assunto.

—Parece até você.

—Absurdo. — Ele riu baixo. — Continue.

—Eu não lembro muito bem do que ocorreu. Lembro de querer vingança e de sentir a vingança de almas que eu coloquei lá. Foi... surreal. Eu não queria aquilo. Eu não quero aquilo. Eu nunca quis nada disso e lá estava eu, matando e morrendo. — Percy fechou os olhos e encostou a testa nos joelhos, abraçando-os. — Estamos sempre matando e morrendo. Não acaba.

— Acaba. Aos poucos, pra cada um. Acabou pra você, Percy. A sua vida será diferente, com a faculdade, a Annabeth, o outro acampamento. Quase... normal.

—De que adianta uma vida boa com memórias violentas como as que eu tenho?

—Não sei. Me diga você, quando descobrir.

—Te conto, sim, cara. Mas não espere muito de mim.

—Por quê? — Nico perguntou, ganhando um sorriso torto:

—Porque isso tudo é uma grande história sobre como todos esperam muito de Percy Jackson. E quer saber? Não dá certo.

—Não dá. Você realmente não presta. — Deu de ombros.

—Obrigado, Nico.

—De nada, Percy.

—Mas, sério. Te conto, sim. Um dia, com outra fatia de bolo e mais um pouco de tristeza.

—Tristeza é bom. — Nico franziu a testa. — Tem um gosto familiar. Isso é ainda mais triste do que ser triste em si.

—O Tártaro não vai te fazer pensar assim pra sempre.

—Não sei se foi o Tártaro que me fez pensar assim. Nem sequer acho que tenha sido... a Bianca. A falta dela, digo. A gente nunca sabe quando nossos traumas começam e muito menos quando eles terminam.

 Traumas de raízes profundas não têm cabeça, não têm rabo. São várias pequenas pernas arrastando-se como gravetos, horrorizadas porque não enxergam e não conseguem sentir onde estão; e fazem com que pessoas não saibam, também, o que fazer consigo mesmas.

—Não sabemos. — A concordância de Percy tornou-se um bocejo e, antes que ele acabasse, Nico já estava de pé, formigando.

Queria ir. Queria ficar. Queria ser amigo de Percy. Queria não vê-lo por meses.

—Eu vou... eu vou... 

—...embora. Mas você volta? Para mais tristeza e bolo?

Nico estava quase cansado de sorrir.

—Eu volto.


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Notas finais do capítulo


O Nico vai. Mas ele volta; está aprendendo a voltar. Eu amo isso.

Eu não sei porque tinha um pedaço de bolo no quarto do Percy. Assuma que sempre há bolo para quando o Nico aparecer, mesmo que não seja aniversário de ninguém. Digo, se eu conhecesse Nico di Angelo, eu deixaria bolo permanentemente na minha janela, para aumentar as chances de ele vir me visitar.

Eu deveria fazer algo com a Annabeth, também. Ela é uma sobrevivente do Tártaro tanto quanto eles.

Um comentário seria maravilindo, não acham? ♥



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